Paralisado
Como conseguiria sobreviver com aquela bala encravada no cérebro depravado ele não sabia. Sim, é isto mesmo: uma bala estacionada no interior daquele cérebro que aprendeu a pensar apenas maliciosamente. Mas o sujeito vítima era humano. Era gente mesma, filho de Deus, que respirava e tomava água fria. Sonhava. Tremia. Pulava e gritava na sua dor e emoção.
Silenciosamente, Matilde lhe falava ao ouvido esquerdo:
- Você fica bom, amor, e ganha um bombom.
Ela sabia. Sim, ela sabia de seus gostos, de suas fantasias, de seus acessos de fúria. O mal da presença dele, naquele instante, era a sua própria inércia. Horrível a seus olhos sua morbidez serena, em aparência ele de defunto vivo, os olhos fixos num ponto tal do teto daquele hospital que cheirava a puro remédio e soro.
Se lhe sentia o cheiroso perfume Arccordes , Matilde não sabia. Ele nem se mexia, os olhos parados sempre. E aquele horror de se saber agora um inválido, sem poder fazer nada para impedir... impedir que Matilde fizesse aquilo que os seus funestos olhos já suspeitavam.
Não, claro que ela não podia fazer aquilo. Depois de tanto tempo juntos... Certamente ela não consumaria o ato-sangue. Ilusão sua deveras. Variação de neurônios. A bala encravada gerava outras visões cambaleantes, dava novos contornos à realidade. Matilde sempre fora boa. Há cinco anos permanecera ali, junto a ele, servindo-lhe e dando muito amor, cuidados, carinhos. Não, não podia que Matilde fizesse aquela cara de bunda azeda, tão típica daquelas outras mulheres xexelentas que nunca quiseram saber dele.
Talvez pudesse retificar a visão. Ver se era verdade, se seus olhos não mentiam. Mas, e a angústia sufocante que sentia trespassando o peito? Algo como dor nervosa fazendo doer ainda mais sua cabeça agora mais inchada do que nunca, daí uma dor maior deslizando como rodas de espinhos por sobre seus nervos trepidantes... Dali, do teto daquele hospital fedido, uma avalanche de neve parecia querer desabar sobre seu corpo imóvel. Matilde não viu quando ele tremulou, rápido e instintivamente, seus olhos de grande espanto, como que não querendo ver a neve enterrá-lo todo.
Mas o frio sem brio não sentira. Não sentira mais nada senão aquela angústia persistente passeando pelo seu corpo paralisado há cinco anos. Aquela bala... Perdida (ou não?). Seria providência divina? O que tinha de ser foi, acreditava. Só não queria morrer naquele hospital, envolto num emaranhado de tubos e aparelhos, tão dependente de Matilde, sua primeira mulher, única razão de ainda ter forças para sugar o ar para dentro de si.
Imaginar Matilde nua era suficiente para ele. Sim. Desejá-la em pensamento, possuí-la em mistério. Matilde talvez estivesse carente de seus toques, sua boca, seus membros. Às vezes, Matilde, vendo-se só no quarto, sentindo o corpo esquentar-se sobremaneira, metia a mão suada por sob seu pijama, deslizando-a lentamente sobre o púbis, indo daí finalmente até o seu membro antes fértil mas agora adormecido, como uma cobra desmaiada. Contentava-se (?). E como lhe doía não perceber do esposo uma manifestação febril de prazer... de gemidos e suspiros...
Matilde andava, ultimamente, meio distante. Ele, Nelson, já suspeitava daquele seu afastamento repentino. Matilde um pouco fria. Diferente a Matilde. Diferente esboçar de sorriso de Matilde. Devia estar se cansando daquilo. Ah, se devia! Naquele dia nem lhe dera atenção. Fingira não vê-lo. Chegou de mansinho e se dirigira até aqueles botões multicores. Há muito tempo não se arrepiava como naquele instante. Há muito não sentia um medo, um espanto de morte iminente. Dia do veneno aquele. Não, Matilde não teria coragem de consumar o que lhe ditava a intenção. Não, não era de seu feitio. Longe dela. Longe dele crer também. Crer que já não vivia, que não era mais ele ali, incapacitado, gerando dores, sucumbindo, acorrentando pessoas que queriam continuar a vidárdua, normais, sonhando, sem se preocuparem com ele: um inválido, sentido, sem sentidos! Afinal, tanta orgia e sensualidade por aí, tantos homens bem colocados, cheirosos, endinheirados. Impossível Matilde querê-lo daquela forma, já esquelético, olhos afundados, distantes, os membros seus inaptos para o carinho tão necessário.
Foi num supetão...
Matilde, resolutamente, arrancava dos aparelhos aqueles tubos vitais para ele: Nelson, inerte, morto naquele dia mesmo, 24 de julho, impossibilitado de impedir. Impedir a ofuscação da claridade ainda viva em seus olhos, as lágrimas frias e mortas que deles caíam.