Contos rápido demais para não valer a pena: Reflexões tardias
Marta já estranhava o silêncio antes mesmo de abrir a porta de casa. Acendeu as luzes, tirou os sapatos, caminhou em direção ao centro do cômodo e olhou para os lados. Parecia estar sozinha, mas sabia que não era o caso. Podia sentir a presença de seu marido.
Chamou por Jorge, e imediatamente viu a luz do quarto acender. Ele aparecia com o olhar surpreso, um pouco cansado, mexendo os braços como se tentasse livrar-se de teias penduradas.
Após um longo abraço, conversaram sobre o dia. Marta estava cansada - o trabalho árduo tirava-lhe a vontade de fazer qualquer coisa senão dormir. Seu marido tentou convencê-la de dormirem no sofá, assistindo algo, mas foi prontamente rejeitado. Buscava conforto. O sofá não traria conforto.
Jorge franziu o rosto mas acatou. Desejou boa noite e ligou a televisão.
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Marta acordou no horário exato que permitira não atrasar-se, desde que fosse ágil. Tentou acordar seu marido, apenas para descobrir que ele já não estava mais lá. Limpou os olhos, levantou-se, e o encontrou de pé, olhando para o espelho. Marta disse alto que não poderia perder hora, e, no mesmo instante que as palavras ríspidas entraram em seus ouvidos, Jorge pareceu despertar de um longo transe. Perguntou o horário, e ao ouvir a resposta, colocou as mãos na cabeça: não tinha feito o café!
Ambos correram com seus afazeres para que Marta não se atrasasse, o que foi um sucesso. Deram um abraço, e se despediram.
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Marta chegou em casa um pouco mais cedo, apenas para encontrá-la com luzes apagadas e em completo silêncio. Uma vez é casualidade. A segunda parecia correlação. Entrou de supetão, sem acender as luzes, e confirmando que seu marido não habitava os outros cômodos, dirigiu-se ao quarto em completo silêncio. Até prendeu a respiração para aguçar o máximo seus sentidos, mas nenhum som era emitido. Sem saber o que fazer, abriu a porta no mesmo movimento que acendeu a luz.
A ação de Marta foi mais rápida que a reação de Jorge, que demorou pouco mais de um segundo para perceber que não estava mais sozinho. Estava tão concentrado que a interrupção o deixou ofegante. Marta permitiu que se recompusesse, e perguntou se havia algo de errado. Ouviu diversas negativas, ao mesmo tempo que percebia as louças ainda sujas. A mesa do café ainda posta, exatamente como estava pela manhã.
Dividiram as tarefas domésticas, jantaram, e foram deitar. Conversaram um pouco mais. Marta perguntou novamente se estava acontecendo algo, mas Jorge fez que não. Deitaram de costas um para o outro e adormeceram.
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Desta vez, Marta perdeu o horário de fato. Levantou correndo da cama e ignorou por completo seu marido, que ainda permanecia deitado, na mesma posição de antes: de costas para ela, de frente ao espelho.
Sequer houveram despedidas, já que Marta só pensava em sair o mais rápido possível. Jorge permaneceria deitado por algumas horas.
Por volta do almoço, ligou três vezes para Jorge, mas nenhuma foi atendida. Preocupou-se com ele, mas voltou a atenção para si: e se Jorge esconde algo de fato?
Inventou uma desculpa para seus superiores e voltou para casa mais cedo. Desta vez, o sol ainda iluminava os recintos, mas o silêncio permanecia. Antes de entrar, congelou em sua posição para captar alguma atividade sonora. Ouvia-se apenas risadas por parte de Jorge.
Entrou, foi direto ao quarto, e sem fazer mais barulhos, observou seu marido, gargalhando de frente ao espelho, completamente estático, como se estivesse vendo algum filme.
Jorge estava tão concentrado que nem percebeu que Marta agora também aparecia no espelho. Era como se não conseguisse vê-la.
Marta lhe deu um cutucão, provocando sua ira. Estava absolutamente perplexo com a interrupção. Falou alto, apontou dedos, mas para qualquer lugar, como se estivesse cego. Ficou em silêncio, virou para Marta e disse que ela estragou tudo.
Confusa, pediu por explicações, e desta vez, foi prontamente atendida: Jorge estava, há alguns dias, ''vivendo a vida do espelho''. Entrou num longo monólogo, explicando que conseguia ver outras pessoas dentro do espelho se fixasse a visão nele por alguns segundos. Parecia insanidade, ele sabia, mas sugeria com animosidade que Marta seguisse seu exemplo.
Bastante assustada, mas inegavelmente tomada pela curiosidade, Marta ficou receosa por alguns segundos, olhando para os olhos de Jorge como se buscasse decifrá-lo. Ouviu mais alguns incentivos, e despiu-se do medo inato de arrepender-se do que veria, fixou os olhos no espelho e aguardou.
Pouco a pouco, lentamente, diversos indivíduos diferentes apareciam no reflexo, como se entrassem pela porta do quarto. Um a um iam acenando, com sorrisos forçadamente largos.
Uma mistura de medo e confusão a acometia, quando reparou que era o reflexo de Jorge que agora entrava na imagem. Acenou para ele, mas ele não parecia feliz em vê-la. Franziu a testa, acenava negativamente com a cabeça, e apontava para trás de Marta. Ao virar, viu seu marido empurrá-la com força, colidindo contra o espelho.
Mas ao invés de cacos e sangue, Marta via apenas uma imagem retangular, mais alta do que larga, com seu marido, sozinho, acenando-lhe com um sorriso forçadamente largo. Olhou para trás e viu diversas pessoas, incluindo Jorge, que escondia a face nas mãos e chorava copiosamente. Reclamava alto que agora ninguém conseguiria tirá-los dali.
Voltou os olhos à imagem retangular, mas não havia ninguém ali. Batia com punhos fechados contra o espelho, mas nada acontecia. Perguntava a si mesma porque não seguiu sua intuição. Porque não pensou um pouco mais antes de aceitar a proposta. Descontava o arrependimento nas paredes enquanto exclamava que deveria ter feito diferente.
A casa permaneceu escura e silenciosa por anos. As investigações foram inconclusivas e a propriedade foi posteriormente leiloada. Os móveis velhos foram desmantelados e esquecidos no porão dos novos moradores.