Memento Mori - Capítulo I - Mirelly

(trecho extraído do livro Memento Mori, que será lançado em agosto/2008)

“Na semana passada, os corpos de sete jovens – quatro homens e três mulheres na faixa dos 20 anos – foram encontrados numa caminhonete numa estrada próxima à capital. Os vidros do veículo estavam selados com fita e, no chão, quatro fogareiros a carvão indicavam a causa da morte: asfixia por monóxido de carbono. Logo depois, os policiais acharam o corpo de outras duas mulheres num carro em outra cidade vizinha da capital. As duas haviam se suicidado usando o mesmo método. No vidro do carro, um bilhete: ‘Não se trata de assassinato. Nós planejamos isso’. Na residência de todos os jovens, sobre suas camas havia um exemplar do livro ‘Memento Mori”.

“O Diário Local”, 20 de agosto

Terminou lentamente o seu suco, olhando para o relógio na parede. O ritual daquela família era bem regular, principalmente no café da manhã. Ao finalizar, levanta-se e volta para seu quarto.

A família de Mirelly não mais estranha esta atitude da filha mais nova. Acabara de completar 20 anos, mas seu comportamento estranho começou há cerca de 2 anos.

Mirelly coloca os fones de ouvidos e deixa tocar sua música preferida “Evenning Falls”, da cantora new age Enya. Liga o computador e em segundos já está conectada a rede mundial.

Acessa seu e-mail e nota que, dentre todos os não-lidos, Seis deles lhe são mais importantes. Em todos eles apenas uma singêla frase, copiada de um livro polêmico, “Nos vemos em tempo” era o conteúdo desses e-mails. Mirelly entedia o que queria dizer, tanto que enviou para todos os seis a mesma frase. Fecha o programa de e-mail sem ler os outros, apesar de notar que haviam vários de pessoas conhecidas e intimas. Mas não havia nenhum de Michael. Nenhum.

Arruma o quarto e deixa a cama impecável. Passa os olhos por todos os livros em sua estante. Pega um deles, um livro que a tem ajudado todos esses anos desde que Michael a deixou.

Esta separação foi algo que Mirelly não esperava. Michael foi seu primeiro namorado, o garoto mais “concorrido” da escola. Ficaram juntos por 8 meses. Depois, Michael começou a ficar mais e mais distante dela. Até finalizar oficialmente a separação. Semanas depois, já estava namorando com sua melhor amiga. Mirelly entrou em desespero e fez de tudo para reatar com ele, em vão. Isso a abalou de tal forma que aquela bela garota, passou a ser uma pessoa que vivia isolada e sem amigos. A família, no início, se preocupou bastante, chegando a levá-la em alguns psicólogos, que alertaram a todos. Porém, ninguém conseguia acreditar que por trás da tristeza dela, algo pior estava se formando.

Com o livro em mãos, ela pega o telone e pressional a tecla de rediscagem.

- Michael? Por favor, converse comigo uma vez só. Eu preciso de você...

- Me deixe em paz! Eu não quero falar com vc! Nunca mais em minha vida. – fala isso desligando o telefone.

Ela recoloca o fone no gancho e enxuga uma lágria solitária que rola por seu rosto. Senta-se em sua cama. Começa a folhear o livro e para na página 95, que já estava marcada com um pedaço de papel em branco. Retira o fone de ouvido e lê em voz alta um dos trechos marcados:

“Quando a dor é tão grande que nada pode amenizá-la, existe uma saída que só a nós é facultado pensar. Esta saída se estenderá aos amigos, parentes e pessoas de grande afeto. Mas, não só vai amenizar a dor que se sente, mas irá cessá-la por completo, definitivamente. E por que não tentar? É o melhor para todos. Quem pensa por si mesmo é livre. Não espere mais. Seja livre agora... AGORA”

Memento Mori, página 95

- Serei livre... minha família será livre... e, principalmente, ele ficará livre para se dedicar a “ela” por completo. – repete mecanicamente para si mesma.

Desliga a música de sua cantora preferia, que ainda ecoava baixinho pelo fone de ouvido. Pega o pedaço de papel em branco que antes servia como marcador e, utilizando o livro como apoio, começa a escrever com uma caneta esferográfica azul:

“Brasília, 18 de agosto de 2005

Michael estou deixando esta carta para mostrar a você o que sinto e o que estou sentindo. Michael, são 10h da manhã e eu não consegui dormir um minuto se quer esta tudo doendo dentro de mim só em pensar que ti perdi de verdade.

Michael porque você fingiu, porque você mentiu para mim este tempo todo. Michael não estou agüentando mais, está sendo duro resistir esta dor tão grande que estou sentindo dentro de mim e por viver assim preferi morrer.

Michael quando lembrar-se de mim lembre-se que ti amei e amei de verdade”

Assinado: Mi”

Dobra a carta e a guarda no bolso. Joga o livro bem no centro da cama, com a capa voltada para cima. Levanta e sai apressada de casa.

Na verdade, Mirelly já havia demonstrado o que estava passando em sua cabeça. Não diretamente, mas com dicas involuntárias que passaram despercebidos por todos, familiares, amigos e ex-namorado. Mais tarde, quando se lembrassem dos detalhes, provavelmente irão dizer para si mesmos: “Como eu não enxerguei isso antes?”.

Mirelly pega o metrô e em 40 minutos já se encontrava em uma cidade próxima a capital. Lá, três pessoas a esperavam, visivelmente exaltados:

- Está atrasada! Já estavamos indo embora! – fala Paulo abrindo a porta do carro para ela entrar.

Paulo conheceu Mirelly a uns dois meses na internet, mas pessoalmente era a segunda vez que se viam. Na primeira vez, Paulo pensou “O que uma mulher tão bonita, jovem e com a família estabilizada financeiramente quer fazer com a gente?”. Depois ouviu a história dela e a desilusão amorosa. “Isso não é nada comparado a dor que eu sinto!”, pensou, mas prefiriu não exprimir esta opinião. “Cada um carrega a dor que lhe foi concedida”, acrescentava mentalmente.

- Em tempo . – Fala ao entra no carro. Os outros retribuem o cumprimento.

De onde estavam para o local escolhido ainda demoraria cerca de uma hora e meia apróximadamente. A viagem transcorreu sem que o silêncio fosse quebrado, nem mesmo pelo rádio, que ficou desligado o tempo inteiro.

Chegando no local, um outro carro estava estacionado e dentro dele, mais três pessoas aguardavam. Este lugar foi visitado uma semana atrás pelo sete jovens, a mais nova tinha 18 e o mais velho, 21. Ao se encontrarem, todos se cumprimentaram dizendo “Em tempo”, como é hábito dos associados.

Era um lugar bem isolado. Não haviam habitações em qualquer direção que se olhassem. O sol brilhava forte e uma brisa leve balançava os pequenos arbustos próximos. Inicia-se, então, a preparação.

O carro era do pai Paulo, uma caminhonete que não tinha mais que dois meses de uso. Foi o próprio Paulo, por motivos não revelados, que escolheu o carro. Começaram o lacrar as portas com fita adesiva prateada de alta aderência, resistente ao calor e umidade. Deixaram apenas um porta, para permitir que eles entrassem no carro. Lacraram com fita e plástico todos os possíveis orifícios condutores de ar. O sistema hidráulico de conservação do ar interno, para uma melhor refrigeração, foi ligado, porém o ar-condicionado não foi acionado, estando o carro com a ignição desligada.

Foi durante uma das reuniões virtuais de um grupo na internet que decidiram utilizar este método, apesar existirem outros mais rápidos e mais indolores. Quem decide como e quando são os representantes do "Clube dos Cinco", ou C5, chamados de “Filósofos”. São cinco pessoas apenas. Elas tem como base trechos de um livro publicado há algum tempo: Memento Mori, como é conhecido mundialmente. Quem eles são e de onde ninguém sabe. “um em cada continente” é o que pensam todos os associados.

Após preparar o carro, eles pegam fogareiros que contém pequenos pedaços de madeira e um preparado de óleo, não para iluminar, mas para fazer fumaça, muita fumaça. Para que dessa forma o monóxido de carbono substitua o oxigênio contido no interior do veículo. Estes fogareiros foram colocados na parte traseira da caminhonete, onde o porta-malas foi finalmente lacrado.

Até aquele momento, nenhuma palavra foi pronunciada. Todos faziam o que lhe fôra atribuído, em gestos vagos. Ninguém queria e precisava criar laços de amizade. Mirelly só conhecia de vista duas das seis pessoas. “Completos desconhecidos”, pensou uma vez. “Para que melhor?”, ainda completa.

- Vamos lá? – falou Marcel, ao abrir a porta do carro, segurando um esqueiro na outra mão.

Marcel foi quem organizou inicialmente este “encontro”. Precisava de algumas pessoas e elas apareceram facilmente. O número de pessoas que queriam estar ali era bem maior, mas Marcel achava que poderia causar tumulto. Assim, estudou os outro seis participante antes de fazer os contatos finais. O processo durou cerca de três semanas até ser aprovado pelo C5. “A procura é grande”, queixava-se aos outros membros quando perguntavam como estava indo as coisas.

Pensava em levar a diante sem o apoio do C5, mas desanimava logo. Não poderia fazê-lo sem apoio... desistiria como das outras duas vezes. Na última, estava em casa, trancado no quarto, deitado na cama. Em casa também, apenas sua mãe, cuja audição não era lá essas coisas. Pegou um estilhete e num movimento rápido, deu cabo de um dos pulsos... o sangue jorrou com vontade... quando foi cortar o outro pulso, ouviu sua mãe cantarolar uma música que há muito não ouvia. Sentiu nisso uma tristeza profunda e pensava no desgosto que lhe daria quando entrasse ali e visse o filho estirado na cama, morto. Não conseguiu cortar o segundo pulso. Segurou com força o pulso cortado e gritou o mais alto que pode. Sua mãe veio correndo e, não se sabe como, conseguiu arrobar a porta e encontra-lo naquela situação. Em pouco tempo, já estava deitado numa cama, em um centro de terapia intensiva de um luxuoso hospital particular. Mas isso foi há quatro anos. “Ninguém lembra mais... mas, vão se lembrar...”, pensa antes de voltar a realidade.

Em pouco tempo, os sete já estavam acomodados no carro. Três na frente e quatro atrás. Paulo sentou-se no lugar do motorista. Mirelly sentou-se próximo a porta do lado esquerdo, bem ao lado de Marcel.

Estava quente dentro do carro, mas não tanto. Mirelly pensava se todos estavam nervosos como ela, mas achava sinceramente que não. Os olhares não se encontravam. Ninguém encarava ninguém. Apenas aguardavam o inicio do fim ou o “fim do inicio” como às vezes chamavam.

- Eu gostaria que todos vocês assinasse este papel, que está escrito “Não se trata de assassinato. Nós planejamos isso.”. – fala Macel, entregando o papel já assinado por ele para Mirelly, que rapidamente rublica seu nome e passa ao próximo.

Após terminarem de assinarem, foi colocado bem visível no por sobre o painel do veículo.

Marcel abre o livro C5 na página 208 e começa a leitura quase que decorada de um dos trechos:

“Em tempo! Não importa o motivo para nós, mas para eles irá importar e muito. Que a dor venha, mas que a solidão vá embora, não é aqui que queremos estar sem o brilho de um novo renascimento. Em tempo! Já não resta a menor dúvida em nossos corações. Somos fortes e temos razão. O tempo urge. Sem mais delongas, nos veremos em tempo!”

Memento Mori, página 208

Todos pronunciam com vontade “Nos veremos em tempo!”. Conferem se estão de posse de seus bilhetes. Seis estão, mas um deles não quis fazer. “Quero que a dúvida seja a dor maior para os que me excluíram desta sociedade”, disse, enquanto olhava todos abrindo os bilhetes.

Marcel acende os fogareiros um a um. Os bilhetes são guardados. O ar começa a ficar pesado e insalubre.

“Em menos de seis minutos a dor irá cessar”, Paulo fala para si. “Quero ver agora se irá dar tanto valor a este carro e me chamar de imprestável e que não vale nada. Quem não vale nada agora, heim? Este carro terá que ir para o ferro velho depois disso.”

Mirelly começa a sentir-se mal, tossindo e lacrimejando. A boca seca só permite sentir o gosto de óleo queimado. Começa a debater-se. Um dos ocupantes começa a gritar de dor. Outros se abraçam.

“Mãe”, palavra que não quer mais sair da cabeça de Mirelly. Começa a chorar compulsivamente. Imaginava como sua mãe iria ficar quando encontrasse ela morta desse jeito. Sonhava com a medicina para a filha. Venderia tudo o que tinha para que a filha se formasse e fosse alguém. “Mãe, me perdoa!”, falava entre a tosse forte. Sentia um gosto de sangue na boca.

“Mãe... me ajude... me salve!”, gritava agora. Virou-se para Marcel, que pouco demonstrava a dor e o incômodo que estava sentindo.

- Eu não quero mais! Me ajude! Quero sair! – fala Mirelly, com muito esforço.

- Não! Agora já é tarde. Nós já estamos mortos. É questão de tempo.

- Mas, eu não quero! Vou sair! – grita com Marcel e tenta abrir a porta.

Marcel segura as mãos de Mirelly com força e fala que não irá sair, pois poderia comprometer todos. Mirelly se debate e tenta se soltar dele, em vão. Bate algumas vezes com a cabeça no vidro, trincando-o, no último esforço para quebrár-lo e retornar a vida. Mas, não consegue. Sua cabeça começa a sangrar. Os sons, as luzes, vão enfraquecendo aos poucos. O gosto de sangue aumenta. O coração palpita diferente.

- Maezinha... me salve, maezinha... perdoa... perdoaa.. perd.. – fala, desmaiando.

Paulo segura forte com as duas mãos no volante o máximo de tempo que consegue. Abaixa a cabeça até enconstar no volante e tenta se conter mais. Vai perdendo gradativamente os sentidos.

Em mais alguns minutos, cessam os movimentos dentro do carro. Pelos vidros não é possível ver nada, cobertos pela fumaça. Dentro, sete jovens. Por fora, em algum lugar, sete familias estavam com seus dias contados. Não foram só sete vidas que se perderam, mas tantas que não se pode contar.

Paz mesmo, só nas folhas que balança levemente, apoiadas por uma brisa. Estas são as únicas testemunhas, mas não os únicos que sabem o que aconteceu.

Em duas horas, sete famílias recebem telefonemas informando onde procurarem seus filhos, mas não revelam o que ocorreu com eles. Uma hora depois, a tarde seria quebrada por lágrimas e desespero. Por Morte e dor.

***

Sinopse Memento Mori

Tema Polêmico: Suicídio

Uma seqüência de suicídios coletivos levam uma investigadora a se infiltrar num mundo obscuro, onde a realidade da natureza humana é exposta.

Baseado em relatos reais, os sofrimentos são fotografados pelas famílias, e documentados através das cartas deixadas pelos personagens anônimos no desenrolar dos fatos.

Seis anos de estudo e mais de 300 casos pesquisados nos levam a uma realidade que às vezes fazemos de conta que não existe. E esta realidade está mais perto do que parece, nos espreitando em cada brecha de nossos pensamentos, medos, desejos e frustações frente à vida.

Em cada uma de suas páginas, a única certeza: lembra-te que morrerás!

Mais informações no site: http://www.roberleyantonio.com