A Favorita
A Favorita
Cardoso I
O relógio marcava quase meia-noite quando Clara desligou a luz da cozinha e subiu as escadas, escutando o ranger do assoalho antigo. No quarto ao lado, o pai respirava com dificuldade, envolto por travesseiros e aparelhos que mantinham sua fragilidade funcionando. Clara sabia que, do outro lado do corredor, Ana também estava acordada, fingindo dormir. Era sempre assim: duas sentinelas, duas filhas, dois pesos.
Desde que a doença do pai os empurrou de volta àquela casa velha e úmida, os dias se tornaram uma disputa silenciosa. Não por amor — porque amor, talvez, já não houvesse mais ali — mas por aprovação, por herança, por uma palavra sussurrada no fim da vida que dissesse: "Você foi a melhor."
Clara era metódica. Horários para os remédios, comida sem sal, contas pagas. Ana era caótica e doce. Sabia dobrar os travesseiros de um jeito que deixava o pai confortável, cantarolava canções de quando eram crianças, trazia flores que ele mal podia cheirar.
Mas havia uma ferida que nenhuma cuidava: a memória. Porque, mesmo agora, à beira da morte, o velho só pronunciava um nome quando acordava assustado, quando pedia um copo d’água, quando apertava a mão de alguém como quem segura a vida — e esse nome era sempre Ana.
Clara carregava esse peso como quem carrega um copo cheio demais, tentando não derramar.
Naquela noite, algo quebrou no silêncio. Um baque seco vindo do quarto do pai. Clara levantou de sobressalto, mas quando chegou à porta, encontrou Ana já de pé, ajeitando o corpo do velho, que resmungava algo inaudível.
— Ele só teve um pesadelo — disse Ana, sem olhar para a irmã.
Mas Clara sabia. Sabia do sorriso quase vitorioso no canto da boca de Ana, do jeito que ela segurava a mão dele como quem diz: "Vê? Ele precisa de mim."
Dias depois, o pai morreu. Sem aviso, sem grande sofrimento. Apenas apagou, como uma vela no vento.
Na leitura do testamento, a sala estava cheia de móveis herdados, fotos antigas e ressentimentos novos. O advogado, com sua voz mecânica, anunciou o que ambas já esperavam: tudo dividido igualmente.
Mas, no fim, ele acrescentou uma carta, escrita à mão, que dizia apenas:
"À minha favorita. Você saberá que é para você."
As duas ficaram em silêncio, segurando o mesmo pedaço de papel, sem dizer nada, sem saber, no fundo, para qual das duas aquela carta havia sido escrita.
E talvez essa fosse a última crueldade do velho: deixar que o favoritismo sobrevivesse a ele, como um fantasma rondando para sempre aquela casa.
---