Às Margens do Tietê

Às Margens do Tietê

Anos Negros

Capítulo Um

Esperávamos Vovô... Vinha nos abastecer de tudo que plantava e colhia na roça. Homem rude, jamais botara sapato nos pés, falava atropelando as palavras e comumente lançava à molecada olhar de esguelha. Quando repreendia incisivamente, a enxurrada de grunhidos vinha sempre seguida de tabefes. A cara feia de minha mãe, ele fingia nem enxergava. Já que a nora e o filho não botavam rédea na criançada, ele botava. Melhor o avô educar aos netos em pequenos do que a polícia quando homens.

Os potes foram lavados por dentro e por fora e coube-me enchê-los um a um, puxando baldes e baldes, até transbordarem de água limpa do rio Tietê que passava no quintal de nossa casa.

Foi terminar o trabalho e lá vinha ele descendo a ladeira da Bela Vista, gritando à mula cardã coberta de milho verde, batata, queijo e leite fresco. Atravessou a ponte e eu já aos seus pés, empenhado em fazer-me-lhe agradável. Com ele nem meu pai se metia à besta!

Apeou, descarregou os mantimentos, mandou-me levar a mula à comer capim novo e água boa. Trepei-me na árvore e da casinha observava os peixes no fundo do rio transparente. Dédinha, a égua, botou-se a urinar e fazer careta esquisita com genitália. Encantei-me como se fosse a primeira vez que visse aquilo. Fiquei a escrutiná-la até que ouvi o grito de minha mãe a reclamar-me à presença.

Mandou-me pegar o landuá e fosse pescar peixes grandes para incrementar o almoço. Lá na roça, no ribeirão e nos tanques, só tinha peixe pequeno, cheio de espinha... E Vovô gostava era dos peixes do Tietê.

Em pouco tempo, enchi um balaio grande de pequenos e graúdos; conforme ia pescando, ia devolvendo os menores às águas. Retornei e fiz questão de mostrar-lhe o resultado da rápida pescaria. Perguntei se deseja mais, falou que não, estava satisfeito com a quantidade suficiente para o almoço e até para levar boa porção à véia, a Vovó.

Voltei aos encantos de Dédinha!

Sensação estranha, feito corresse fogo nas veias, invadia o corpo lasso e meu pintio de rasas polegadas inchava, crescia, ameaçava explodir. E olha que Dédinha já havia parado, há muito, com as caras e bocas vaginais. Atirei-me na correnteza mansa do rio Tietê. Quem sabe assim eu me acalmaria e sumiria a sensação de estar incendiando? Nunca tinha sentido tão forte ameaça de estourar o pênis, pintinho de nada, enfeitado com uns mirrados pubianos que eram meu orgulho, a prova de que eu ficaria tão homem quanto o Pai ou mesmo o Vô.

Assustei-me com o berro dele. Deus, como ele adivinhou tudo? Nadei à margem e trêmulo, fui ao seu encontro. Curiosamente ele estava calmo e bondosamente disse que eu levasse Dédinha à represa, logo mais a frente e a banhasse com sabão e a escovasse o pêlo.

Assim fiz.

A sós. A tal sensação de fogo nas veias colou-me ao sexo da mula Dédinha e só parei de amá-la quando posou na minha mente a reação de meu pai, chefe da milícia da cidade, flagrando-me naquela situação. Com ele não tinha essa estória de que homem tem que sentir tesão por tudo o que se meche e respira, como dizia o Vô.

Acabei de banhar, ensaboar e escovar Dédinha e a levei limpa e cheirosa ao Vovô que resolveu levar-me consigo ao sítio. Criança sem atividade na cidade só aprendia coisa ruim.

Quase morri quando ele me flagrou em cima da mula, amando-a como a uma princesa devassa. Fiquei vermelho, roxo, respiração descompassada... Mas, logo aproximou-se e disse:

-É assim que se aprende a ser homem.

Passamos a nos tratar feito homens amigos e ninguém precisou narrar as regras da cumplicidade masculina. Continuei trepando em Dédinha, pensando na afamada Luzia Matadeira, e ele apenas ria como se diante de outro homem, um amigo de sua idade.

Dia seguinte, mal sorvi alguns goles de café quente e já ia de arriba às costas da mula mansa quando ele, secamente, ordenou que o esperasse.

Teria ele mudado de opinião e passaria a me censurar? Estivera tão feliz comigo no dia anterior. Parecíamos bons companheiros, cúmplices... Àquela barreira espessa como as Muralhas da China entre avô e neto desmoronou-se quando ele vira minha predisposição à masculinidade. Eu até sonhava enfrentando meu pai, dizendo-lhe boas verdades de homem para homem. Não era eu carne e unha com o mais poderoso da família? Papai mandava na cidade e nos policiais subalternos. Mas borrava-se diante do meu avô.

Dissimulava como podia a impaciência até que respirei fundo ao receber a ordem de catar os apetrechos de lida na roça e acompanha-lo. Cerquei-o em artimanhas de espião russo e deleitei-me com sua gargalhada quando lhe falei que era o melhor avô do mundo. Encorajei-me, lubrifiquei cada silaba e disparei:

- O Senhor está zangado comigo?

- Não.

- Achei que sim...

- Vou te levar à Casa Vermelha e te apresentar à Luzia Matadeira. Deixe em paz a mula, pelo menos hoje; - disparou sorrisinho irônico, prendendo o charuto grosso entre os dentes amarelos.

Foi o dia mais longo da minha vida. Nada mais entrava em meu pensar a não ser a diferença entre Dédinha e Luzia Matadeira, matadeira de homens. Fosse esta melhor do que a mulinha de Vovô, certamente eu morreria mesmo. Mas de prazer porque homem feito, para qualquer fêmea, eu já era!

O cinqüentão, Pedrão, meu avô, não escondia o orgulho que sentia de mim, seu primeiro neto macho. Amigos toda a vida e ninguém jamais soube de nenhuma travessura que fizemos juntos. Confesso minhas bastantes artes. Mas, as traquinagens dele que presenciei, estas levarei comigo e nem ao túmulo direi. Não importa que tenha morrido há tantos anos.

Um homem triste emendava a voz cheia numa marcha miliciana que parecia canção de Deus. Além da casa onde este nascera, somente a fraga mais ao centro; o ribeirão silencioso, como a curvar-se à musica e a campina a se estender até às serras do entorno. Cantava em muitos tons, dedilhava o violão ou soprava flauta, seguia uma lógica que só ele compreendia. Vovó o comparava a general grego ante a sintagma adrede fardado, enfileirado e afinado! Alí, horas ficava enquanto os outros cuidavam do almoço no sitio, local onde nasceram todos da família.

Refiro-me a meu pai que viera me buscar e se ensimesmara na musica em cima da montanha de pedra a despeito da acústica. Entretanto, minha mãe dizia que ele via demérito na troca de nome: Policia Militar em vez de Guarda Nacional. Este muito mais pomposo, muito mais condizente com o brilhantismo da função que nos enobrecia ante todos. Impressionante o amor que este tinha a sua profissão!

Vovô, que nunca foi de lapidar palavra, achava que o motivo da tristeza na voz do filho, devia-se ao fato deste ter sido convocado à controlar manifestações estudantis a paulada, socos, pontapés e bomba de gás... A Capital fervia, inclusive, assalto a banco praticado por subversivos. Isto o entristecia e durante dias padecia em consciência lúgubre. Mas, sempre a guisa militar.

Chance de falar com ele, eu não tinha nenhuma: entretidíssimo no ensaio. Como será que ele reagiria se soubesse que eu já era homem de verdade, que Vovô me levara à Casa Vermelha e que comi Luzia Matadeira? Tudo bem que não foi lá muita coisa porque me tremeram as pernas e senti vergonha. Mas Vovô disse que o inicio é assim mesmo e que o mais importante é o fato de eu ter gostado do cheiro do corpo nu de mulher, do jeito de fêmea dando-se ao macho.

Da janela da cozinha minha mãe gritou que viesse almoçar. Fui correndo esperá-lo para o banho rápido e costumeiro nas águas cristalinas do Poço Fundo. Depois subiríamos ao almoço. Com olhar levemente torto, ignorou totalmente o chamado. Veio a voz cansada de Vovó e o mesmo chamado que também não surtiu efeito. Em pouco tempo o berro do Vovô, agora firme:

- Está surdo, João?

Imediatamente levantou-se, com um pano cobriu uns instrumentos e desceu. Num gesto brusco arrancou a roupa e tibum na água. Ocorreu-me comparar meu pênis com o dele. Que distância me faltava percorrer! Mesmo assim disse-lhe que já era homem, ao que me respondeu com tapas leves e mandou-me crescer e aparecer. Morri de vontade de dizer sobre Luzia Matadeira. Mas não podia trair a confiança de Vovô. Ficaria mal com os dois, certamente! |Meu pai era essencial militar: queria tudo sempre certo. Criança comendo puta jamais ele aceitaria!

Mesa farta, comida boa, vinho e família: meus avós, meus pais e meus irmãos: a mais velha, eu, o mais novo e outro na barriga da minha mãe. Fora este, óbvio, o resto se lambuzavam ao pé da mesa grande, na macarronada deliciosa.

Silêncio. Vovô entreolhou-se com os adultos e meu pai em si, parecia ausente. Mais um pouco, outra rodada de significativo entendimento mudo e ele enterrado no prato, somente. Vovô dirigiu-se à esposa, em vez de ao filho, revelando a ancestralidade nordestina:

- Por que teu filho anda emburrado, Véa?

Passou os olhos na mesa – olhos fundos, firmes e lentos – ninguém ali reconhecia aquele olhar:

- Nada com vocês.

Mamãe procurou aquiescência nos sogros e falou:

-Disso sabemos, Amor!

Vovô, quando resolvia proteger, era imbatível:

-Você é bom filho, bom marido e bom pai. Nós todos aqui nos orgulhamos de você e estamos dispostos a te ajudar. Mas, só fale se estiver seguro disso.

- Sexta feira morreu nos meus braços, cravado de balas militares, um jovem subversivo, filho de um Capitão, Capitão Ramalho.

-Foi você que disparou os tiros, Filho – perguntou Vovó.

-Eu ajudava o Comandante...

-E o Capitão Ramalho?

-Em choque. Fez tudo que pode para colocar o único filho no caminho da ordem, mas não teve jeito. Acabou se envolvendo em assaltos para patrocinar ações terroristas como seqüestro de embaixadores...

As mulheres tartamudeavam:

-Cristo Jesus!

Quando Vovó conseguiu desatar a língua, meu pai teve que esforçar-se para esconder a careta que se lhe estampava na face:

- Um absurdo, matar para manter a ordem. Não se mata nem em nome de Deus. A ordem é mais importante do que Deus?

A conversa foi arrefecendo, foram deixando a mesa e dali a pouco, todos acomodados nos sofás; eu e os pequenos na alcatifa, em sesta.

- Ontem, passei mal o dia inteiro: não conseguia render no conservatório, fui dispensado e antes de alojar-me, entrei na Capela e rezei, rezei, rezei... – disse e daí a pouco dormiu. Pé ante pé, saí de entre os adultos, pulei a janela e fui fuçar nos instrumentos e partituras sobre a pedra grande. Ainda longe, descia rumo a nossa casa, um carro de polícia. Larguei tudo e disparei a anunciar o fato. Foi o tempo da família se recompor: parou o automóvel, três policiais desembarcaram e, de canto, conversavam com meu pai.

Escoltados, voltamos à cidade. Meu pai nos explicava que precisava interromper a folga e voltar ao trabalho. Minha mãe fazia todas as caras e caretas de seu repertorio! Ele respondia que a amava e que o esperasse em paz, pois, logo se fixaria novamente aqui. A cidade grande apodrecia e a salvação da espécie humana dar-se-ia através do bom policiamento no interior: era o que lhe movia.

Os policias nem desceram da viatura, apesar do convite amistoso e sincero.

Vestiu a farda impecavelmente lavada e engomada, abraçou e beijou a nós todos e juntou-se aos colegas milicianos. Meu pai nunca mais voltou. Eu jamais esquecerei o cheiro de água e sabão que emanou dele, menos ainda o abraço caloroso que nem eu, nem ele - creio eu - imaginamos ser o último.