A Mansão

Por um bom espaço de tempo está Rabelo parado na frente daquela mansão, sonhando, imaginando como seria ser possuidor de tamanha riqueza. Nesse dia ele demora-se mais do que o costumeiro. Já se vão mais de quarenta minutos e lá está o rapaz, embevecido. Por si passam todos aqueles que têm o que fazer naquela manhã. Ele disfarça, no banco de pedra da praça, olha o movimento da rua, mas a mansão do outro lado é o que realmente domina os seus pensamentos. Pelas altas grades de ferro do enorme portão consegue-se ter a noção da riqueza e do charme presentes na parte externa e adivinhar o glamour do seu interior. A alameda principal, que leva à frontaria está ladeada de girassóis; o extenso gramado rebrilha aos primeiros raios do astro rei. Estátuas de gesso contornam o chafariz. Na parte esquerda do prédio o caramanchão exibe a exuberância da rica folhagem. Veem-se os bancos carregados das pétalas que caem dos vasos dependurados pelas correntinhas douradas. A frente da casa é de vidro; abrindo-o para as laterais tem a varanda, mas a transparência já deixa ver a decoração. Nos cantos os enormes vasos e as hortênsias em floração, a cortina de seda, os quatro degraus de mármores que levam à porta principal com argola de ferro e olho mágico.

Rabelo se levanta e monta em sua bicicleta. Atravessa a praça e a rua que lhe separa da suntuosa propriedade. O que o fez executar esse movimento foi a saída de alguém de dentro da casa; uma mulher. Ela veio por trás, trazendo numa das mãos um regador e uma vassoura na outra. Ao começar a molha do canteiro de flores da alameda viu que Rabelo a sinalizava encostado à grade do portão.

- Muito bom dia! – disse ele, querendo demonstrar simpatia, tendo uma das mãos na grade e a outra apoiando a bicicleta. – Sabe se estão precisando de empregado?

- O que o senhor faz? – quis saber a mulher.

Ele pensou por um instante antes de responder. Não havia ainda preparado sua mentira.

- De tudo um pouco – respondeu. – Mas ser jardineiro é o meu forte.

- Aguarde um pouco enquanto falo com o meu chefe. – Dizendo isto a mulher se afastou.

Alguns dias depois desta conversa Rabelo já fazia parte do quadro de empregados da bela herdade. E depois de uma semana em seu serviço não conhecia ainda a pessoa que lhe dera o emprego; não sabia para quem trabalhava. Mas até ali não lhe importava esse detalhe. Estava encantado com tudo que via. A simpatia dos colegas, os detalhes da atividade que, de boa vontade lhe foram passados e ele aprendeu com facilidade, mas, sobretudo, o luxo e a riqueza do ambiente que agora conhecia de perto. Tudo na casa transpirava um fausto que não chegava a ser ostentação, porém propunha algo bem parecido. Rabelo olhava e se bestificava com a altura das portas e das janelas, com a madeira nobre de que eram constituídas, com o desejo intencional de não poupar na qualidade do material empregado. Poucos dias de serviço lhe deram a intimidade suficiente para ampliar o âmbito de sua atuação. Como não faltava o que fazer ele se oferecia e, de bom grado, outras tarefas iam sendo-lhe apresentadas.

Na enorme cozinha lhe impressionaram as pratarias. Duas das quatro paredes receberam armários de última geração em cujo interior as portas de vidro permitiam, sem cerimônia, apreciar-se a riqueza das taças filetadas em ouro, das travessas em porcelana chinesa, das dezenas de copos de cristal raríssimo, mas ali em indisfarçável abundância. O doirado flamejante das duas geladeiras que guarneciam as arestas, tocando o teto candente, a coifa esverdeada do fogão, a pia de Carrara, as torneiras de prata, tudo isto sobre um piso vitrificado, listrado em branco e preto requerendo, por sua transparência e viço, que se ande em redobrado cuidado e atenção.

Em conversas fortuitas ia se inteirando da vida e da personalidade do felizardo por aquele mundo que o encantava. Ele estava certo de que viera parar no lugar ideal à execução do seu principal objetivo. Conheceu finalmente o seu patrão. Tinha mesmo o jeito que ele imaginara: a figura do dedicado homem de negócio; decidido no falar, econômico com as palavras e zeloso a cada minuto do tempo que não pode ser desperdiçado. Pouco lhe dirigiu a palavra além de um cumprimento e “seja bem vindo à casa”. Mas como já estava sendo orientado para outras tarefas que iam além dos cuidados com o jardim, Rabelo ganhara a sala de jantar e, em seguida, a sala de visitas do empresário. Agnelo Chaves, o poderoso homem, rodeava-se do conforto e dos empregados que a abastança pode proporcionar. A sala, em que gastava as pouquíssimas horas em casa, assemelhava-se muito mais a um salão de convenções, tal a amplitude, acrescida de um conforto senhorial. Rabelo esteve algumas vezes ali, na presença do magnata. Estudou-o pormenorizadamente; seus gestos, suas atitudes, o tom de voz ao dirigir-se aos empregados.

Até que a noite, trazendo sua quietude peculiar, caiu também sobre a imensa área da propriedade. Agnelo já se via em trajes sumários, pronto para a sua noite de repouso; só que não contava com a grande surpresa que o aguardava. Rabelo não deixara a mansão. Passara todas aquelas horas, desde o momento em que se despedira o último empregado, em um pequeno aposento para empregados, contíguo à copa. Ali ficaria até que o homem surgisse para tomar uma água ou outra coisa qualquer. A mulher do magnata já dormia àquela hora. Sabia dos hábitos noturnos do homem; logo, não tardaria a aparecer. Foi o que se deu. Ao senti-lo ali, Rabelo roda a maçaneta da porta e se mostra ao empresário. O homem não esboça surpresa, susto ou qualquer outro sentimento perturbador ao ver Rabelo a sua frente quando já não havia mais movimento de espécie alguma e a madrugada já se iniciara.

- Posso saber o que faz no interior da minha casa a estas horas? Desde quando dou ao senhor esta liberdade? – perguntou o homem.

- Não me importo com o que pensa sobre liberdade. Não tem a mínima noção do que seja isto.

- Acredito então que estou falando com um desocupado que vive de arquitetar planos para penetrar na casa dos outros e os roubar. É disso então que vive?

- Cuidado com as palavras! Saiba que o tenho em minhas mãos.

- Não tenha tanta certeza disso. Não sabe com quem está falando. Além do mais posso acabar com sua raça se assim o desejar.

- Este é o grande mal de todos os ricos; acham que são superiores. Não conseguem distinguir um bandido de um cidadão comum e trabalhador. No tenho medo da sua laia. Dependem de nós para tudo que precisam desenvolver na vida. E não reconhecem isto. Pagam um salário de fome aos seus funcionários e vivem esbanjando em boates e sustentando amantes. Não hesitam em mostrar que tomam vinho de dois mil reais a garrafa e ainda se ofendem quando são chamados de ladrões e sem vergonha.

- Veja como fala comigo, seu salafrário! Posso colocá-lo para fora de minha casa agora mesmo e quando sair já encontrará homens da lei para levá-lo para onde é o seu lugar; o fundo frio de uma cela.

- Não vai fazer isto porque não tem essa coragem e, antes que tente já será um homem morto pelas minhas mãos. Vocês são todos iguais. Apoiam-se na lei porque sabem que poderão comprá-la a qualquer momento. E fazem isto com toda tranquilidade do mundo e sem grandes perdas porque é o dinheiro daqueles que vocês escravizaram que está sendo usado para isto. Por isso vim essa noite para matá-lo. Mas sei que não adiantará muita coisa porque sua raça é como coelhos; nascem aos montes mesmo que queiramos acabar com ela.

- Não pense que vai me amedrontar com sua ameaçazinha. Você fala em coragem. Pegue na sua arma e mande um tiro se tiver essa coragem. Dizer para mim que tem uma arma; um desclassificado como você, que mal tem aonde cair morto. Definitivamente, não a tem, senão já a teria utilizado. Vamos, me mostre essa arma – e deu dois passos na direção de Rabelo.

- Alto lá, indivíduo! Dê mais um passo e o mando para o inferno. Não pense que sou um empregadinho seu a quem pode dar ordens e tratar como idiota ou marionete. Não sou desses, fique sabendo. O que é sociedade para você; explorar os menos afortunados que não tiveram o privilégio de um diplominha de merda? Saiba que estou me lixando para o que diz ou o que pensa.

- O que faz em minha casa? Se veio para roubar está no lugar certo. Pegue então o que quer e caia fora da minha presença antes que eu o quebre de pau. Este corpo magro e raquítico não deve ver comida por uma boa dúzia de horas. Mas acho que não é isto o que quer, senão já o teria feito. Por que não age como um homem e procura um trabalho? Penso, entretanto que trabalho é tudo o que não deseja; quer viver à custa de quem faz pela sociedade.

- Ah! Ah! Ah! O que você faz pela sociedade? São todos uns interesseiros e desonestos!

- Veja o que eu consegui seu imbecil!

- Vou dizer o que conseguiu: O amparo de um governo corrupto, tal como todos vocês; o ódio do cidadão pobre que se mata no trabalho para enriquecê-lo cada vez mais e ainda é visto como escravo de um sistema. A complacência de outros poderosos para que continuem, mesmo roubando por debaixo dos panos, a satisfazer a ambição deles. É isto o que conseguiu. Sabe por acaso se eu tenho ou não o estudo que acha privilégio exclusivo da sua casta? Sabe quantas horas de cadeira esquentei até chegar aonde cheguei? E aonde eu cheguei, eu pergunto? Responda-me: aonde chega um desaforado pela sua elite que só pensa em sugar sem recompensar igualmente?

- Pode chegar mais longe do que imagina. A sociedade a qual você se refere e diz que nos protege por que somos desonestos é a mesma que poupa a vida desgraçada que levam os da sua corja, investindo o nosso dinheiro em tentativas frustradas de reerguê-los e reinseri-los dentro dessa mesma sociedade. Se tivesse um pouco mais de dignidade esforçar-se-ia para somar-se aos que querem diminuir a podridão que vocês andam espalhando. Sanguessugas, desocupados e ladrões da paz, isto é o que são. Tem sorte de encontrar um que ainda acredita na recuperação do malfeitor. É uma questão de mudança dentro do nosso próprio regime.

- Chegou finalmente aonde eu queria: mudança de regime. O que é mudança de regime para você? Duvido muito que consigam mexer em algo que está beneficiando o seu interesse. Quem disse que o meliante não quer ser melhorado? Não julgue apressadamente, baseando-se na aparência; este é o mal de vocês. Vem me chamando de bandido, de um cancro dentro da sua sociedade. Quando falo do meu estudo, me refuta dizendo que, mesmo tendo-o, não cheguei a parte alguma com ele. Vou dizer: Afirmo que tenho mais horas de estudo do que tem você de dedicação ao seu trabalho. Então, o que consegui com isto? Definitivamente, não creio que valha a pena estudar. Não se for para se transformar em homens astutos e desonestos como vocês.

- Não sabe o que está dizendo. De que vale o estudo sem a sabedoria? Não é o que você sabe que conta, mas aquilo que faz com o que sabe. E agora sou eu quem pergunta: O que tem feito com todo este estudo que diz ter? Acha que é invadindo casas no meio da noite que conseguirá algo da vida que valha a pena? Vire as costas, abra aquela porta e saia da minha casa. Já perdi tempo demais com você. Leve o que desejar se acha que isto vai contribuir para a sua felicidade.

E Rabelo dirigiu-se para a porta da rua e saiu no meio da noite. Não levava objeto algum da casa do milionário. Mas sua consciência estava repleta das palavras que ouvira, pululando dentro de sua mente aflita.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 09/03/2025
Reeditado em 11/03/2025
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