Um amigo de Cristo
Pouco antes da duodécima hora, sol se pondo, fiz os últimos preparativos para minha incursão noturna ao acampamento romano. Preparei três dardos com veneno, nos quais havia previamente gravado uma frase em latim que seria útil na identificação dos inimigos de Roma a serem responsabilizados (supondo que os romanos tivessem um mínimo de inteligência, claro). Finalmente, depois de haver jantado com meu anfitrião, despedi-me dele e agradeci pela acolhida.
- Que o Senhor dos Exércitos o abençoe! - Desejou-me ele, com satisfação.
Pensei comigo mesmo que ele bem poderia estar se referindo à Ares, mas certamente não era esse o caso.
Portanto, por volta da segunda vigília, noite fechada, montei no cavalo preto que havia sido colocado à minha disposição e tomei o rumo da saída sul da cidade. Eu precisaria do manto das trevas para cumprir a minha missão, e até mesmo a lua parecia disposta a dar a sua contribuição e desaparecera por trás das nuvens, enquanto eu cavalgava pelas ruas desertas.
Às portas da cidade, os sentinelas me receberam com as lanças apontadas para mim.
- Alto lá!
Sofreei o cavalo.
- Sou médico, preciso ir atender um paciente - anunciei, num tom imperioso usando o meu melhor grego de Damasco.
- Desculpe, doutor - disse um dos sentinelas, fazendo sinal para que o outro abrisse os portões.
Portões abertos, tomei a estrada que me conduziria até o acampamento, mas entrei por um caminho secundário cerca de dois estádios antes de chegar ao destino. Ali, em meio a um bosque de sicômoros, apeei e prendi o cavalo por uma corda a um galho baixo. O animal poderia pastar e se movimentar, caso fosse ameaçado por algum predador - o que eu sinceramente esperava que não ocorresse, pois colocaria em risco as minhas possibilidades de fuga. Troquei então minhas roupas civis por uma túnica e sandálias de legionário, pus meu "scorpio" à tiracolo devidamente carregado com um dardo, e munido de sílex e material inflamável, encaminhei-me para o local onde os romanos dormiam, aguardando o raiar do dia para seguir para Jerusalém.
O meu plano era simples: pouco antes da troca de guarda na terceira vigília, eu iria causar uma distração e, aproveitando-me do tumulto, iria atrás do meu alvo. Assim pensando, aproximei-me cautelosamente do acampamento, e localizei a estrebaria onde eram mantidas as mulas de carga. Aquele seria um local perfeito para começar um incêndio, pois possuía muita palha acumulada, e os animais certamente não estranhariam um soldado passando no meio deles. Portanto, deixei o "scorpio" e os dardos num ponto estratégico por trás de uma árvore, bem próximo ao limite ocupado pelas tendas e voltei à estrebaria; o que eu não esperava é que houvesse um outro soldado por lá - também vestido apenas com uma túnica, o que indicava que não estava de serviço.
- Ei, bom dia companheiro! - Saudou-me em grego, de um modo festivo que me fez supor que estivesse bêbado.
- Também não conseguiu dormir? - Indaguei, aproximando-me. Sim, o homem tinha bafo de álcool e certamente teria problemas se fosse encontrado naquele estado por um superior hierárquico.
- Sempre preciso beber antes de ir para Jerusalém - confidenciou-me, subitamente íntimo. - Odeio àquela cidade!
- Então, somos dois - redargui com sinceridade. - Mas veja... não é o centurião Calenus quem vem ali?
Quando ele se virou, apavorado pela perspectiva de ser flagrado bêbado, dei-lhe um murro na têmpora direita com toda a força. O homem foi à nocaute e tive que ampará-lo para que não se machucasse ao cair. Em seguida, arrastei-o para fora do acampamento e amarrei-o e amordacei-o cortando em tiras a própria túnica dele. Não tinha a intenção de matar ninguém além do prefeito, exceto em caso de absoluta necessidade, o que não era o caso.
Resolvido o problema extemporâneo, voltei ao plano original. Derramei um pouco de betume da Judeia em vários pontos das pilhas de palha das mulas e depois ateei fogo com uma pedra sílex. Quando as chamas começaram a se propagar, afastei-me rapidamente do local e dei a volta ao acampamento, esperando que alguém desse o alarme. Efetivamente, depois de alguns minutos, os zurros das mulas aprisionadas na estrebaria em chamas atraíram a atenção das sentinelas. Foi só então que, após recuperar o meu "scorpio", adentrei o acampamento, gritando junto com os demais soldados, despertos pela confusão:
- Fogo! Fogo!
E enquanto todos acorriam para o local do incêndio, eu já havia localizado a tenda de Pôncio Pilatos. Havia apenas um legionário de guarda, na entrada, e eu recorri novamente ao meu grego imperioso de Damasco:
- Soldado! Não percebeu que há uma emergência? Vá lá ajudar!
- Desculpe, senhor mas...
- Eu fico aqui montando guarda, vá lá cumprir o seu dever!
O legionário partiu esbaforido. Foi só então que armei o "scorpio" e entrei na tenda. Diante de mim, já de pé, e também vestindo uma simples túnica, estava Pôncio Pilatos.
- Que confusão é essa? Quem é você? - Questionou ele em grego.
- Um amigo de Cristo - respondi, antes de disparar contra ele, cara a cara.
- [Continua]