DEPOIS DO NEVOEIRO

Três livros estavam sobre minha escrivaninha para eu resenhar, A princesa Relutante, de Priscila Lins, O Que Aconteceu com Corinne, de Anderson Coutinho, Quarenta Centímetros de Sol, de Fábio Serrano, além do computador IBM, o celular Nokia com antena e um bloco de notas. Eu permanecia sentada na cadeira com os cotovelos apoiados no tampo da mesa, as mãos na cabeça, numa atitude de desespero. Vencendo o estupor, desliguei o computador, levantei-me, fui até a janela e olhei para fora refletindo por exatamente 15 segundos. Depois peguei as chaves e a bolsa, deixei o celular, tranquei a porta do apartamento, desci as escadas, entrei no carro e parti sem rumo, sem destino.

O nevoeiro formava gotículas no para-brisa, e a dor na alma provocava lágrimas em meu rosto, mágoa pela difamação que sofri, as mentiras sobre minha honra. Meu casamento que já estava com a estrutura abalada, acabou desabando. Perdi o emprego porque ninguém mais acreditou em mim, no meu trabalho, descobriram defeitos que antes eu não tinha. Me classificaram como uma fraude, alguém disse que 80 % do meu currículo era falso. Tudo isso deixou-me atordoada, com uma dor na boca do estômago.

As frases clichês podem ser belas também e por isso, repetidas. São clássicas.

Naquela manhã de névoa fria, meu velho Corsa falhou exatamente no meio da ponte. Parou, faleceu. Desisti de torcer aquela chave e pisar no acelerador. Desci e me debrucei na mureta, olhei o rio de águas profundas e negras que eu sabia, estava lá embaixo embora não o enxergasse direito por causa da neblina. Desejar morrer é uma coisa, se matar é outra. Naquele momento, recordei o meu passado, a minha infância e adolescência em Capim Queimado, lá no interior da Bahia. A nossa casa era de madeira velha, de assoalho carcomido pelos cupins, uma casa sem luz e água corrente. O colégio ficava distante, mas nunca faltei às aulas, aprendi a ler e a escrever por insistência de meu pai, ele queria que eu tivesse a instrução que ele não teve, me levou a fazer curso no ProUni e mais tarde conseguiu uma bolsa de estudos, fiz faculdade de letras e ciências humanas. Fiz ainda outros cursos, me especializei em literatura e língua inglesa. Eu poderia estar bem, ter uma vida glamorosa com tanto conhecimento, mas não tive vontade de ser mais do que apenas uma professora de literatura e uma colunista fazendo resenha crítica de prosa ficcional para uma revista de variedades. É claro que não sou uma pessoa perfeita, Henrique muitas vezes brigou comigo por causa do cartão de crédito. Reconheci que não era normal fazer compras toda semana sem necessidades. Até fiz terapia para acabar com a compulsão por compras.

Voltando àquela manhã, eu estava lá, na beira da ponte, o nevoeiro me abraçando carinhosamente com seus dedos úmidos e gelados, quando ouvi uma voz atrás de mim.

一 Senhora? Pode me ajudar?

Olhei para trás e vi um homem idoso, parado com as mãos cobertas por luvas sem dedos, unidas ao peito como uma súplica, parecia um personagem de um conto de Victor Hugo, ou de Goethe. Imaginei que ele me ofereceria fama e fortuna em troca da minha alma.

一 Eu não lembro o meu nome, nem onde moro. Só sei que estou andando há muitas horas e com bastante fome. Gostaria de saber se a senhora poderia pagar um sanduíche para mim.

Esqueci os meus problemas, ali estava alguém mais carente do que eu. Aquela figura de humildade e súplica, pegaram minha alma e sacudiram para despertar.

一 É claro- respondi sem hesitar. Achei que era uma boa desculpa para sair dali. 一 Vamos no meu carro.

Quando meti a chave na ignição, pensei; se o motor voltar a funcionar, devo ficar com medo?

Uma pergunta retórica com ironia e sarcasmo que faz você leitor, olhar pela janela da narrativa e nos ver em outro lugar, não muito longe da ponte.

O Café Mário abria cedo e naquela hora, 7:28 horas, estava quase vazio. Àquela altura dos acontecimentos, eu também estava com fome.

一 O que o senhor deseja comer?

一 Sanduíche de mortadela.

Fiz o pedido, duas xícaras de café com leite, pão com manteiga, geleia de morango, croissant e sanduíche de mortadela. Enquanto a atendente providenciava o repasto, perguntei:

一 O senhor não lembra do seu nome? Aconteceu algum acidente?

一 Não lembro nome, nem onde moro, nada.

Desisti de fazer perguntas que ele não iria se lembrar, portanto, deixei para fazer novas tentativas depois do breakfast.

Ele se aproveitou da minha bondade para comer também o meu croissant. Justifico para mim, que, meu novo amigo, ao chegar, tirou o chapéu, foi a toalete despir as luvas e lavar as mãos. Deve ter lavado o rosto também, que estava mais brilhante, voltou com um leve odor de lavanda. Sentou-se e comeu com a elegância e maneiras de um aristocrata. Tentei imaginar quem ele era, sua idade e profissão. Devia ter mais de 60 anos, achei que fosse professor de matemática. Terminado o desjejum, convidei-o para nos sentarmos sob o gazebo, ao lado do prédio. A neblina ainda rolava pelas ruas e fachadas. Na linha do horizonte, os raios do sol tentavam romper a cortina densa.

一 O senhor não tem nenhum documento? Nota fiscal, alguma receita médica em seus bolsos?

O velhinho vasculhou os bolsos e me entregou um retângulo de papel dobrado. Desdobrei, e li; Eu e Outras Poesias, Augusto dos Anjos, 840-31 P968n-2010. Trabalhei 10 anos com livros e imaginei que aquilo fosse anotação do catálogo de livros de uma biblioteca. Se ele retirava livros da biblioteca pública, deveria ter um cadastro dele com todos os seus dados.

Meu professor disse que um novo parágrafo é como um novo mirante de onde você vê a mesma paisagem sob um aspecto diferente.

Ler as poesias de Augusto dos Anjos não é fácil. Alguém disse que o livro é pedagógico sobre o leitor e seus processos mentais. Aquele senhor idoso sem memória, não tinha, ou não teria, processo mental nenhum para ler aquele livro, pelo menos enquanto não se lembrasse quem era.

“Mas tu não vieste ver minha desgraça.

E eu saí como quem tudo repele

Velho caixão a carregar destroços

Levando apenas na tumba carcaça

O pergaminho singular da pele

E o chocalho fatídico dos ossos”.

一 O senhor retira livros da biblioteca pública?

一 Não sei, não lembro.

É claro, ele está desmemoriado como vai se lembrar? O único jeito de saber é indo lá, na biblioteca.

一 Vamos até a biblioteca, talvez eles conheçam o senhor.

一 Não quero dar trabalho pra senhora.

一 Não é trabalho nenhum. Não tenho nada para fazer.

Quase que eu disse, só me atirar da ponte.

Primeiro eu tinha que ajudar aquela pobre alma, talvez uma boa ação fosse o meu bilhete para entrar no paraíso. Quando chegamos na biblioteca, encontramos um aviso na porta; Atendimento, das 13hrs às 17hrs. E agora, fazer o quê? Esperar. Havia uma praça do outro lado e para lá fomos. O idoso caminhou ao meu lado, silencioso, sem fazer ruído, como se estivesse de pés descalços. Sentamo-nos num banco de madeira. Sombras moviam-se dentro da bruma, vozes e ruídos de carros nas ruas aumentavam gradualmente.

Na universidade eu saía da sala de aula e entrava na biblioteca. Quando me interessei pela literatura, comecei a ler autores brasileiros clássicos. A princípio, o que mais gostei foi da escrita de Guimarães Rosa, principalmente do conto Sarapalha, o modo como ele detalha o mato invadindo o povoado abandonado:

“As casas, sobradinho, capela, três vendinhas, o chalé e o cemitério e a rua, sozinha e comprida, que agora nem mais é uma estrada, de tanto que o mato a entupiu”.

E ele descreve o mato, cada um com seu nome, destaca os dois moradores que sofrem de malária e teimam em ficar naquela tapera velha.

.” Os dois sentados num casco de cocho emborcado, guentando-se ao sol”.

(Conversam o tempo todo e quando um se cala o outro puxa assunto).

一 “Será que chove, primo?

一 Capaz.

一 Ind’hoje?

一 Manhã.

一 Chuva braba, de pouca?

一 Às vez…

一 Da banda de riba?

一 De trás”.

Eles têm acessos de frio por causa da doença e Guimarães Rosa, mostra como a vegetação acompanha a tremedeira dos dois. Estremecem as flores da aroeira, tremem os caules da erva-de-sapo, a erva-de-anum crispa as folhas, os ramos da vassourinha trepidam, tirita a mamona. o açoita-cavalo derruba frutinhas fendilhadas, entrando em convulsões.

Meu companheiro ao lado no banco, permanecia calado então resolvi dizer quem eu era decidi contar minha história minha infância e adolescência no sertão os estudos a vinda para a cidade grande a faculdade e mais estudos o meu casamento com Henrique a descoberta da amante dele o desquite as calúnias de um autor recalcado que não gostou da minha resenha sobre o livro dele as mentiras as acusações de preconceito o processo na justiça a demissão do meu emprego tudo junto e ao mesmo tempo sem vírgula sem pausa para respirar.

Quando me calei, ele não fez nenhum comentário, não perguntou nada. Eu só queria desabafar e ele escutou com atenção. Tudo bem.

Olhamos para a bruma que se dissolvia e os prédios e pessoas tomando forma. Era quase 10 horas da manhã.

一 Estou lembrando do meu amigo sapateiro.

一 Lembra do nome dele?

Baixou a cabeça, colocou a mão no queixo, pensou, voltou a olhara para mim com os olhos brilhando.

一 Carlitos. Ele me conhece. A loja dele fica aqui perto.

Levantou-se e começou a andar. Eu o segui, é claro. Atravessamos a praça, dobramos uma esquina e caminhamos duas quadras. Pensei em voltarmos para pegar o carro, mas ele parou e olhou para um terreno baldio, coberto de entulhos entre dois edifícios.

一 Era aqui a sapataria dele. Demoliram.

Baixou a cabeça, disse num tom triste: ー O que foi feito do Carlitos?

Uma memória antiga, estacionada no tempo, sem atualização.

Lembrei-me de um vizinho chamado Laerte. A casa dele ficava ao lado da minha. Morava com a mãe, viúva. Trabalhava como mecânico de automóveis. Naquele tempo eu era solteira, trabalhava numa padaria como balconista. Às vezes eu chegava em casa ele estava sentado na varanda da casa dele. Eu me sentava do lado dele e a gente conversava sobre o trabalho e a vida alheia. Tive que me mudar daquele bairro porque o aluguel da casa estava muito caro. Fiquei um tempo sem ver o meu amigo. Depois de quase dois anos, por acaso passando por aquela rua, descubro que a casa dele foi demolida. No lugar tinha uma farmácia. Entrei, perguntei sobre o Laerte e ninguém soube me dizer para onde ele foi, o que aconteceu com ele. Saí dali chorando. Dói, quando não se sabe o destino de quem se ama.

Voltamos à praça, depois fomos almoçar num restaurante ali perto e as 13 horas fomos para a biblioteca. Entramos quando abriu. ele sentou-se num banco, ficou folheando uma revista enquanto eu conversava com a atendente.

一 A senhora conhece aquele homem sentado no banco?

一 Sim, ele vem todo mês pegar um livro emprestado.

一 Sabe o nome dele e onde mora? Acontece que ele diz que perdeu a memória, não se lembra do nome nem do endereço da casa dele.

一 Só sei que se chama Vitório. Vou ver o cadastro dele.

A mulher consultou um fichário e anotou numa folha de papel, o nome e o endereço onde o idoso morava. Vittorio Castellani Boaventura. Estrada da Pedreira, 1629, Morro Cambará. Agradeci e expliquei a ele o que tinha descoberto. Levantou-se lépido, satisfeito.

一 O senhor quer retirar o livro? O de poesias?

一 Não Vou pra casa descansar. Pode me dar uma carona?

Levamos 50 minutos para chegar ao local, uma estrada de terra, algumas moradias e campos a perder de vista. Parei o carro em frente ao número 1629, um sobrado antigo, amarelo escuro, assentado no terreno mais alto. O sol nos espiava por entre nuvens. Da casa mais próxima, a brisa trouxe cheiro de pão recém-saído do forno. Lembrei-me de minha mãe, lavando as mãos sujas de massa na pia, a claridade do dia entrando pela janela, os fios de cabelos cor de cobre escapando do lenço quadriculado amarrado na cabeça. Aquele perfil sereno que sempre me transmitia proteção e segurança. Éramos pobres, mas nunca faltou comida.

一 É aqui que o senhor mora?

Ele abriu o portão e começou a subir o caminho de pedras.

一 É sim, agora me lembro. Vem, vamos entrar.

Parou na entrada da varanda, olhou ao redor, sorrindo.

一 Estou lembrando de tudo.

A névoa da sua mente dissipou-se, abriu-se as portas do palácio da memória. Já posso ir embora, pensei.

Agachou-se, levantou um vaso de flores e pegou uma chave.

一 Vem, vamos tomar um café.

Não pude recusar.

A decoração era simples, móveis antigos, mas bem conservados, alguns retratos emoldurados pelas paredes, bibelôs e uma cristaleira. Vitório parece que rejuvenesceu, com agilidade, colocou água para ferver no fogão, abriu o armário.

一 Eu vivo sozinho aqui. Não tenho filhos, mais ninguém. Estou precisando de uma cuidadora e eu queria saber se você aceita cuidar de mim. Não vou dar trabalho, só esqueço das coisas de vez em quando.

Com o bule na mão, concluiu:

一 Vamos tomar café, depois você me dá a resposta.

Eu ia dizer que precisava pensar primeiro, quando uma voz soou na porta dos fundos.

一 Vitorio! Eu vi que você chegou acompanhado e vim lhe trazer um pão pra vocês tomarem café.

Gente! Era George Clooney! Como assim? Claro, sósia dele. Fiquei de pernas bambas e desconfortável, aquele homem lindo ali e eu sem maquiagem e fedendo a suor! Se bem que alguns homens gostam do cheiro natural da mulher. Quando Napoleão voltava para Paris, depois de uma campanha militar, ele mandou uma carta para Josefina pedindo para que ela não tomasse banho.

Vitório fez as apresentações. O nome dele era Ricardo Coutinho, advogado, ( veja só que coincidência) morador da casa vizinha. Era desquitado, morava com os pais e uma irmã.

Durante o café, conversamos sobre diversos assuntos. Contei os meus problemas e Ricardo ofereceu-se como advogado para me defender. Claro, aceitei.

Em certo momento, notei uma carteira de couro junto a um livro sobre uma cadeira de balanço. Devia ser os documentos do Vitório. O livro era Finnegans Wake, de James Joyce. Lembrei-me do final:

“...pedi com os olhos para ele pedir de novo sim e aí ele me perguntou se eu sim diria sim minha flor da montanha e primeiro eu passei os braços em volta dele sim e puxei ele pra perto de mim para ele poder sentir os meus peitos só perfume sim e o coração dele batia que nem louco e sim eu disse sim eu quero sim”. A repetição do sim, tem um significado especial.

O sol voltou a brilhar

e a tarde rolou mansamente

pelos campos

afora.

Antônio Stegues
Enviado por Antônio Stegues em 13/10/2024
Código do texto: T8172609
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