Vulneratis

Os cabelos castanhos presos do lado da cabeça como duas Marias Chiquinha. Os olhos verdes, bem fortes, grandes e acolhedores, e um sorriso faltando dois dentes da frente, era a temporada dos dentes caindo e novos chegando.

Milena gostava bastante. Cada dente que caia ela pegava e colocava debaixo do travesseiro antes de ir para cama; e quando acordava na manhã seguinte levantava o travesseiro com a foto do Bob Esponja e lá estava uma moeda, já eram cinco no total, de valores diferentes.

Pulou da cama e foi para o banheiro. Sentou-se no sanitário e minutos depois estava em frente ao espelho. Escova nos dentes e espuma na boca, ela riu quando viu o que parecia ser um bigode de pasta de dente desenhando seu rosto, parecia com papai quando estava se barbeando.

Com a mão esquerda deslizando pelo corrimão de madeira ela foi descendo as escadas de sua casa. A cara ainda estava com sono. Sentados na mesa da sala de jantar estavam a mãe, essa que vestia camiseta branca com dizeres estranhos em outro idioma e o pai, esse que de pernas cruzadas, folheava uma revista enquanto dava goles numa xicara fumegante.

Um beijo na mãe e outro beijo no pai. Milena sentou-se, esticou o braço pequeno de criança e vendo que não conseguia alcançar o que queria ela pediu para que a mãe pegasse para ela.

- Mããããe! – Disse Milena esticando a vogal para chamar a atenção da mãe.

- Oi, meu amor. O que você quer?

Milena apontou para a tigela de cereais e para a enorme vasilha com leite. A mãe pegou, serviu um pouco para a filha e a entregou nas mãos da menina.

- Obrigado, mãe, amo você!

- Eu também amo você, meu amor.

Fingindo ciúmes o pai interveio na conversa.

- E ninguém me ama?

Milena sorriu, levantou-se da cadeira meio sem jeito e com passos atrapalhados deu um abraço tão forte no pai, que por pouco podiam ser vistos corações surgindo como bolhas de sabão, que flutuavam no ar.

Milena estava vestida com o uniforme da escola. A mochila com rodinhas estava estacionada ao lado da porta. O pai vestia um paletó azul marinho e por baixo usava uma camisa branca com punhos num tom de azul mais claro.

Hoje era dia de ir à escola com a mamãe. Um dia a mãe no outro dia o pai; os dois se revezavam para levar e buscar a menina no colégio e no balé, o sonho de Milena era de se tornar bailarina quando crescesse.

Milena chamava atenção de todos na rua, desde os vizinhos que viviam elogiando os pais pela educação dada a ela, até os professores e colegas de classe que viviam em torno dela, como se ficar próximo dela fosse capaz de passar um pouco da simpatia que saia daquela menina.

Ela era rodeada de amigos. Na hora do recreio todos queriam sentar-se ao lado dela para comer o lanche. Lancheiras abertas. Frutas, Anas Marias, biscoitos recheados, sucos de caixinha, resumidamente era assim que as lancheiras daquelas crianças carregavam.

Milena comia uma banana, tomava seu suco sabor melancia, além de um pão com queijo e tomate, ela adorava tomate; a mãe colocava em tudo, no lanche, na salada do almoço e do jantar, não importava onde, mas tinha que ter o bendito tomate.

De volta a casa, Milena ia para o seu quarto onde ficava até a hora de tomar banho. Era um quarto de um bom tamanho, com paredes pintadas de lilás, com uma janela coberta com cortinas brancas. No canto havia uma mesinha onde ficava o computador e alguns enfeites, presentes dados por amigos da escola. Uma prateleira cheia de pelúcias. Nas paredes lilases, pôsteres de sua banda favorita. Na mesinha de estudo tinha um porta retrato com uma foto dela ao lado dos pais, era da última viagem.

Milena não foi mais vista desde que saiu da escola. Colegas e curiosos disseram ter visto ela entrar em um carro preto, mas sem saber exatamente qual o modelo do veículo.

A garota mais popular do colégio tinha sido sequestrada. Na sua casa os pais estavam apreensivos. Ambos andando para lá e para cá, com seus corações disparados de terror. Dentro daquela casa, não tinha apenas os dois, mas amigos, vizinhos e parentes tentavam de alguma forma tranquilizá-los, algo que naquele momento parecia ser impossível.

O telefone tocando e o coração de todos parando por um milionésimo de segundo. O pai tira o telefone do gancho, uma pausa dramática de silêncio e com uma voz fraquinha, na verdade um sussurro, o pai conseguiu dizer.

- Alô?

Os olhos daquele pai se arregalaram. Sua boca começou a tremer, assim como suas mãos e as pernas ficaram inquietas, batendo no chão tentando acompanhar o ritmo da canção maldita que eram as exigências dos sequestradores.

Os bandidos não queriam a polícia se metendo, pois se isso acontecesse a filhinha tão amada teria um final terrível. Mas não tinha como. Enquanto o pai tentava conversar com os criminosos, dois policiais davam instruções através de sinais.

Enquanto a conversa entre o pai e os sequestradores rolava, a mãe se escondia num canto qualquer da casa. Ela queria só um pouco de privacidade naquela maldita hora. Ajoelhou-se no piso frio, entrelaçou os dedos e como se pedisse a coisa mais impossível do universo ela começou a rezar.

Tão forte que lágrimas desceram de seu rosto. Deu para ouvir o telefone sendo desligado e deu para ver o pai sendo abraçado e consolado por um dos amigos da família.

Ela se aproximou tímida. E não gostou nenhum pouco, embora não tenha demonstrado, que toda aquela gente estava invadindo a privacidade deles. E como se percebessem, um a um foi se retirando, cada um desejando sorte e dando abraços da tentativa de confortá-los.

Os pais de Milena e os dois policiais se sentaram a mesa da sala de jantar e lá conversaram até anoitecer.

- Tenham um boa noite! – Disse um dos policiais. – Se caso os sequestradores liguem novamente, o que pode ocorrer, é só chamar que chegaremos aqui o mais rápido possível.

Os pais da menina assentiram enquanto um deles entregava para a mãe um cartão com um número de telefone. A mulher segurou aquele pedaço de papel escrito com letras esquisitas contra o peito como se aquilo pudesse trazer a filha de volta.

A porta da casa trancada. Do lado de dentro da casa, por detrás da cortina, o pai observou os dois policiais entrando no carro e indo embora. Sentada no sofá a mãe parecia anestesiada. Ele foi se aproximando dela, sentando-se ao seu lado e abraçando-a o mais forte que podia, mesmo não sabendo de onde poderia tirar mais forças.

Foram semanas terríveis, de alarmes falsos e de ligações de seres humanos desavisados. Foram três meses de lágrimas, e quase desistência, pois não havia mais esperança dentro deles.

Os familiares tentavam consolá-los, mas era em vão. Das várias noites mal dormidas, nenhuma foi tão impactante como uma maldita ligação as quatro da madrugada.

O pai se levantou e correu em direção ao telefone, enquanto a esposa vestida num pijama coçava os olhos com as costas das mãos na tresloucada tentativa de despertar daquele desgraçado pesadelo.

Os olhos dos dois se encheram de lágrimas quando se reencontraram com a filha. A menina de cabelos castanhos e com Marias Chiquinha parecia assustada; tanto é que a princípio recusou o abraço dos pais. A menina respirava com certa dificuldade, como se todo o peso do mundo estivesse sobre ela, e não existia ar suficiente para que ela pudesse respirar.

Foram anos de terapia, de lágrimas derramadas nas salas de vários psicólogos. Foram dias tristes e noites mal dormidas, de pesadelos constantes e de coração saindo pela boca.

Toda aquela situação mudaria de vez a vida daquela família. Depois de anos eles decidiram se mudar, venderam a casa e compraram um apartamento em outra cidade, bem longe dali; o destino só amigos mais próximos saberiam, era uma questão de segurança.

Milena cresceu, mas nunca conseguiu superar aquele maldito sequestro. Nos poucos relacionamentos que teve mal conseguia ser tocada, pois morria de medo de que algo grave lhe acontecesse. Era um simples toque para ela lembrar daqueles homens nojentos em cima dela, rasgando suas roupas e mostrando suas vergonhas, para satisfazê-los enquanto ela chorava baixinho de medo.

A menina outrora popular entre os vizinhos e colegas de escola, havia se tornado uma adulta reclusa, sem amigos e que tinha medo da própria sombra. Anos se passaram, Milena perdeu os pais numa diferença de meses, primeiro a mãe vítima de um câncer bastante agressivo, em seguida o pai que morreu de tristeza por causa da morte da esposa.

Milena voltaria para a cidade natal. A casa onde morava estava quase do mesmo jeito. A pintura tinha sido mudada, as janelas já não eram mais as mesmas e o portão tinham mudado também.

Ela saiu de dentro do carro, bateu a porta, olhou para os lados e atravessou. Tocou a campainha duas vezes até ouvir um “já vai”.

Uma senhorinha de oitenta anos metida num vestido florido, de cabelos curtos e brancos cobertos por um lenço de crochê.

- O que você quer mocinha? – Perguntou a anciã.

Milena não sabia o que dizer, mas tinha de falar algo.

- Meu nome é Milena. Eu morei nessa casa quando criança e eu gostaria muito de entrar um pouco e ver como está por dentro, posso?

Com passos curtos a senhora foi descendo os três degraus de escada. Milena esperou tranquilamente aquele portão se abrir diante dela.

As coisas estavam realmente mudadas, não apenas na parte de fora, mas principalmente na parte interna da casa. Olhou para os cômodos com certa nostalgia, olhou para a mesa de jantar, que não era a mesma de antes e lá se viu sentada ao lado dos pais, todos sorrindo, como se aquilo fosse um filme.

Foi aí que finalmente ela entrou em seu antigo quarto. As paredes lilases não mais existiam, a cama do Bob Esponja também não tinha mais. O quarto perdeu a janela e fora transformado em um lugar qualquer.

Milena foi embora e dentro do carro com as mãos agarradas no volante chorou. Não voltaria lá nunca mais, nunca mais...FIM...

Fernando F Camargo
Enviado por Fernando F Camargo em 16/11/2024
Código do texto: T8198191
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