Lilás

Estava certo que a mulher o traía; o comportamento quando o amigo os visitava — as mãos inquietas, os dedos tocando os lábios quando o olhava, o tom da voz era diferente quando lhe dirigia a fala, com o cuidado que normalmente as mulheres utilizam com as crianças, com tom vocal mais agudo e adocicado, o olhar rabiscava no ar que algo estava acontecendo, e Joaquim já não podia negar. No último verão, no sítio em Serra Negra, a mulher e o amigo desapareceram na festa. Todos os procuraram para as fotos; apareceram com alguns minutos de diferença, mas para Joaquim os comportamentos eram igualmente artificiais. A mulher disse estar no carro retocando a maquiagem; o amigo que havia ido à cidade comprar cigarros. Poderia ser apenas um delírio, pensava Joaquim, mas ao mesmo tempo um instinto quase ancestral o corroía.

 

O amigo era mais jovem que Joaquim, o captar de alguns olhos diria que era bonito, não pelos traços, mas pela forma de ser; chamava sempre a atenção pra si, aparentemente de forma natural, não só das mulheres. Tinha uma dessas personalidades magnéticas que não sabemos ao certo se é fingimento ou autenticidade, que incomoda e ao mesmo tempo atrai; músico, artista de rua, uma cara de palhaço sombrio, pálido, olheiras, fala rebuscada; gostava de dissertar suas teorias e pensamentos superficiais como se fosse a filosofia mais profunda. Joaquim, no fundo, nutria inveja mais do que propriamente amizade. Passavam horas discutindo literatura, música; falavam como especialistas de coisas que não entendiam absolutamente. Um completava o sentimento de grandeza do outro. O amigo contava sobre as aventuras sexuais, a vida noturna nos prostíbulos da cidade, exibia fotos das mulheres que conhecia através da internet... Joaquim sempre se inferiorizava, não teve coragem de exercer a arte como o amigo – na sua juventude, por pressão da família, largou a música pra ter um emprego formal e a vida de casado o impossibilitava de qualquer coisa além da monotonia. Tinha uma vida confortável, enquanto seu amigo vivia de forma incerta, sendo — segundo a propaganda feita de si mesmo — irregular e descompassada.

 

A mulher quando conheceu o amigo disse não ter ido com a cara, reclamava dos dois saírem, se isolava no quarto em suas visitas. Joaquim pensando sobre isso viu mais um motivo pra se ter certeza dessa traição, pois, em geral, uma mulher quando está atraída por um homem tende a dizer que odeia, que não vai com a cara, que é chato, insuportável... Era Professora de dança em um centro terapêutico ocupacional e no último ano passou a dar aulas particulares a domicílio. Joaquim concluiu que não passava de um pretexto, pois, apesar da mulher ser comedida e prezar apenas pelo essencial, não notou diferença concreta em seus gastos. Pensou fingir trabalhar por alguns dias e segui-la, mas, no final, preferiu contratar um detetive — no fundo por medo da verdade e, mentindo pra si mesmo, que era melhor um profissional.

 

No dia da visita ao detetive, seguiu todos seus rituais matinais: passou a camisa, engraxou os sapatos, tomou seu café com dois ovos fritos, polvilhados com 10g de uma proteína extraída de ossos bovinos. De saída, a beijou de forma demorada, pedinte, espalmou as mãos sobre sua face, encostou a testa sobre a dela, em um movimento circular percorreu levemente seu rosto, vasculhando em seus olhos um último resquício que o fizesse desistir da ideia. Ela friamente o olhou e não disse nada diferente do que sempre dizia nas despedidas, mas de forma longínqua, decorada e um tom na voz continuo e sem as nuances que denotam a emoção na fala. De fato, nunca foi uma mulher expansiva, mas esse último toque, esse último olhar e o lábio imóvel do beijo fez Joaquim mergulhar em confabulações e amontoados internos; teve medo.

 

No centro da cidade, no Largo do Paissandú, encontrou o endereço do anúncio: um edifício da década de 50, amarelo, esmaecido; na entrada o porteiro cochilava, as mãos entrelaçadas entre as pernas, Joaquim pensou que a barriga do homem ganhava ares que iria explodir com peso do corpo envergado pra frente. Ao se aproximar, notou que havia resquícios ressecados em seu bigode, que unias as pontas dos fios umas as outras. O homem respirava de maneira chiada e descompassada, como se fosse morrer a qualquer momento. Joaquim o tocou com a ponta do dedo como quem toca um cadáver pra conferir se realmente está morto, dizendo:

 

– Senhor... Senhor?

 

O homem apenas grunhiu um som profundo e respirou longamente. Joaquim pousou a mão sobre seu ombro, mas nada. Pela dobra da camisa puxou seu braço. Como se acabasse de levar uma descarga de energia, o velho abriu os olhos embebidos de uma lágrima espessa nos cantos que Joaquim ouviu um som aquoso quando o homem piscou os olhos osciladamente rápido; arregalou e disse:

 

– Opa, bom dia S'or.

 

Joaquim sentiu o calor do hálito do homem, uma mistura de álcool e putrefação.

 

– Estou aqui pra visitar o Moacir, o Detetive.

 

– Ah... o Pedreira... No 9° andar, só subir.

 

O prédio não possuía elevador e Joaquim — olhando a paredes descascadas, o piso da escadaria desbotado e rachado, os corrimãos soltos — concluiu que aquele lugar ainda era como foi construído; pensou em desistir. De uma das portas, rente a escada do andar pelo qual passava, sai uma mulher: seios expostos, já sem vida, debruçados sobre o tronco; a barriga — apesar de sua magreza esquálida — pendia por cima da lingerie vermelha translúcida, de onde se via o sexo escurecido, de lábios amarrotados; tatuagens esverdeadas cobriam seus braços e seios e não era possível identificar os desenhos. A mulher olhou pra um lado, para o outro, vendo Joaquim, apoiou-se no vão da porta, colocou as mãos na cintura, flexionando uma das pernas e apoiando o pé ao portal; balançou os cabelos no mesmo ritmo que disse:

 

 

 

– Oi, anjo! Uau... é você?

 

Joaquim não respondeu, continuou subindo ofegante — estava fora de forma, não fazia nada além de trabalhar em uma repartição do Tribunal de Justiça de São Paulo, onde ocupava um cargo na chefia do setor de T.I.. Consertava os computadores do edifício, mas sempre engordava as palavras ao falar para as pessoas onde trabalhava, suprimindo sua função. Chegando no andar, bateu a porta. De dentro:

 

– Um momento!

 

Joaquim escutou barulhos: gavetas abrindo e fechando, papéis, moedas... Depois silêncio, surgiu um homem na porta, acompanhado por uma nuvem de fumaça de cigarros:

 

– Pois não...

 

– Estou procurando o detetive pra um trabalho. O senhor é o Moacir?

 

– Sim, mas não me chama de Moacir, me chama de Pedreira.

 

Afastou a porta, convidando Joaquim a entrar; continuou:

 

– Pedreira é por causa do meu sobrenome, Pedroso, como você já deve ter se ligado.

 

Joaquim deu uma olhada no lugar: sobre a mesa um cinzeiro com guimbas de cigarros e cinzas caindo nas beiradas, um push dagger com o cabo em madrepérola, na parede alguns certificados, poeira por toda parte, pairando em contraste com a fumaça e uma lâmina de luz que entrava pela fresta da janela; uma medalha condecorativa da polícia, fotos em clubes de tiro segurando metralhadoras, escopetas, revólveres de todos os calibres, até mesmo um lança míssil, em todas com o mesmo orgulho nos olhos e um charuto pela metade entre os dentes; como se tivesse acabado de realizar uma operação de guerra, acompanhado sempre dos mesmos homens — todos de meia idade, ostentando masculinidade, tatuagens e armas. Acendeu um cigarro e o trago inicial consumiu quase a primeira metade do cigarro; despencou na cadeira, liberando um odor que Joaquim mal pôde suportar; disse, inclinando o corpo sobre a mesa e entrelaçando os dedos:

 

– Em que posso ser útil, mestre?

 

– Difícil falar, mas vou ser objetivo: acho que minha mulher está me traindo. Sabe o que é pior? Da forma mais clássica e babaca: com meu melhor amigo.

 

– Entendo, entendo. Fica tranquilo, a maioria dos casos em que trabalho é de traição, já estou acostumado, pode falar abertamente, não haverá julgamento. Aliás, uns 95% dos homens que me procuram suspeitam de suas mulheres.

 

– Tanto assim?

 

– Tanto assim

 

– E desses 95%, quantos realmente estão sendo traídos?

 

– Ah... eu diria que uns 90%. Essas coisas a gente sente, e quando a gente sente... pode esperar, vem chumbo... ou vai chumbo, que é o que alguns desses homens dão quando eu entrego o trabalho feito. Amigo, analisa bem se é isso que você quer. Não me responsabilizo por nenhuma desgraceira. Já ví muitos homens, alinhadinhos como você, virarem o cão.

 

– Sei... mas quero apenas saber, tirar essa dúvida de uma vez por todas e, se for caso, eu apenas sumo no mundo.

 

– Se é assim...

 

Acertados os detalhes, descendo as escadas, Joaquim escutou três estampidos ecoarem dos andares abaixo: o primeiro e, alguns segundos depois, seguidamente, mais dois, acompanhados por gritos. Parou por um momento, hesitou em continuar a descer, mas resolveu continuar — a curiosidade acabou fazendo mais efeito que o medo. Ao dobrar o lance de escada, que dava acesso ao andar de onde vinham os sons, um homem saiu em disparada escadaria abaixo. Joaquim colocou metade da cara pra ver o que acontecia. A mulher que gritava era a mesma que havia visto horas antes; correu em sua direção com os braços extendidos, gritando e apontando para um dos quartos com um vibrato na voz que cortava os corredores e seus ouvidos:

 

– Ajuda, moço? Ajuda, moço! Mataro a Fabiana! Mataro a Fabiana!

 

Joaquim andou até a porta; dentro estava uma mulher sobre a cama vestindo apenas a parte de baixo da lingerie; suas pernas estavam sobre o colchão e seu tronco pendendo pra fora; entre seus cabelos vertia sangue, formando um círculo que aumentava de tamanho rapidamente; o corpo escorregava lentamente, até que cair, produzindo um som cadente dos membros batendo ao chão de madeira. Joaquim havia visto algo do tipo apenas nos filmes e sempre que via ficava aflito, mas, estranhamente, não sentiu nada. Olhou tudo detalhadamente: os cabelos loiros do que agora percebeu ser uma peruca, a lingerie cor de pérola rendada, a cinta liga arrebentada, os scarpins aveludados cor de violeta, uma tatuagem de um tubo de ensaio borbulhando corações em um de seus seios, os incensos espalhados pelo quarto, a fragrância de lavanda misturava-se com o metálico do sangue.

 

A mulher explicou que a moça havia recebido uma mensagem de um perfil anônimo em uma rede social, dizendo que sabia tudo sobre sua vida de puta, que contaria ao noivo.

 

"Eu avisei pra ela mudar de local" – Disse com algumas sílabas separadas por soluços, levantando a ponta do nariz que pingava em movimentos verticais repetidos com a palma da mão.

 

Pedreira chegou em seguida; falava ao telefone, acalmou, pois a polícia estaria a caminho. Joaquim menciona ter visto o homem, mas que não conseguiu ver o rosto, em função da altura em que estava na escadaria e o boné do homem impedirem. Não queria permanecer alí até a chegada da polícia — o desconforto que isso geraria, prestar depoimento... Pedreira o tranquilizou afirmando não haver câmeras e que não o citaria.

 

Saindo do prédio, pensando na natureza do ocorrido, na coincidência e na ironia... soou como um mau presságio. Ia rumo a estação do metrô em passos cada vez mais rápidos. No meio da multidão, sua calma deu lugar a uma falta ar imobilizadora — sua visão se tornou espectral; se iniciou uma chuva fina e volumosa, todos olhavam a estranheza da forma como andava: olhando para todos os lados, duro e reto, os braços cruzados e enterrados contra corpo com evidente força. Chagando a República, onde pretendia pegar o metrô, rumo já não sabia pra onde, um choro quicou descompassado por suas narinas; as pernas enfraqueceram, perdeu o senso de direção e profundidade, a audição sensível, como se pudesse captar frequências que apenas certas criaturas são capazes; perdido envolta de si, despencou ao chão. Todos o olhavam, apenas olhavam.

 

Miriam... Inteligentíssima, nervosa, irônica, atenta a tudo. Julgava que esse era seu problema — ver demais as coisas, perceber demais as coisas. Uma mistura de Ana C. com Mia Farrow, como se auto imaginava. Pintava quadros, fazia esculturas em argila e gesso, pinturas em porcelana... sempre envolvida em atividades artísticas; linda, elegante, e sabia disso; despertava desejo nos homens, tanto quanto inveja nas mulheres. Mesmo tendo um círculo social amplo e constante, Miriam passou a sentir nos últimos anos um vazio existêncial, já não sabia mais a direção de sua vida, não via mais sentido em fazer planos e na dança — coisa que amava e estava intrínsecamente ligada a sua personalidade. Estava deixando de gostar de si, e o convívio com o marido se tornou silencioso, de palavras repetidas, gestos vazios, cordialidades textuais... já não se sentia desejada e também não o desejava.

 

No metrô, nas ruas, sentia os olhares dos homens a cobiçando. Miriam passou a ter necessidade de provocar os homens, uma forma torta e carente de autoafirmação. Onde quer que estivesse, fossem homens que julgasse atraentes ou o contrário; os provocava com seus gestos mínimos, premeditados, lentos, numa dança quase subliminar. Tinha um olhar orgulhoso, altivo, os movimentos de suas pálpebras eram lentos ao piscar e seus olhos grandes, verdes, se movimentavam como uma onda lenta vista do alto. Passou a ter um desejo compulsivo de ser notada, desejada, odiada, que fosse, gostava deixar dúvidas nos homens, gostava de vê-los com medo e incrédulos quando ela os seduzia. Haviam os que a fitavam corajosamente e lascivos. Quando Miriam notava seus destemores, logo passava a ignorá-los – na sua auto explicação, dizia que gostava da fragilidade, dos homens que se mostravam submissos, covardes, sem habilidade com as mulheres, como se tivesse promovendo caridade a um moribundo. Inconscientemente, não passava do medo de ser abordada e que os resultados fugissem do seu controle.

 

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– Alô, Joaquim?

 

– Quem é?

 

– Pedreira, porra...

 

– Fala Pedreira

 

– Então, fiquei na cola, mas está tudo batendo: ela sai do instituto ou pra ir pra casa ou pra dar aula, sendo que está dando aula pra uma criança retardada e tudo... Tirei fotos para o senhor ver. Quer que eu continue ou já podemos parar por aqui?

 

– Vou passar aí hoje às 16 horas, pode ser?

 

– O senhor é quem manda

 

Joaquim desliga e uma decepção toma seus pensamentos; tenta dribla-la repetindo que estava feliz e aliviado, mas aquele pontilhado de insatisfação insistia, pois, inconscientemente, pra Joaquim, talvez fosse melhor provar que Miriam era uma "vagabunda" — como a chamava em suas explosões internas — e provar pra si mesmo estar certo.

 

Chegando em casa, vê Miriam na varanda sobre a rede, com um livro aberto com as páginas pra baixo sobre seu peito; com a palma da mão pousada sobre a capa; os olhos congelados, olhando uma direção fixa no horizonte cinza dos prédios, permaneceu assim durante os minutos que ele a observou. Joaquim pensou em como era bonita, como teve sorte, que talvez não a merecesse; se ainda o amava, ou mesmo se ele ainda a amava, ou talvez ambos apenas estivessem mergulhados em uma conveniência preguiçosa de libertação. Correu a porta de vidro e Miriam emergiu de volta de seus pensamentos.

 

– Que susto... Chegou cedo.

 

– Sim, tenho que ir até o centro resolver algumas coisas, quer alguma coisa?

 

Em um tom rouco de esforço ao levantar da rede, diz:

 

– Não, tenho aula, já vou sair também.

 

Joaquim, voltando ao edifício, vê algumas mulheres nos corredores dos andares. Ao dobrar o último lance de escadas que dava acesso ao andar de Pedreira, quando levanta a cabeça ao sentir uma presença, no último degrau do lance, uma mulher parada o fitando; bloqueia sua passagem colocando a mão sobre seu peito, apoiando primeiramente as pontas dos dedos e movendo-os de maneira lenta e expansiva, até que a palma da mão o toca. Joaquim se sentiu impelido a parar; olha a mão sobre seu peito e, com uma fisionomia pousada de raiva, olha de volta para a mulher.

 

"Onde você pensa que vai?" – Disse ela, enquanto insere o dedo do meio no vão entre os botões da camisa de Joaquim. Ele a encara: as maçãs do rosto protuberantes davam-na um ar exótico; o queixo quadrado, avantajado, o lábio abrindo lentamente, revelando seus dentes de aspecto animalesco, somados ao traço esticado dos olhos; uma de suas retinas possuís a cor branca, em função da perda da visão, dando um aspecto intrigante e hipnótico. A luz entrava lateralmente iluminando a seu outro olho dando um tom avermelhado ao castanho claro. A expressão confundiu Joaquim, entre ser sexual e malevolente.

 

– Você pode tirar a mão de mim?

 

– Depende, para por aonde?

 

Em um movimento com a mão, similar ao movimento de um ataque de um felino quando abocanha a presa, agarrou o pênis e os testículos de Joaquim, movimentando o corpo rapidamente contra o dele, como num golpe. Coloca a outra mão em sua nuca, deixando mechas saírem entre os dedos enquanto o acariciava. Aproxima lentamente os lábios dos lábios de Joaquim — que sente o ar de sua boca —; ela diz susurradamente:

 

– Lembro de você naquele dia.

 

Joaquim, emulando ironia, diz:

 

– É? Qual dia?

 

– No dia da morte da menina. Te vi no corredor. Não é comum ver seu tipo aqui, não dá pra não notar, e nem esquecer.

 

Vasculhando sua fisionomia, Joaquim percebeu uma beleza imprecisa, em função de seu aspecto vulgar das ruas — em sua concepção moralista, embora no cotidiano tentasse parecer o contrario —, e que talvez ela sequer soubesse dessa beleza; que com outras roupas, diferentes da que estava, estaria dentro de seus padrões ideais pessoais. Joaquim se afasta e delicadamente diz:

 

– Preciso ir

 

Quando Joaquim dá as costas, ela segura sua mão e com um tom infantilizado diz:

 

– Espera, não vai.

 

Ao se virar; vê que a expressão dúbia que havia visto antes deu lugar a uma outra: de tristeza. Ela continua:

 

– Gostei de você, sabia? Desde aquele dia. Porque não nos encontramos outro dia então? Poderia ser até em outras circunstâncias, que não a de puta e seu cliente. Poderia ser um café, uma caminhada pela cidade vendo as coisas... Você deve estar me achando louca, eu sei. Apenas digo o que tenho vontade, muita gente por aí, nas ruas, no metrô, vê gente que sente vontade de trepar alí mesmo se for o caso, mas joga por baixo dos tapetes. Ou estou errada? Eu não, falo o que penso e o que quero.

 

Ela abre uma pequena bolsa pendurada em seu ombro, apanha um cartão, volta a palma da mão de Joaquim para cima e o coloca lentamente, fechando seus dedos sobre o cartão. Joaquim o guarda sem olha-lo e segue.

 

Depois de acertar que Pedreira iria continuar investigando Miriam, retornando pelas escadas, ao não ver a mulher respira aliviado.

 

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"Estou indo embora. Achou mesmo que eu não perceberia que você colocou aquele brucutu pra me seguir? Como você foi capaz?"

 

Joaquim trêmulo amassa o bilhete, desliza as costas na parede até sentar ao chão; chorava emitindo sons picotados com a garganta, engasgando com a própria saliva.

 

Nos meses seguintes, volta a fumar, não se alimenta, tem preguiça de tomar banho, passa a carregar na tira-colo um cantil, mantendo-o abastecido de conhaque; a barba serrada, a aparência de sua pele assume um tom verdoengo; não lava suas roupas, repetindo-as por dias na semana, os colegas de trabalho, e até mesmo seu amigo, passam a evita-lo.

 

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"Fala, Toninho! Abastece com aquele!" – Diz Joaquim com a fala pastosa e batendo o cantil no balcão. Mete a mão no bolso e, ao tirar alguns trocados, um papel cai ao chão, o apanha e vê ser um cartão branco, gravado com um número telefônico em lilás metálico; não havia nome. Instantâneamente lembra da ocasião nas escadarias.

 

Naquela mesma noite, na sacada do apartamento, Joaquim está Imóvel vendo as coisas; os barulhos das ruas o transpassava: buzinas, um "filho da puta!" gritado por uma mulher na sacada do edifício ao lado, um avião cruzava melancólico o céu; a cinza ocupava a extensão do cigarro, rodava o cartão com a mesma mão que o segurava. Cai a cinza, golpeada por uma gota; Joaquim olha o céu... a chuva. Em poucos segundos o molha por completo. Pessoas fogem nas ruas abaixo, riem umas com as outras, se escondem nas marquises, vendas e bares, o vento forte vira ao contrário o guarda-chuva de uma moça, que solta um grito agudo. Joaquim permaneceu, pois há muito tempo não sabia o que era a chuva. O vento sopra o cartão de sua mão, que rodopia em direção a rua. Joaquim corre pelas escadarias antes mesmo de conferir onde poderia ter caído. Ao chegar à calçada, corre os olhos para todos os lados, mas não o vê. Em uma poça, frente a seus pés, cai o cartão boiando e as luzes dos carros iluminam a gravura lilás.

 

Acorda na manhã seguinte ainda sob efeito efeito de álcool. De forma esganada, bebe 3 copos d'água, enchidos na torneira da banheira. Coloca os óculos escuros deixados por Miriam, abre a porta e digita o número do cartão. O telefone chama diversas vezes enquanto ele passa a andar pela casa, senta ao sofá, apanha um cigarro deixado pela metade da noite anterior, ascende e reclina a cabeça, enquanto o telefone continua chamando.

 

"Alô" – Diz a voz rouca de uma mulher.

 

Joaquim não diz nada; ela repete:

 

– Alô! Ah... vai à mer...

 

Joaquim responde "Alô" antes que terminasse.

 

– Você me deu um cartão com esse número, na escadaria há alguns meses atrás, me segurou pelas bolas...

 

Joaquim escuta uma risada alta do outro lado.

 

– Claro que lembro. Nossa, mas resolveu ligar somente agora? Está querendo dar um passeio, um jantarzinho?

 

Joaquim, sentindo o tom irônico, responde:

 

– Não, somente um programa mesmo.

 

– Melhor ainda.

 

Diz abrir uma excessão e recebe-lo em seu apartamento no centro velho. "Mas tem que ser hoje" – Disse ela.

 

Ao entardecer, Joaquim chega ao endereço. Toca o interfone, de onde sai a voz:

 

– Sobe.

 

– Como você sabe que sou eu?

 

– Sobe.

 

O portão se abre e Joaquim sobe as escadas arredondadas do prédio. Chagando ao apartamento vê a porta entreaberta; ele entra e não vê ninguém.

 

"Já estou indo, fica à vontade" – Grita ela do banheiro.

 

Joaquim examina o caos do local: caixas vazias de fastfood e pratos sujos em uma mesa no centro da sala, roupas caídas pelo chão; sentiu um cheiro que intercalava entre maconha e mofo; um cobertor cobria o sofá, que de trás vinha um grunhido que Joaquim achou estranho. Andou até o centro para ver o que era e viu um cachorro de cara amassada respirando rapidamente, emitindo um som que, somado ao cheiro e a ambiência do local, causou-lhe mal estar no estômago. Se vira e a vê nua, secando os cabelos. Joaquim simplesmente a beija e a carrega até cama e, sem trocarem mais nenhuma palavra; fazem sexo durante toda a tarde.

 

"Virna" – disse ela depois de um orgasmo, virando o corpo para o teto e pousando o antebraço sobre a testa.

 

"Como? Não entendi" – pergunta Joaquim

 

– Meu nome é Virna, e o seu?

 

– Joaquim

 

"O importante é ter saúde" – Disse ela rindo descompassadamente, fazendo a cama tremer.

 

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Nos meses subsequentes, Joaquim e Virna fazem do apartamento um refúgio da realidade deletéria da metrópole. Joaquim sempre viveu em ambientes organizadamente estéreis, de falas moderadas, formalidades; seu pai, desde a infância, o cumprimentava com um aperto de mão, em uma atitude que, para Joaquim, mais parecia a atitude de um executivo que encontra seu cliente do que propriamente de pai; nunca o abraçou ou sorriu pra ele. Sua mãe, excessivamente paranóica com limpeza e germes; limpava a casa até 2 vezes ao dia; ninguém era suficientemente limpo para sua mãe, sendo religiosa e patológicamente proibitiva. Com Miriam, embora em menor grau, o convívio também era sufocante, e só agora Joaquim havia se dado conta.

 

Virna intercalava ambivalentemente entre fragilidade e dureza rústica; afiava suas opiniões, políticas, contra os costumes da sociedade, o capitalismo, a pós modernidade e, apesar de não ter lado político, expressava sua aversão à direita ditatorial do país, travestida de senhorinhas de verde e amarelo —como dizia tomada de um tipo de raiva revolucionária, quase juvenil. Seus trejeitos beiravam o masculino e Joaquim mergulhava, dia a dia, no caos incandescente de Virna, servindo de corda para escapar de seu passado, onde foi amputado emocionalmente. Nunca havia experimentado aquele tipo de sexo — insano, em qualquer lugar: nas ruas, nos banheiros públicos, sem limites, compulsivo, desprovido de qualquer convenção. Joaquim descobre que possuía um certo conhecimento literário, conhecendo obras que mesmo ele ainda não havia conhecido. Ofuscava seu passado, e todo o mistério representado nos olhos dúbios de Virna fazia Joaquim descer cada vez mais baixo nesse convívio subterrâneo.

 

Certa vez, em um bar, o garçom, vendo a camera de Virna sobre a mesa, perguntou:

 

– Posso tirar uma foto do casal?

 

Ela responde :

 

– Não

 

O garçom solta um riso de quem gostou da piada e, mais uma vez, ela diz:

 

– Não, é sério. Não.

 

Ela olha pra Joaquim, dá com o canto esquerdo da boca estufada da mastigação, aponta em um movimento lateral rápido para o garçom com a cabeça, seguidos de três movimentos negativos para os lados.

 

Nesse momento, Joaquim se dá conta que a amava.

 

 

 

 

 

Antony
Enviado por Antony em 15/12/2024
Reeditado em 15/12/2024
Código do texto: T8219851
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