Aquela que afasta as dores
É quase meia noite. O luar ainda derrama o brilho prateado, esparramando uma luminosidade difusa nesse terreno repleto de umidade. Os sons da noite continuam seu ritmo, o coaxar une-se aos silvos, zumbidos, chiados e cicios. A barulheira do local bem povoado vai se tornar a sinfonia para algo espetacular.
Um pequeníssimo ponto marrom desenvolve-se lentamente. Algo verde sai aos poucos de uma redoma natural, estende-se para receber o oxigênio, respirando avidamente. Um ser vivo em sua essência busca a claridade do céu para iniciar a jornada que não será tão tranquila, contudo, saberá o que fazer.
Ela é diferente. Nada em sua natureza é comum ou ordinário. Quem a vê tem duas alternativas: ou odeia ou ama. Dispõe de aparência intrigante. Não pode ser tocada sem qualquer propósito, pois a esta criatura é vedado gastar energia sem necessidade. No entanto, cotidianamente irá perceber que o instinto de sobrevivência ditará o comportamento diário.
Tendo o nome retirado diretamente do latim, Nepenthes significa “aquela que afasta as dores”, ou seja, aparenta ser uma criatura cheia de candura e docilidade. Possui um magnetismo irresistível e por isso consegue atrair espécimes incautos de maneira fácil e veloz. Tal fato a faz sentir-se altiva, superior a quem está ao lado. Até entende ser agraciada com uma característica peculiar – há restrição ao consumo de água, só pode ingerir se for destilada. O que a torna extremamente diferente é um desenvolvimento célere, em poucos minutos percebe-se pronta para caçar.
Nesse instante, experimenta a sensação de habitar num lugar magnífico. É invadida pelos odores dos animais próprios daquele ambiente acolhedor, cheio de barulhos diversos, mas que permitem uma calmaria interior, favorecendo um plano que elabora sem delongas. Apesar da baixa estatura, apenas quinze centímetros, tem certeza de sua capacidade para viver de forma independente.
Em breve provocará o ponto final à existência de alguém. Não vai esperar nem vacilar no momento certo. Nasceu com esse objetivo primitivo: uma assassina disposta a ultrapassar melindres, presentes nos fracos, nos tímidos e nos insignificantes. Outra vez aspira os cheiros encantadores, encara o alvo e sabe que a presteza das ações seguintes irá mudar de vez seu rumo. Será sua estreia num mundo onde os mais espertos sempre vencem.
Analisa a aparência intrínseca ao seu eu, é linda e fascinante, a silhueta perfeita para sua sobrevivência. Seus membros modificados irão atrair a presa com uma substância líquida escorregadia e doce. Chegou a hora esperada ansiosamente. Aquele serzinho se aproxima perigosamente, o que é ótimo para ela. Ele pousa na borda da folha, cai no interior do meu corpo e a magia acontece: o suco gástrico entra em ação e o inseto é digerido completamente!
Um deleite indescritível apodera-se dela. O entendimento de que sua vida a partir de agora será assim, experienciando a captura, dia após dia, rigorosamente, sem falhar e sem temer. Nada será capaz de fugir à intensidade da sedução das suas folhas, de formato perfeito e intrigante, uma urna, ou um jarro, para os mais românticos. Nenhum aracnídeo, anfíbio, pequeno roedor ou inseto poderá escapar da sua armadilha intoxicante.
Contempla o ambiente ao derredor: um brejo de mata abundante com plantas de pequeno porte numa seletividade ambiental invejável. Ela se delicia no entorno de um solo adequado, que possibilita a elevada diversidade “não arbórea”, porém, apesar desse fato, as companheiras na comunidade vegetal a compreendem e a animam. Nepenthes é uma planta carnívora e nasceu para ser incomparável.
p.s. Este conto foi originalmente publicado na Revista Histórias de Lugar Nenhum, edição 22.