O dedo da morte
Despertei de repente. Do nada, uma sensação estranha de calafrio gela-me a alma. Olho ao redor e percebo que os móveis estão no lugar de sempre, mas há algo distorto, sorrateiro e imprevisível.
Eu não sinto o meu corpo, essa é uma sensação difícil de descrever. Sinto-me flutuando num vazio profundo, onde as bordas da realidade se desvanecem feito névoa ao amanhecer. Nesse vazio, sou uma presença sem forma, uma consciência que desliza suavemente por entregas as camadas do silêncio. O peso do corpo, antes tão familiar, dissolve-se igual fumaça, e o sentido de toque torna-se um eco distante, incapaz de alcançar.
O quarto parece mais escuro do que o habitual. As sombras alongam-se e dançam nas paredes, como se tivessem vida própria. Tento me acalmar, mas há um silêncio absoluto, opressor, como se o mundo inteiro tivesse parado de respirar junto comigo.
De repente, percebo uma vibração diferente. Não a sinto, apenas a percebo como um eco, que traz consigo um cheiro acre de flores, um aroma forte. Rosas? Cravos? Não sei. Se porventura eu sentisse não seria um perfume agradável; era pesado, sufocante, como o ar em um quarto fechado há muito tempo.
Tento levantar-me, entretanto, estranhamente não tenho corpo, a sensação do pé tocando o chão gelado não vem e assim, levito sem saber exatamente o que me impulsiona. A porta do quarto se abre; sou recebida pela luz do corredor infindo e distante. No trajeto percebo inúmeras velas brancas chamegando uma luz bruxuleante. Sigo a luz numa velocidade não medida, mas rápida, incrivelmente rápida.
No trajeto, as paredes ficam mais próximas, quase esmagadoras. E ao fundo, no final do corredor, uma porta se entreabre, revelando um fraco brilho. Nesse tempo ilusório, apenas meu sexto sentido permanece intacto, com sua força máxima. De maneira descompassada, isso reflete em mim uma irresistível atração pelo lugar. Paro diante da porta e vejo talhados na madeira, alguns desenhos, que me causam desconforto. Evito-os, entretanto, eles parecem vibrar perante o meu olhar. A inquietação se intensifica, sinto como se ali fosse o ponto fixo da minha partida, ou a entrada para um mundo além da compreensão. Ela lentamente se abre, rangendo suas antigas dobradiças sinistramente.
Deparo-me com uma sala familiar, porém transformada em uma capela mortuária. Há cadeiras dispostas em fileiras, todas voltadas para o caixão no centro da sala, cercado por coroas de flores e velas acesas. A atmosfera é densa, opressiva e a temperatura parece ter caído vários graus. Sou fisgada. O corpo em repouso no caixão se torna um ímã e me puxa.
Jazia ali, inerte, o meu corpo. A visão de mim mesma me deixa com a acre sensação de fim. A madeira do caixão bege-rosado-escuro exala um cheiro muito agradável. Dentro dele, cercado pelo claro cetim, eu estava. Meu corpo, pálido e imóvel, repousava ali; vestido em roupas que nunca havia visto. As mãos pousadas sobre o peito demarcavam a ausência de vida. E assim, vi-me no reflexo macabro da imagem sem vida.
Minha pele pálida refletia uma luz espectral. Embora meu rosto estivesse sereno, havia algo profundamente perturbador na forma como os meus olhos vagavam sem foco, como se ainda estivessem buscando algo que nunca encontrariam.
A surreal visão diante de mim era real: eu estava ali, morta, exposta para quem pudesse ver. De repente, o som de passos suaves ecoa pela sala. Giro na direção, mas não vejo ninguém. O som continua como se alguém invisível estivesse circulando ao redor do caixão. A sensação de que algo terrível estava prestes a acontecer me toma por completo.
O silêncio antes ensurdecedor é contornado por vozes que sugerem sussurros malignos. Entretanto, de forma sútil, sinto no plano terreno o peso dos olhares chorosos sobre meu corpo. Tento acalentá-los num ato de misericórdia, porém não me veem, não me sentem, não me notam.
Outra vez sou atraída incontrolavelmente pelo caixão. Os olhos que jaziam no esquife se abrem fixamente com uma expressão vazia, mas, ao mesmo tempo, acusatória. Sinto o grito subir, mas nenhum som sai.
O quarto gira enquanto as luzes das velas oscilam violentamente. Sou puxada, como se estivesse caindo em um abismo sem fim. Tudo fica escuro. Repito incansavelmente: Não estou morta, não pertenço a este mundo! Não estou morta, não pertenço a este mundo!
Uma sombra ri. Meu mantra se torna um eco de lamúria e lamento. Não estou morta, não pertenço a este mundo! O chamado agora se intensifica. Não estou morta, não pertenço a este mundo! Sou obrigada a aceitar a morte, e a cada segundo, (Não estou morta, não pertenço) a vida se afasta mais, (Não estou morta,). Sou fisgada para as entranhas da sepultura.
O ar em torno de mim parece desprovido de qualquer resistência, como se a gravidade tivesse me esquecido. Não há frio, nem calor, apenas uma neutralidade estranha. O tempo também se perde; os segundos não têm mais propósito. Existo ou não num momento eterno, sem começo ou fim. É como se eu estivesse num sonho sem forma, onde não há "eu", não há "você", apenas uma vasta expansão de ser.
Aqui, na quietude, sou tudo e nada. Sem corpo, sem limites, sou parte do universo e sinto a liberdade da própria existência. Porém, entre a quietude, o universo reverbera o som ensurdecedor da minha voz: não estou morta, não pertenço a este mundo! A quietude se finda e tudo se torna luz.