MOTORISTA- O Passado Condena

Aos 20 anos Daniel tornou-se boxeador amador na categoria peso pena. Seu sonho era ser um boxeador profissional, mas ao conhecer Irene Van Brenner, em 1982, a garota fez com que ele mudasse de planos, porque ela não gostava de vê-lo sair do ringue cheio de hematomas. Como estava apaixonado, Daniel decidiu aceitar a vontade dela e resolveu então, fazer faculdade de medicina, especializando-se em cirurgia, que era o desejo do pai dele. Sete anos depois, eles resolveram se casar e passar a lua de mel no Caribe. Eles jantaram e foram dançar numa boate. Irene começou a beber e Daniel pediu para ela parar, pois sabia que o álcool no organismo dela, alterava sua personalidade.

Irene começou a desconfiar que Daniel estava paquerando uma mulher, ela ficou furiosa, atirou a bebida do copo no rosto dele e foi embora.

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O gerente estava sentado na beira da cadeira.

— Diga seu nome, idade e cargo. — pediu o policial, após ligar o gravador portátil.

O homem respirou fundo, procurando acalmar-se.

— Me chamo Ednardo Prado Duarte. Trabalho na gerência do hotel Bom Samaritano. Tenho 35 anos.

— Diga o que aconteceu ontem por volta das 23 horas. O senhor foi chamado pelo hóspede do quarto 539, o senhor Daniel Oliveira Trento. Como foi?

— Ele telefonou para a recepção pedindo ajuda, disse que a esposa havia se atirado pela janela.

— O que o senhor viu quando entrou no quarto?

— O doutor Daniel estava sentado no chão, chorando, com a cabeça manchada de sangue. Ele apontou para a varanda e disse que a esposa havia se jogado. Fui até a varanda, olhei pra baixo e vi o corpo no chão. Imediatamente mandei a recepcionista chamar uma ambulância.

— O doutor Daniel falou mais alguma coisa?

— Disse que a esposa discutiu com ele por causa de outra mulher. Ele jurou que não paquerou ninguém, mas ela não acreditou, bateu com a garrafa de bebida no rosto dele, depois correu para a varanda e se atirou.

O laudo de necropsia atestou que havia álcool no organismo de Irene, no valor de 3 doses de whisky, que não a deixaria bêbada e incapaz de se defender de uma agressão. A princípio, a polícia abriu uma linha de identificação para saber se Daniel havia empurrado Irene. Ele foi interrogado, mas contou o que já se sabia. O advogado dele, apresentou um laudo médico, informando que Irene ficava alterada emocionalmente com poucas doses de bebida alcoólica, ou seja, era intolerante ao álcool e que por duas vezes tentou o suicídio.

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Durante o velório de Irene, Daniel e o pai dela trocaram cumprimentos. Pascoal se afastou e não conversou mais com ele. Os outros parentes o ignoraram e Daniel sentiu que eles se afastaram, como se ele fosse o culpado pela morte dela.

Um jornalista, amigo da família, escreveu uma matéria, insinuando que Daniel havia matado a esposa devido ao dinheiro. Mas a polícia não tinha elementos para considerar um homicídio, além disso, Daniel se casou com Irene com separação de bens, cláusula proposta por ele, para mostrar que não se interessava pela fortuna que Irene iria herdar.

Quando terminou o período de licença, Daniel pediu demissão no hospital, trancou o apartamento, pegou suas economias e foi viajar pela Europa. Queria ficar longe dali, das lembranças de Irene e de todos seus parentes. Precisava passar sozinho o período de luto, tentar esquecer aquela tristeza que subjugava todos seus pensamentos.

Dez meses depois, ele estava em Paris, já quase sem dinheiro, com a decisão de voltar para o Brasil, quando conheceu Simone Luiza Rangel num restaurante. A garçonete não falava inglês nem português e como ele estava tendo dificuldades para pedir o almoço, a mulher veio em seu auxílio. Os dois acabaram almoçando juntos. Ela disse ser brasileira, aprendeu francês com a avó materna. Trabalhava numa empresa de componentes eletrônicos, havia tirado férias para visitar a terra da avó, conhecer Paris a torre Eiffel e o palácio de Versailles.

Daniel estava carente, frágil na sua integridade moral e os encantos da mulher foram irresistíveis, aqueles cabelos cor de fogo e os olhos de esmeralda, o subjugaram. Acabou contando a vida dele, da viuvez recente. Simone viu a fragilidade dele e decidiu criar um vínculo de amizade e combinou visitarem juntos, outros lugares turísticos de Paris.

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Simone ergueu o tronco, apoiou-se no cotovelo e acariciou o peito de Daniel. Eles acabaram de transar. Daniel sentia-se relaxado, revigorado depois de tanto tempo.

— Poderíamos ter um relacionamento mais sério.

— Namorados, você quer dizer?

— Sim. Quero um relacionamento sério.

Daniel recostou-se na guarda da cama e olhou para ela.

— Olha, faz duas semanas que nos conhecemos. A gente mal se conhece. Você é uma mulher bonita, atraente, eu gosto de ti, mas minha mulher faleceu não faz nem um ano!

— E daí? Não me importo o que os outros vão dizer. Eu te amo.

— Simone, não confunda atração física com amor. Eu precisaria de mais tempo para dizer o mesmo. Já estou de malas prontas pra voltar para o Brasil.

Ela fez uma expressão de tristeza, sentou-se e abraçou as pernas. Ele acariciou e brincou com os cabelos dela.

— Sinto muito.

Simone deu meia volta, sentou-se de pernas cruzadas, olhando para ele. Daniel admirou a pele branca, as sardas, os seios firmes. Com um entusiasmo repentino, ela disse:

— Eu poderia cancelar o resto de minhas férias e voltar com você.

— Estaria disposta a fazer isso?

— Claro. Ainda tenho 12 dias de folga e poderíamos passear no Brasil, visitar alguns lugares. O que acha?

Daniel permaneceu pensativo por um momento. Precisava retornar à sua vida, retornar ao trabalho, arranjar uma nova esposa, mas não tinha certeza se deveria ter Simone como uma namorada oficial. Mas, não era o namoro, um período para eles se conhecerem? Simone disse:

— Vamos almoçar amanhã e você me dá uma resposta, que tal?

Decididamente, Simone era uma pessoa persuasiva. Ele pegou o celular e tirou algumas fotos.

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Daniel dividia seus pensamentos entre os itens do menu e a possibilidade de transformar em algo mais profundo e duradouro, aquele relacionamento que se resumia a sexo e restaurantes caros. Eles escolheram o prato e fizeram o pedido. Simone pegou o copo de água e bebeu um gole. Sorriu e ia dizer alguma coisa, quando dois homens se materializaram ao lado da mesa. Eles exibiram a credencial de policial. Um deles falou em francês, que Daniel não entendia, e o outro algemou Simone, que tentava explicar alguma coisa ao policial.

— O que está acontecendo? — perguntou ele em português e depois em inglês.

O homem ignorou as palavras dele e fez sinal para acompanhá-los. Na delegacia, um terceiro policial, que falava inglês, pediu os documentos de Daniel e consultou no sistema, o passaporte e identidade. Não encontrou nada irregular.

— Doutor Daniel, quando volta para o Brasil? — perguntou no idioma inglês.

— Pretendo comprar passagem semana que vem. Pode me dizer por que prenderam Simone?

— Simone Luiza Rangel, também conhecida como Simone Clair Marchand, é acusada de ter furtado um Ray-Ban em uma loja no shopping center e uma echarpe em outra loja. Não é a primeira vez que ela é presa na França pelo mesmo crime de furto. O senhor não sabia disso? Há quanto tempo a conhece?

— Duas semanas. Nunca desconfiei que fosse uma criminosa.

— Pois é, ela engana muito bem as pessoas. O senhor não é o primeiro a se decepcionar.

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Daniel ainda se sentia inseguro para fazer cirurgias. De volta ao Brasil, ele resolveu trabalhar como motorista de carga, mas depois de seis meses deixou o emprego. Por indicação de um amigo das lutas de boxe, conseguiu emprego de motorista da esposa de um empresário. O próprio Hugo Lagrange o entrevistou. Naturalmente, o empresário pesquisou a vida dele, o seu trabalho no hospital como cirurgião e sua vida pessoal.

ㅡ Por que abandonou o trabalho de cirurgião?

一 Eu estava abalado com a morte de minha esposa e durante uma cirurgia, quase matei um paciente. Decidi dar um tempo.

一 Como motorista particular, ganhará menos do que ser médico.

一 Sei disso, mas resolvi mudar

— Isadora costuma sair todos os dias pela manhã, às 9 horas ou 9 e meia. Esteja lá amanhã, uma hora antes para a senhora Edna lhe dar algumas instruções.

Ele deu um cartão com o endereço, apertou-lhe a mão e mandou passar no departamento de recursos humanos no 5° andar. Daniel entregou seus documentos, eles tiraram cópias, assinou o contrato e fui embora.

Na manhã seguinte chegou ao endereço da casa de Hugo e Isadora. Apertou o botão do intercomunicador e uma voz perguntou quem ele era, falou meu nome e o portão foi aberto. Entrou num jardim amplo, com canteiros de flores e folhagens ao redor da casa de arquitetura moderna, com uma bela estética. No estacionamento estavam dois carros. Uma mulher saiu da casa para o receber.

— Bom dia. Me chamo Edna Barretto, sou secretária da doutora Isadora. Está pronto para trabalhar?

— Sim, senhora. Vim para isso.

Ela apontou para o Maserati azul-cobalto.

— Aquele é o carro da doutora Isadora, esposa do doutor Hugo, que você vai dirigir a serviço dela, para onde quer que ela deseje ir e você precisa cumprir os horários estabelecidos por ela. Geralmente começa às 9 horas da manhã e termina às 17 horas e 30 minutos, se passar disso, contará como horas extras.

Edna fez uma pequena pausa e continuou.

— Nos fundos fica a porta da cozinha, único lugar da casa que você tem acesso livre para almoçar, fazer um lanche ou beber água. Tem um quartinho anexo para você descansar. Se precisar usar o banheiro, use aquele que tem ao lado esquerdo da casa. O almoço é do meio-dia às 13h e 30 minutos. Caso perca a hora do almoço, a cozinheira lhe fará um lanche. O resto você sabe, educação, honestidade e fidelidade para com os patrões. Alguma pergunta?

Ele sacudiu a cabeça, dizendo que não e ela me entregou a chave do carro.

— Quer dar uma volta no quarteirão pra experimentar o carro? Isadora vai demorar meia hora pra sair. O trajeto para o trabalho dela está no painel.

Daniel deu duas voltas no quarteirão, acostumando com o painel do veículo e seus dispositivos. Dez minutos depois que voltou, Isadora saiu da casa. Estava com os cabelos presos num coque e usava óculos escuros, vestia um blazer sobre camisa bege, vestido cinza-escuro e sapatos de salto alto, pretos. Mal olhou para ele e entrou no carro. Daniel fechei a porta, deu a volta e sentou-se atrás do volante. Conduziu o carro em velocidade moderada.

Os dias foram passando. Isadora cumpria sua rotina diária, saia todos os dias para trabalhar na loja de departamentos, em que era proprietária. Daniel conversou com dona Amélia, a cozinheira, precisava saber o que a patroa gostava e não gostava, para melhor servi-la. Isadora não precisava trabalhar, tinha um marido milionário, mas pelo que Amélia disse, a patroa não gostava de depender de Hugo, se sentia inútil se ficasse em casa sem fazer nada. Mesmo no fim de semana, cuidava do jardim e pintava telas como passatempo. Os quadros dela estavam espalhados pela casa.

Três semanas depois, num sábado, Daniel acabara de chegar em casa, após assistir a um filme no cinema, quando o telefone tocou. Era Edna Barretto avisando que Hugo havia falecido e que era para ele ficar na mansão de prontidão.

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Como Isadora estava passando por luto, não saiu de casa por algum tempo. Daniel não tinha nada que fazer, mas permanecia na mansão durante o período de trabalho. Seis dias depois, ela já começou a trabalhar e foi sair para se divertir, 7 meses depois, por existência de Edna. Daniel levou ambas a uma boate. Pouco depois da meia-noite, Edna foi até o carro e pediu para ele ajudar pegar Isadora e levá-la para casa, porque ela havia bebido além do que suportava. Edna ficou porque não queria deixar o marido sozinho.

Bêbada, Isadora havia perdido o decoro, o entendimento da educação, do recato, dizia nome feio, ria. Fim de semana, Isadora deu folga aos empregados e Daniel teve que carregar a patroa para o quarto e colocá-la na cama. Isadora ainda estava com o braço em volta do pescoço dele, deu um beijo, num impulso de agradecimento, talvez, que ele não levou a sério. Depois ele ficou um tempo ali, com receio de que ela fosse vomitar e se sufocar com o vômito. Algumas pessoas quando bebem, se transformam, perdem a cautela, o raciocínio lógico. Foi o que aconteceu com Isadora, carente, levada pela gratidão, o beijou como se aquilo fosse normal.

Na segunda-feira, Daniel chegou na mansão, tirou o carro da garagem e ficou pronto para sair. Quando Isadora surgiu, ele abriu a porta do carro e esperou. Antes de entrar, ela tirou os óculos escuros e o encarou.

一 No sábado eu estava bêbada na boate e você me trouxe para casa. Não me lembro muito bem. Fiz alguma coisa errada?

一 Não, senhora.

一 Vomitei no carro?

一 Não.

一 Edna me colocou na cama?

一 Ela teve que ficar.

一 Então, foi você que me colocou na cama? Com roupa e tudo?

一 Foi.

Isadora ia dizer mais algumas coisas, mas calou-se e entrou no carro.

Com o passar dos dias, Isadora ficou mais aberta ao diálogo, às vezes conversava com ele no trajeto, falava de Hugo. Perguntou sobre a família dele. Daniel contou sobre o fim trágico de Irene. Ela ficou sensibilizada com a história. Um dia ela o convidou para jantar num restaurante. Ele ficou surpreso, ela demonstrava que não se importava de ser vista jantando com seu motorista. E quando ele a deixou na mansão, num impulso inesperado, Isadora colocou os braços em redor do pescoço dele e beijou-o, depois ela puxou-o pela mão e os dois subiram para o quarto.

Da paixão nasce o amor e apesar da diferença de nível social e monetário, ignorando a possibilidade de falatório, Isadora convidou Daniel para morar com ela. Não se importou com os comentários negativos de Edna, sua amiga íntima, tampouco os conselhos da irmã e do marido dela.

Daniel ainda continuou levando Isadora para o trabalho e decidiu fazer um curso de ciências contábeis, para poder ter um cargo nas empresas de Isadora. Não queria ser visto como um parasita, vivendo às custas da mulher.

Fazia 4 anos que Hugo havia falecido e Isadora resolveu casar-se com Daniel, queria ter um filho para deixar como herdeiro de seu patrimônio. Elisa, naturalmente, não gostou da ideia, sabia do passado de Daniel e achava que Isadora estava sendo enganada por ele. As duas até discutiram a respeito, apesar disso, Isadora marcou a data do casamento e começou a fazer os preparativos.

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A cerimônia foi realizada no salão de festas. Daniel se sentia constrangido por ter sido o motorista da Isadora, apesar dela dar todo o seu apoio tentando elevar sua autoestima. O salão estava cheio de convidados, amigos, funcionários e parentes. Todos bebiam, comiam, dava parabéns aos noivos e dançavam na pista de dança, com músicas tocadas por uma banda famosa.

Daniel estava conversando com dois amigos e antigos colegas de boxe, quando sentiu alguém tocar seu braço. Voltou-se e deu de cara com Simone Rangel.

一 Oi! Meus parabéns pelo casamento, desejo muitas felicidades a vocês dois. A noiva é linda!

Daniel ficou surpreso, achou que nunca mais a veria. A mulher o abraçou e disse em seu ouvido:

一 Preciso falar com contigo a sós.

Ele agradeceu as felicitações e disfarçou o seu mal-estar. Sorridente, Simone afastou-se, dirigindo-se em direção à sacada que dava para os fundos da mansão. Daniel andou de um lado para outro e não viu Isadora entre os convidados, e achou que ela estava na cozinha, aproveitou que ninguém estava observando, entrou num corredor e saiu na sacada.

一 O que você quer? Não veio aqui apenas para dar os parabéns, você nem foi convidada.

Ela esboçou um sorriso debochado.

一 Estou precisando de dinheiro e pensei que você poderia me dar.

一 Quanto?

一 Cinco milhões.

Daniel hesitou, estava a ponto de expulsar a mulher, mas não podia fazer escândalo.

一 Pensei que fosse dinheiro para o ônibus. Não tenho essa quantia.

一 Se você não me der, mandarei as fotos para a sua mulher.

Ela pegou uma fotografia da bolsa e mostrou. Era uma das fotos que ela tirou com ele no hotel em Paris.

一 Não tenho esse dinheiro todo.

一 Você agora é marido de uma mulher milionária, pode muito bem pedir emprestado para ela. Esperarei uma semana. Daqui a sete dias estarei no Café Sobrado às 14 horas à tua espera. Você me dá o dinheiro, eu te dou as fotos e os negativos.

Simone acabou de falar e foi embora. Daniel ficou aborrecido e disfarçou o seu mau-humor para que ninguém descobrisse o que estava acontecendo, principalmente Isadora. Confirmava agora que Simone era uma mulher sem escrúpulos, sem honra. No sábado seguinte, dia do encontro com Simone, Daniel havia reservado 500 milhões de sua conta, que ele pretendia dar a Simone, e negociar a outra parte, mas Isadora acordou com dores e hemorragia. Imediatamente ele a levou para o hospital. Os médicos constataram o aborto espontâneo e tomaram todas as medidas necessárias para salvar Isadora. Daniel ficou no quarto com ela, domingo e segunda-feira. Nem se preocupou com Simone. Isadora se restabeleceu fisicamente, mas continuou abalada, assim como Daniel, que seria pai pela primeira vez.

Ele não tinha como entrar em contato com Simone e esperava que ela não realizasse a promessa de mandar as fotos para Isadora, pensou que talvez ela voltasse a fazer contato, porém, o que ele mais temia aconteceu. Na sexta-feira, quando chegou do trabalho, encontrou um envelope sobre a mesa, quando pegou, viu que havia um bilhete sob ele. Pegou o papel e leu: Nunca pensei que você pudesse fazer uma coisa dessa. Pega as tuas coisas e vá embora. Quando eu voltar, não quero te ver na minha casa.

No envelope estava uma das fotos de Simone com ele, deitados na cama do hotel em Paris. A data impressa no verso era de quatro semanas atrás e não três anos atrás. Simone havia adulterado a data. Daniel ficou arrasado, precisou tomar um gole de uísque para se acalmar. Pensou em esperar Isadora para conversar com ela, contar o que aconteceu, que aquilo foi antes de eles se conheceram. Ele tomou um banho, mudou de roupa e voltou a descer. Dona Amélia sempre deixava o jantar pronto e se recolhia ao seu quarto, mas ele não estava com fome. O nervosismo acabou com seu apetite.

Ficou sentado no sofá, o tempo passou e cansado que estava, acabou dormindo. Acordou eram 2 horas da manhã, correu ao quarto, mas Isadora não estava, tampouco no resto da casa. Ficou acordado o resto da noite. De manhã, quando Amélia chegou, ele perguntou a que horas Isadora saiu e se ela disse para onde iria. Respondeu que por volta das 17 horas, mas não disse aonde ia. Daniel telefonou para os hospitais, mas nenhum deles tinha paciente com nome de Isadora Lagrange.

Depois ele pegou a agenda e procurou o número do telefone de Edna.

一 Isadora telefonou para você?

一 Não. Por quê? Aconteceu alguma coisa?

一 Ela saiu ontem de casa e ainda não voltou.

一 Não sabe onde ela foi?

一 Não.

一 Vai avisar a polícia?

一 Tem que esperar 24 horas.

一 Procurou nos hospitais?

一 Sim, não está.

一 Me atualiza depois?

一 Pode deixar.

Telefonou para o escritório, avisando que não iria trabalhar e em seguida ligou para Mary.

一 Alô?

一 Mary? É o Daniel. A Isadora está aí?

一 Não. Por quê?

一 Ela saiu ontem de tarde e ainda não voltou.

一 O que aconteceu? Vocês brigaram?

一 Não brigamos, mas aconteceu uma coisa.

一 Eu já vou pra aí, não sai de casa.

Meia hora depois, Mary chegou. Largou a bolsa sobre a mesa e ficou de pé, de braços cruzados, carrancuda.

一 O que aconteceu?

Daniel fez um sinal para ela se sentar e contou o seu relacionamento com Simone, inclusive a prisão dela, a ida dela ao casamento, a chantagem e o envio da foto para Isadora.

一 Posso ver a foto?

Ele pegou do bolso da camisa e entregou.

一 Foi tirada há quatro anos, em Paris, muito antes de eu conhecer Isadora. Simone alterou a data.

一 Guardarei como prova.

一 Que prova?

一 Do seu adultério. Esperarei até a noite, se minha irmã não aparecer, vou à polícia.

Mary falou num tom duro, ameaçador e Daniel permaneceu calado, não podia piorar a situação. Ela foi embora.

Ele foi nas outras empresas de Hugo, perguntar se alguém sabia do paradeiro de Isadora. Procurou em alguns locais que ela costumava frequentar, nada. No final da tarde, foi à delegacia fazer o boletim de ocorrência, e descobriu que Mary já havia feito. O delegado Moreira, convidou-o para conversar numa sala reservada. Quando ele se sentou, deu-se conta que seria interrogado.

一 Conte como o senhor descobriu que a sua esposa havia desaparecido.

Ele contou toda a história, desde o encontro com Simone em Paris, não podia esconder nada.

一 Despacharei um alerta. O senhor permaneça em casa e se ela aparecer, nos comunique imediatamente.

Daniel voltou para casa, não havia mais nada que fazer, a não ser, esperar. Quatro dias depois, o delegado Moreira chegou acompanhado de um auxiliar e dois peritos.

一 Encontramos o carro de sua esposa no balneário de Torres. A bolsa dela, com os documentos estavam no veículo e não encontramos nenhum sinal de violência.

O delegado mostrou um papel que tinha nas mãos.

一 Temos uma ordem do juiz para fazer uma perícia na casa e no seu carro.

Os peritos procuraram vestígios de sangue na casa e no carro de Daniel. Ele achou normal investigarem todas as possibilidades, inclusive de ele ter matado a esposa. Enquanto os peritos investigavam, o delegado conversou com Daniel na sala.

一 Soubemos que a família tem uma casa de veraneio em Torres. Tem alguém morando lá?

一 Não. Eu não me lembrava disso. Isadora pode estar na casa. Vou para lá ainda hoje.

一 Vamos juntos, se o senhor permitir, ou precisarei de outro mandado judicial?

一 Claro que não. Não tenho nada a esconder.

Amélia ajudou a encontrar a chave da casa de veraneio, ela não sabia se havia cópia, se Isadora foi para lá, realmente. Mas se tivesse ido, teria entrado em contato. A casa estava vazia e Daniel aproveitou a estada na cidade para imprimir cartazes e colar em postes e paredes. Voltou para Porto Alegre com esperança de que alguém telefonasse dando uma boa notícia.

Os dias foram passando e Daniel resolveu voltar ao trabalho, precisava cuidar dos negócios de Isadora, já que ele tinha procuração para tomar decisões. Vinte e dois dias depois do sumiço de Isadora, a polícia voltou a telefonar. Um corpo de mulher foi encontrado no mar, a 30 quilômetros de Torres, próximo ao Balneário Gaivota, que era para ele comparecer no necrotério a fim de identificar o corpo. Quando ele chegou no prédio, já lá estavam Mary e o marido. Ele foi em direção à cunhada, mas ela deu-lhe as costas. Daniel só entendeu mais tarde, que Mary ainda desconfiava que ele matou Isadora.

Ele foi conduzido ao escritório do médico legista. O doutor Miller, pediu que ele se sentasse e providenciou um copo de água e lenço de papel.

一 Identifiquei sua esposa pela arcada dentária. Como ficou muito tempo na água e sofreu lesões causadas por peixes e moluscos, as feições estão prejudicadas para uma identificação visual de cem por cento, mas é provável que o senhor a reconheça se quiser ver o corpo.

— Não, eu não suportaria vê-la desse jeito. Se o senhor a identificou, gostaria de providenciar o sepultamento. Isadora pereceu afogada?

一 Sim, não há ferimentos perfurantes, nem hematomas. A sua cunhada prontificou-se a recolher o corpo para as exéquias. Já assinou os documentos.

Daniel ficou contrariado, queria ele mesmo tratar do velório e enterro, mas resolveu aceitar a imposição de Mary. No velório, ela e o marido se mantiveram afastados, sequer lhe deram palavras de conforto, apenas amigos mais próximos o ampararam na dor.

Nos dias seguintes, ele passou em completo isolamento, não saindo para nada, o telefone tocava e ele não atendia. Duas semanas depois, alguém bateu na porta. Era Edna. Ela nem esperou que ele a convidasse para entrar, entrou e o encarou, com uma expressão e atitude de uma mãe para com o filho.

一 Eu soube que não tens saído nem para tomar sol no jardim. Desse jeito você acaba ficando doente, se já não está. A vida continua, Daniel, você tem que retomar a vida normal, trabalhar, cuidar das coisas de Isadora.

一 É difícil, parece que não tenho sorte com mulheres. Acho que permanecerei solteiro a vida toda, para não mais sofrer desse jeito.

一 Telefonei para o delegado Moreira. Eu queria saber o resultado da necropsia de Isadora e ele falou sobre a causa da morte foi possível suicídio, ela entrou no mar e se afogou. Confirmou que a foto foi adulterada. Você não teve nenhuma culpa na morte da Isadora. A culpada é essa tal de Simone que, segundo o delegado, deve estar bem longe do Brasil.

Naquele instante alguém bateu na porta. Daniel atendeu e voltou com um papel na mão.

一 É uma ordem judicial, dando o prazo de 10 dias para eu deixar a mansão.

一 Mary está expulsando você?

一 Sim. Convenci Isadora para nos casarmos apenas no religioso e deixar o civil para mais tarde. Não tenho direito ao patrimônio dela, apenas o meu emprego na empresa da família, isso se Mary não resolver pressionar a diretoria para me demitir.

一 Seria muita maldade. Bem, Daniel, preciso ir. Te cuida e toca a vida pra frente.

Daniel voltou a trabalhar, mesmo tendo direito a mais alguns dias de licença. Alugou um apartamento e deixou a mansão. Voltou a vida normal, só que agora, sozinho. Precisava economizar dinheiro para comprar um carro novo. Certo dia o telefone tocou.

一 Alô?

一 Daniel, sou eu, Edna. Consegui o número do seu telefone novo pela firma. Estou aqui no hospital da Santa Casa.

一 Aconteceu alguma coisa com você?

一 Comigo, não. Venha para cá que eu explico.

Quando chegou, encontrou Edna na recepção. Ela o pegou pelo braço.

一 Tem uma pessoa internada aqui que quer te ver.

Quando entrou no quarto, levou um choque, mas de alegria, era Isadora.

Ele se ajoelhou ao lado da cama, pegou as mãos dela. Isadora disse que Edna já contou sobre Simone e a foto com data falsa. Contou que tinha saído de casa naquele dia quando recebeu a foto pelo correio. Perturbada, andou pela cidade sem rumo e quando decidiu estacionar numa praça, foi assaltada por dois homens. Levou uma pancada na cabeça e quase morreu. Ficou em coma por todos aqueles dias. Como estava sem documentos, o hospital não conseguiu encontrar os familiares. Alguém achou que era a dona do carro abandonado na praia de Torres, mas como foi dado a notícia que ela havia aparecido morta, não tiveram outra pista e só foram saber quem ela era, quando recuperou a consciência.

A história teve um final feliz, Isadora e Daniel voltaram a viver juntos na mansão. Mary teve a humildade de pedir desculpas a Daniel.

Antônio Stegues
Enviado por Antônio Stegues em 27/10/2024
Código do texto: T8183244
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