O Último trem

A madrugada ainda respira, quase em silêncio, enquanto vejo o trem se aproximar da plataforma. As portas se abrem, e os poucos passageiros entram apressados. Suspiro, ajeito a mochila no ombro cuidadosamente e tomo meu lugar no canto, junto à janela. Estou exausta, mas meus sonhos não me deixam dormir.

"Vida de pobre é assim", penso comigo mesma. "Viaja longe todo dia, mas os sonhos vão ainda mais longe." As luzes da cidade piscam lá fora, como se tivessem vida própria, e sinto uma pontada de esperança. Sou jovem ainda, cheia de vontade. Os olhos refletem uma força que nem sei de onde vem. Vim da comunidade lá no morro, e sonho em fazer a diferença, em encontrar um caminho onde a vida não seja só sobreviver.

O trem avança, sacolejando. Observo os outros passageiros: alguns dormem, outros trocam olhares cansados. A cidade grande tem suas armadilhas, mas também tem seu fascínio, uma promessa escondida em cada esquina. Só que o caminho até os sonhos é distante, e eu sei disso. Por enquanto, prefiro olhar para as luzes lá fora e imaginar a vida que desejo: um lugar seguro, onde a comunidade seja vista, respeitada, onde eu possa retribuir. Quero devolver ao morro o amor que carrego no peito.

Na próxima estação, mais gente entra. O trem enche, e sinto-me comprimida entre mochilas e sacolas. É um aperto, uma bagunça, mas também um acolhimento, como se estivéssemos todos juntos nesse caminho tortuoso. Fecho os olhos, tento cochilar, mas minha cabeça gira com os pensamentos.

— Com licença! – ouço uma voz ao lado. Abro os olhos e vejo uma mulher mais velha, sorrindo para mim, pedindo passagem. Ajusto-me, e ela se senta ao meu lado, lançando-me um olhar curioso.

— Você é de onde, filha? – pergunta ela, com um tom acolhedor.

— Sou do morro, ali da comunidade da Serra Azul – respondo, sorrindo meio sem jeito.

Ela acena com a cabeça, e trocamos algumas palavras sobre o trabalho, a vida na comunidade, as dificuldades. Percebo que ela também carrega uma história, uma bagagem pesada, visível no olhar marcado pela vida. Em um momento, ela me oferece um conselho: “Nunca deixe ninguém te fazer sentir pequena. Seus sonhos te pertencem.”

Sinto algo acender dentro de mim, um calor estranho, como se aquelas palavras tivessem despertado uma chama que eu nem sabia que existia. Sorrio agradecida, e seguimos em silêncio, lado a lado.

Mas, em uma das próximas estações, algo muda. Dois homens entram, trocando olhares rápidos e inquietos. O ar parece mais pesado. Sinto um arrepio na espinha. Todos parecem perceber, mas ninguém ousa dizer nada. Um dos homens fica perto da porta, e o outro se posiciona ao meu lado, perto da senhora. Meu coração dispara; algo dentro de mim grita que tem algo errado. Olho em volta e noto que não sou a única a apertar a bolsa no colo.

O silêncio dentro do trem é tão pesado que parece sufocar. A tensão cresce, e então um deles puxa algo do bolso - “Meu Deus, não creio, será uma arma” -penso. Mas era apenas um papel, Sinto um alívio imediato ao perceber que os dois homens estavam apenas pedindo informações. Suspiro, tentando rir de mim mesma por aquele breve pânico. Na estação seguinte, eles descem e outras pessoas entram, enchendo ainda mais o vagão.

No meio dos novos passageiros, noto algo curioso: dois homens fantasiados, como se fossem animadores de festa infantil. Um está vestido de palhaço, com um sorriso largo pintado no rosto, e o outro parece um personagem de desenho animado. Vejo alguns passageiros sorrirem ao vê-los; é quase impossível não achar graça na cena, aquela cor no meio de tantos rostos cansados. "Que engraçado," penso, "é raro ver isso no trem a essa hora da manhã."

Os dois começam a fazer brincadeiras, cutucando-se e rindo alto. As pessoas ao redor trocam olhares divertidos, e, por um momento, o clima fica mais leve. A senhora ao meu lado solta uma risada baixa, como se também estivesse se distraindo um pouco da rotina. Até me sinto tentada a acompanhar a leveza do momento.

Um dos homens fantasiados começa a caminhar pelo vagão, distribuindo balões coloridos para as crianças e até para alguns adultos que riem, como se fossem parte da apresentação. No fundo, me sinto feliz por ver que algo tão simples pode alegrar o dia de tantas pessoas.

Mas, quando o palhaço se aproxima mais de mim, algo na expressão dele me deixa desconfortável. A brincadeira parece desacelerar, e percebo que ele não está distribuindo balões com tanta graça assim. Seu sorriso pintado parece frio, e seu olhar escuro contrasta com o rosto pintado. Ele então coloca a mão no bolso da fantasia e saca uma arma, apontando-a para o centro do vagão.

— Ninguém se mexa. Isso é um assalto!

Um deles se aproxima, rápido demais, e eu quase nem consigo reagir. Vejo um brilho metálico de relance. Será que é...? Sim, é uma arma! Sinto o cano frio pressionando contra minha pele. Meu corpo inteiro gela, e, por um instante, o tempo parece parar. Escuto o som do meu próprio coração martelando no peito, cada batida mais pesada que a anterior.

— Passa tudo, agora! – ele impõe, a voz grave e impaciente.

Engulo em seco, os olhos fixos em algo indistinto além da janela. Sinto o suor frio escorrendo pela nuca, e, enquanto tremo, tento me convencer de que posso sair dessa. Meus dedos trêmulos começam a buscar algo na bolsa, qualquer coisa que possa entregar, qualquer coisa para que ele vá embora logo.

Mas então, ele perde a paciência. Num movimento brusco, ele me puxa e a dor é instantânea, cortante. Tento resistir, instintivamente, mas tudo acontece rápido demais. Sinto um impacto frio e metálico contra meu peito. Um disparo. Um som que reverbera por todo o vagão.

O mundo ao meu redor começa a se desfazer, as vozes se distanciam, e as faces ao meu redor ficam turvas. Ouço murmúrios, gritos abafados, e os olhares de horror voltados para mim. Sinto um impacto gelado no peito, como se algo me rasgasse por dentro. O mundo ao meu redor fica turvo, e um calor viscoso começa a escorrer, manchando minha blusa. – meu próprio sangue.

Caio, sem forças, meu corpo cede ao chão frio do trem. O barulho ao redor se apaga aos poucos, e o peso de toda uma vida parece me abandonar. A senhora ao lado segura minha mão com força, o rosto marcado pelo horror e pelas lágrimas.

Sinto que estou partindo, deixando para trás a comunidade, meus sonhos, meu riso, minha história. E então, silêncio.

O trem continua seu percurso, sacolejando, levando consigo meus sonhos inacabados, minhas esperanças que ainda ecoam.

No dia seguinte, as manchetes trariam mais um nome, mais uma história interrompida. Uma jovem mulher da comunidade que sonhava em mudar o mundo e teve sua vida ceifada antes que pudesse ver o amanhecer de um novo dia. Lúcia se tornaria uma das muitas histórias esquecidas, uma estatística fria nos jornais da cidade.

Mas, para a senhora que segurava sua mão naquela última noite, Lúcia sempre seria lembrada como uma jovem de coração valente, uma sonhadora, uma estrela que brilhou intensamente antes de se apagar.

E enquanto o trem continuava seu caminho, os sonhos de Lúcia permaneciam vivos, na memória de quem testemunhou sua força, nas palavras que deixou pelo caminho, e no desejo ardente de um dia, quem sabe, ver a comunidade ganhar o respeito e a dignidade que ela tanto acreditava.

Rafael (sinuqueiro)
Enviado por Rafael (sinuqueiro) em 07/11/2024
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