Veredas e Reminiscências
Em um caderno esquecido num canto
Deparo-me com páginas e páginas preenchidas
Numerosas linhas, poderosas revelações.
Reviro, insistente, capa a capa
Sem nome, sem assinatura.
Há datas, há lugares, há mistério.
Sinto-me fraca, pasma, perplexa.
Não sufoco um suspiro; vem a surpresa.
Pergunto-me como nunca reparei.
Ela escondeu numa gaveta grande.
Numa cômoda de madeira antiga.
Debaixo de livros e blocos de anotações.
Indago-me por que só agora me dei conta.
Esqueci daquele hábito favorito.
De que tão romanticamente ela gostava.
Levo a mão à boca, inspiro profundamente.
Chegou a hora, vou me permitir.
Entrar no seu espaço, poético e sincero.
Naquele pequeno objeto, recortes de revistas
Trechos de livros, citações impressas
Frases de famosos, versinhos, letras de música.
Eram colagens, de vários tamanhos e cores.
Característica dela, dando valor a relíquias.
Expondo sensações, sentimentos e visões.
Invade-me uma pulsação, uma energia...
Foram escolhas dela, esses finos pedaços de papel.
Orgulhosa, vou lendo, deixando-me levar.
Vão-se longos minutos; paro e medito.
Em cada linha escolhida com carinho.
Muitas lágrimas caem em pranto saudoso.
De repente, lá pela metade da leitura.
Minha atração vai para um poema.
Versos e versos de registro inesquecível.
Vislumbro ali um ser um tanto ambicioso.
E ao mesmo tempo angustiado.
Questiono-me a razão de tudo aquilo
Todos aqueles versos, quase um apelo.
Um grito de socorro, um sonho perdido.
Parecem mensagens nunca enviadas por um coração aflito.
“TANTOS
Tantos caminhos a percorrer
Tantas batalhas a conquistar
Tantas estradas a conhecer
Tantos territórios a desbravar.
Diversos sentimentos sobrevêm, insistentes.
Vários pensamentos ocorrem, persistentes.
Inúmeros detalhes omiti.
Incontáveis silêncios permiti.
Tantos deleites imaginei.
Tantas riquezas ambicionei.
Tantos apertos no coração senti.
Tantos nós na garganta engoli.
Vivências...
Carências...
Reminiscências...
Reticências...
E assim passo o dia
Deixando-me engolfar em agonia
Tantas veredas que jamais trilhei...”
Seguro o caderno com força
Não detenho as gotas salgadas que caem em cascata
Penso em permanecer ali, desfrutando e absorvendo.
Quero saber quando foi essa época
Em que ela se sentia dessa maneira
Solitária, carente, tristonha.
Fui cega, fui omissa, fui distante...
O eu-lírico do poema era mesmo minha mãe?
Gostaria de tê-la agora aqui nesse instante.
Para indagar como poderia ajudar
De que forma auxiliar em sua busca.
Para enfim dos seus lamentos livrar.
Ela viveu períodos de desencanto
Mas não permitiu dominar-se pelo pranto
Foi intensa, foi candura, foi afago.
Havia em alguém pesar? Era solidária.
Havia em alguém dor? Era conforto.
Havia em alguém necessidade? Era solícita.
Ela sabia esconder seus pesares
Em sorrisos genuínos e meiguices.
Só para atender nossas esquisitices.
Insisto buscando nas memórias.
Estive com ela, sorri com ela
Dancei com ela, aplaudi suas vitórias.
Entendi seu passado de deserto na infância
Compreendi seus estados de distância
Respeitei suas atitudes de relutância.
Guardando essa imensa emoção inigualável
Reflito que jamais esquecerei esses versos
Daquela que soube ser incomparável.
Este conto foi originalmente publicado na revista Histórias de Lugar Nenhum, edição 19.