A Dona Nádia
Manhã de terça, o diretor me disse que era para eu ajudar uma senhora que morava perto da escola, configurar seu celular com o sistema W. Eu era professor de inglês, morava em Tapejara. Marcamos para às dez. Dona Nádia morava na outra esquina, em um edifício de oito andares. Estava fresquinho, o sol claro inundava as calçadas. Atravessei a rua e cheguei ao prédio. Toquei o interfone, 502. Demorou um pouco, uma voz doce:
— Olá.
— Bom dia, Dona Nádia?
— Isso, é o teacher, né?
— Isso...
— Já estou indo.
— Tranquilo.
Desceu a senhora. Ela tinha noventa anos, exemplar estudante de inglês. Tinha reiniciado às aulas depois de passar por um procedimento médico. Dei uma que outra aula para ela, ia bem lentamente, sua compreensão ainda que lúcida era dificultosa pela idade. Viajou pelo mundo à fora na terceira idade, mas agora diz aprender inglês só para “ter o que fazer, pois viajar eu não viajo mais, nesse mundo”.
Abriu o portão e cumprimentou-me, cordialmente.
— Como está, meu teacher? — Apertou a minha mão. Dei-lhe um beijo.
— Tudo bem, dona Trevisan. Que dia agradável, né?
— Muito... sabe que com aquela chuva toda vira uma humidade horrível dentro de casa. Mas agora tá tudo bem... Venha, entra. Eu estava no sítio e cheguei agora de manhã.
Entramos juntos e seguimos ao elevador.
— E como que estão ali na escola? Eu disse que era pertinho. Tu nunca se perde em Tapejara.
Rimos juntos. Chegamos. A porta do apartamento. Cozinha ampla. Uma sacada lá em frente. Os quartos em um corredor à direita. Uma mesa de vidro grande no centro da sala de estar.
— Sente-se.
Ela vinha me contando sobre sua família. Eles tinham boa parte dos terrenos da Caravaggio; uma família grande, notável na cidade. Demorou-se relatando cada neto, neta, filho e filha. Repassou quase todo mundo. Depois fomos até a sacada e ela me mostrou um que outro conhecido que morava em redor. Olhei de cima para a escola e disse: É bom morar ali, é meio vazio e escuro, mas que nada.
— Sim, guri. Tu deve sentir falta de Passo Fundo durante a semana, não?
— Pior que não, eu adoro o povo daqui.
Depois comecei a configurar o seu celular. Coisas fáceis, que ela tinha dificuldade em usar. Aproximei-me dela, com o celular na mão. Alguém liga, ela cancela a ligação dizendo “Ah, é o Gil, depois ligo para eles”. Reinstalei o aplicativo e ensinei-a a usar novamente. Durou uns quinze minutos. Feito isso, deixei o celular por cima da mesa e ela pergunta:
— Tá com fome, menino? Tenho pastéis se quiseres.
— Agradeço, dona Nádia.
Veio da cozinha com os pastéis e café. Comemos enquanto conversávamos. Os dois pastéis estavam meio secos, mas bons. O café com leite com bastante açúcar. Terminado o café, ela foi retirando os talheres para a cozinha. Ao abrir a geladeira, para colocar o leite, eu vi algo muito estranho.
Parecia que, sobre um prato grande, duas cabeças de bebês gelavam na geladeira, por baixo do leite, pão e chimias. Não pode ser, pensei. Deve ser alguma brincadeira. Ou vi errado. Ela...
— Tu sabe que Gilberto Trevisan morou um tempo na Itália, tu é professor de italiano também, não é?
— Sim senhora. — Disse, sem muito jeito.
— Eu adorei Florença, foi em dois mil e quinze... acho. É, dois mil e quinze. Tu me dá uma licencinha que só vou ao banheiro e já volto.
— Claro.
Enquanto ela entrava no banheiro, fui até a geladeira, tremendo. Abri, realmente lá estavam as duas cabeças, os olhos fechados e os crânios fininhos, roxas pela morte. O pescoço rasgado rusticamente, com pedaços de carne ainda espalhadas pelo prato. Um cheiro nauseante saía de lá, achei horrivelmente perturbador essa cena. Olhei ainda mais uns segundos para me certificar de que o que eu via era verdade. Fechei a geladeira com tontura e náusea. Sentei meio que cambaleando no sofá. O celular dela começou a tocar, fui ver o que era. Gilberto T. Cancelei a ligação e olhei no registro: Cento e vinte ligações não atendidas. Meu Deus! O que que tá acontecendo! Ela sai do banheiro. Quando me enxerga, nota meu pavor.
— Que que tu tem, teacher?
Eu, me sentindo cada vez mais tonto, disse que deveria ir para casa.
— É um remédio... desculpa, dona Nadia.
— Ah, tu que sabe. — Disse, desconfiada.
No elevador não pude deixar de comentar.
— A senhora tem duas cabeças de bebês na geladeira.
— Como? — Disse, com expressões de surpresa.
— Duas cabeças...
O elevador chegou. Despedi-me e sai em passos largos. Da avenida, que ficava na rua de trás, escutei sirenes de polícia. Cheguei na escola. Demorei para recompor-me, vomitei e quase desmaiei no banheiro. Grande movimento na frente do prédio da senhora. Depois ficamos sabendo que ela havia assassinado seus dois bisnetos. Carlos de um ano e dois meses, e Lauro de nove meses. Assassinou-os nas terras em Caravaggio, e trouxe as cabeças para casa, naquela madrugada. Tive de prestar depoimentos, me indagaram disso e aquilo. Não consegui mais adquirir informações sobre as razões dela ter feito isso, mas achei super aterrorizante, e aquilo traumatizou toda a região. Depois o Brasil inteiro, inclusive o exterior, entrando nas páginas dos livros de psicologia.
Nem preciso dizer que nunca mais me esqueci de tal dia, nem da frieza e docilidade de dona Nádia.