Ele não quis a separação
Acordei sentindo um pouco de peso na cabeça e atribuí esse mal estar ao pequeno exagero na comida da noite anterior. Não consegui resistir às insistências de Gertrudes para repetir a bacalhoada. E em função disso, o vinho do Porto tornava-se ainda mais delicioso. Só me resta agora um mergulho prolongado em minha banheira; a espera de que a água fria me tire desse marasmo matinal.
Mas o que quero contar é porque Gertrudes me convidou a sua casa naquele domingo. Queria que eu a tirasse de uma situação extremamente conflituosa. Meu banho não seria tão longo quanto eu desejava, pois não passara cinco minutos imerso na água, com a espuma já cobrindo-me até o pescoço e tive que esticar o braço até o aparelho que ao lado da banheira começou a chamar. Do outro lado, a voz de Gertrudes. Ela parecia tensa pelo tom da voz incomum.
- O que houve? Parece nervosa - foram minhas primeiras palavras ao atender o chamado.
- Você pode vir esta tarde? Ele estará aqui e poderemos conversar os três e resolver de uma vez essa situação. Mas chegue como uma visita normal; não quero que ele desconfie que te chamei. Por favor, não deixe de vir.
- Pode deixar - respondi, após algumas palavras que a deixaram mais calma e confiante.
Levantei-me e enquanto me secava e me vestia, na mente, planejava aquela tarde que se intrometeria na minha agenda do dia. A consideração por minha amiga era de décadas e por nada a deixaria privada do meu auxílio.
O homem a quem se refere é o seu ex que durante anos a fez sofrer e após, incentivada por mim, pedir o divórcio, ele não aceitou. Tendo-o largado mesmo assim, começou a ser importunada e agora vive um tormento que vem infernizando os seus dias.
- Sr. Pablo, bom dia. Vai tomar seu café da manhã na copa ou em seu escritório? - Suzete, minha cozinheira, dirigiu-me esta pergunta ao cruzar comigo no salão principal. É aqui que vasculho os jornais à procura dos meus anúncios sobre os imóveis que negocio. Pedi que me trouxesse o desjejum. Tomaria-o sem me deslocar de onde estava, pois algo me chamara a atenção ao passar os olhos sobre a seção policial de um dos jornais.
"Morreu esta manhã em sua mansão de Balneário Camboriú o famoso empresário do ramo hoteleiro Adalberto Souto. A polícia ainda não tem pistas do que aconteceu, mas iniciou as investigações ao calcular, pelo estado do cadáver que houve crime de assassinato."
Não consegui concluir o que vinha fazendo. Fechei o jornal, após ter separado o caderno com a notícia e peguei em meu celular para chamar Gertrudes. Enquanto fazia esses gestos imaginava a reação de minha amiga ao saber que suas preocupações e tormentos não tinham mais razão de ser, pois seu causador acabara de ser assassinado. Inúteis foram minhas tentativas. Após inúmeras chamadas desisti e decidi por adiantar minha ida até sua casa. Estava a vinte minutos de Balneário. Será que a polícia desconhecia que Adalberto não residia mais naquela mansão e que já havia, há alguns anos passado o imóvel para o nome de sua agora ex esposa?
Não queria esperar o elevador. Desci mesmo pelas escadas os cinco andares que me separavam do andar garagem. Ao descer a rampa em marcha lenta quais não foram meu susto e minha surpresa. Antes de ganhar a rua, atravessando do portão para a calçada, um vulto surgiu de repente, fazendo-me frear na hora antes que o atropelasse.
- Gertrudes! Quase pego você. O que faz aqui? - ela estava pálida, cadavericamente pálida. Suas mãos, gélidas e trementes causaram-me arrepios no momento em que tocaram meu braço. Havia contornado o carro enquanto eu descia o vidro e já estava agora ao meu lado.
Pude então confirmar seu medo e sua agonia.
- Você precisa me ajudar, pelo amor de Deus!
- É claro, foi o que combinamos, mas o que faz aqui e porque está tão nervosa? Entre e se acalme. Tenho uma notícia que vai te interessar, embora não seja nada agradável. - Ela me encarou apalermada. Não foi difícil interpretar sua reação. A conclusão parecia óbvia: ela sabia que eu sabia.
Nossa sincera amizade não dava chances a mentiras nem dissimulações. A comunicação entre nós era como uma harmonia entre dois instrumentos musicais perfeitamente afinados, sem ruídos ou dissonância. A confissão fez-se inevitável. Gertrudes acabara de assassinar seu ex marido. Vi-me, a partir daquele momento preso em um labirinto do qual não via saída. Como proteger uma assassina confessa sem trair minha consciência?
- Como tudo aconteceu? Preciso saber dos detalhes e ver se existe algum jeito de salvar sua pele. Vamos sair daqui e agir normalmente; vou levá-la a um restaurante. Enquanto comemos conversaremos e você me coloca a par do que houve naquela casa. Impossível desfazer o que aconteceu. Mas não consigo pensar de estômago vazio, vamos.
Dizendo isto, tornei a ligar o motor e partimos dali. Sua pele recobrava aos poucos a cor natural; era como se, ao meu lado, seu espírito adquirisse serenidade e confiança. Iniciamos a marcha e nos calamos por alguns minutos. Nesse ponto, como se voltando a si o raciocínio lógico e alentada pela sensação de paz, a ficha caiu para minha amiga. Abriu um choro sem igual e a torrente de lágrimas deixou-se extravasar. Esperei que se acalmasse para explicar quais seriam meus planos para livrá-la do pior: a prisão. Enquanto eu falava, percebia a mudança que aos poucos ia operando em minha amiga o efeito que eu esperava. Motivei-a a tocar a vida com aquela paixão que sempre teve. Enfatizei o quanto era ainda jovem e que certamente encontraria alguém que a faria feliz.
Quando sentamos à mesa do restaurante, Gertrudes era outra pessoa. Não parecia que havia cometido um assassinato horas atrás. Isso porque o fato de ter agido em legítima defesa como logo fiquei sabendo dera-lhe forças para reagir e usar isso ao seu favor em seu depoimento. Abrimos nossa segunda garrafa de cerveja e eu, propositadamente enchia muito mais seu copo do que o meu porque isso a tornaria mais solta para me detalhar o que ocorrera naquela manhã. Chegaram os nossos pratos. Deixei que o garçom se afastasse e, certificando-me de que não Éramos ouvidos nem observados, fiz com que começasse a falar.
Faltavam ainda vinte para o meio dia e o recinto não tinha mais do que umas cinco ou seis mesas ocupadas e eu, estrategicamente escolhera uma mesa de canto mais afastada. Mesmo que a casa enchesse ainda estaríamos bem posicionados e poderíamos conversar sem chamarmos a atenção de curiosos e bisbilhoteiros. Gertrudes espetou da travessa um naco de carne, trazendo-o para o seu prato e começou a falar.
"Logo após me despedir de você e fechar a porta, comecei a sentir uma sensação muito estranha; uma espécie de pressentimento. Não sei se por efeito do vinho do Porto que ambos exageramos, pensamentos involuntários invadiam minha cabeça. Achei que se tirasse um cochilo, me sentiria melhor. Deitei e logo adormeci. Sonhei com Adalberto. No sonho ele me ameaçava de morte brandindo uma faca e vindo para cima de mim. Pelo fato de ser muito mais jovem que ele, consegui me safar de seu golpe que seria certeiro. Aproveitei o impulso de seu corpo e coloquei um pé em seu caminho e ele caiu de bruços ao lado do sofá. No sonho eu gritei ao ver o sangue que escorria em volta de sua cabeça. Caíra por cima da faca que cravou em sua carótida tendo morte instantânea. Dei um grito ao ver aquilo e despertei em seguida.
"Ainda bem que foi só um pesadelo, pensei comigo, mal sabendo que fora algo prestes a ocorrer no mundo da realidade e que já havia acontecido no mundo mental: uma premonição infalível. Entrei pela tarde e continuei pelo resto da noite angustiada e nada do que fizesse me tirava aquele pensamento terrível, pensamento de morte. Pensei em te ligar e comunicar meu sonho e meu estado, mas não quis incomodar o resto do teu domingo.
"Decidi sair para espraiar minha mente. Estava uma tarde maravilhosa; andei no calçadão, encontrei umas amigas e sentamos a um quiosque para conversar. Inventei uma dor de cabeça para não aceitar a cerveja e optei pela água de coco. Isso aliviou um pouco a minha tensão, conjugado ao papo agradável e à visão encantadora do mar.
"As ondas do fim de tarde já batiam com fúria na areia bem pertinho de nós. Pouco a pouco banhistas que formavam alegres grupos em torno das mesas de pedra espalhadas pela areia despediam-se uns dos outros; atendentes recolhiam garrafas, davam troco, limpavam as mesas para os próximos clientes que já eram raros àquela hora ou fechavam barracas que já não teriam serventia com a despedida do sol. A fileira de automóveis do calçadão encolhia aos poucos, trazendo de volta a paisagem do boulevard e dos muitos turistas que passaram a lotar os bares e restaurantes do outro lado da pista.
"Já começava a escurecer quando nos despedimos. Subi de volta para o prédio. O banho foi rápido. Não tive a fome costumeira, mas forcei-me a preparar uns ovos mexidos, um chá de ervas calmante e fui para a frente da televisão esperando o sono que custou a chegar. Já conhecia a pontualidade de Adalberto. Ele encontrou-me no banho essa manhã ao tocar a campanha da porta. Já sabedor de sua impaciência e irritada com o barulho dos seus toques nervosos, enrolei-me na toalha e fui recebê-lo. Para minha inesperada surpresa vi-o bêbado e estranhei o fato, já que há anos não ingeria álcool; não sei quando voltara a beber. Um dos motivos da minha decisão pelo divórcio foi a bebida que sempre o tornou insuportavelmente agressivo.
"Quando me viu seminua a tara o acometeu e tentou agarrar-me à força. Conseguiu à princípio, mas me desvencilhei e corri para a cozinha onde peguei um facão. Ele veio de novo. Entrou cozinha a dentro e quando me viu armada, parou, mas não se intimidou.
"- Se tentar alguma coisa comigo, acabo contigo. Não estou brincando, Adalberto.
"Um descuido meu fez cair a toalha e eu me vi nua em pêlo, o que o deixou alucinado. Como que não acreditando na minha coragem ele investiu. Parecia um urso de tão violento, uma força descomunal que não era a sua me apertava e me dominava, tirando-me as forças, mas crescendo dentro de mim ódio e revolta. E no auge da fúria, num gesto automático, cravei em seu pescoço a faca que o fez tombar incontinenti e sem vida. Acha que devo me entregar e confessar meu crime?
- Sim, é o melhor a fazer. Vou encontrar o melhor advogado. Você tem todas as chances. E todo dinheiro necessário para se sair bem nesse caso.
Saímos dali direto para a delegacia. Gertrudes apreensiva, mas eu com toda a confiança do mundo.