Brincadeira de menino

Brincadeira de menino Autor: Davy F. Almeida

Apresentação – Música Instrumental :

O trenzinho do caipira – Heitor Villa Lobos

A noite, lá pela madrugada eu ouvia o barulho fantasmagórico da

locomotiva passando lentamente. A noite estava silenciosa e de repente o

trem quebrava o silencio da noite. As vezes ouvia se o barulho das buzinas

do trem. Eu imaginava para onde ele estava indo. Quantos lugares aquele

maquinista deveria conhecer. O que levava aquela admirável máquina? O

maquinista disse: “cada um leva um coisa, cimento, minério de ferro,

folhas de flandres ou folhas de aço, matérias-primas para a indústria do

Brasil e para exportação”

Pela manha íamos para a escola, aqueles quatro meninos. Seguíamos pela

ferrovia. Nossa casa ficava relativamente próxima da ferrovia. O que me

encantava era o barulho do trem. Seu barulho misterioso e fantasmagórico.

As vezes ficávamos a beira da ferrovia contando vagões e empinando

pipas. Minha mãe sempre falava para a gente tomar cuidado com o trem.

Nosso pai deu para gente um trenzinho de brinquedo com ferrovia e tudo.

Tinha ponte e viaduto. Era nosso brinquedo favorito. Era um brinquedo

caro, mais meu pai parcelou em doze vezes. A gente não tinha videogame.

A gente nem gostava muito. A gente jogava baralho e dominó com nosso

pai e os amigos dele. A gente brincava de bola. Minha paixão era mesmo o

trenzinho de brinquedo.

As vezes a gente entrava nos vagões do trem de carga e seguíamos viajem.

As vezes o trem parava próximo e voltávamos a pé. As vezes o trem para

longe e voltávamos pela rodovia pedindo carona aos caminhoneiros.

Ninguém negava carona para meninos bonitos travessos. As vezes a gente

pegava rabeira nos caminhões era perigoso. Pegar rabeira é dependurar-se

na carroceria do caminhão. Nós éramos crianças bonitas. Eu tinha dez

anos, meu irmão tinha doze anos. Naílton tinha onze anos e Jaílson tinha

dez anos também. Naílton e o Jaílson eram irmãos também. Eles sempre

estavam em casa brincando.

Minha mãe fazia suco de limão para a gente

com torradas. O suco de limão é bom para a saúde porque tem vitamina c,

dizia ela. A gente brincava a tarde inteira. Enquanto o sol brilhava

parecíamos viver no mundo encantado. Todo mundo dizia : que meninos

bonitos e alegres.

As vezes o maquinista parava para levar a gente para passear na

locomotiva. Ele não gostava de ver a gente dependurado nos vagões,

pegando rabeira. Era perigoso, imagine cair.

Acho interessante narrar que teve outra vez em que pegávamos rabeira em

um caminhão quando a policia parou o caminhão e pegou as crianças e nos

trouxe de volta para casa.

Uma vez o Naílton pegou rabeira e caiu de um caminhão. Levou dezoito

pontos na cabeça. Desse dia em diante paramos de pegar rabeira.

Eram muitos trens de carga que passavam por lá. Alguns iam para o porto

de Santos, outros iam para o Rio de Janeiro. Outros iam para o interior do

Estado de São Paulo, para Campinas e Bauru.

Tinha um maquinista que sempre parava para pedir água. Ele enchia uma

espécie de garrafão. Seu nome era Jorge.

Tudo lá era perfeito. Tinha uma lagoa beirando a ferrovia andando cerca de

duas horas a pé onde a gente ia pescar com nosso pai. A gente não podia

nadar para não espantar os peixes. Nós comíamos muitos peixes lá mesmo,

peixe assado na brasa. Os demais peixes levávamos para nossa mãe

preparar. Era o almoço e o jantar.

Narrador Homem de cinquenta anos de idade:

Eu tive um sonho. Não me lembro. Me lembro pouco dos meninos. Já

fazem tantos anos. Me lembro pouco do meu irmão.

Eu estava na escola. Os meninos cabularam aula para aprontar

traquinagem, para passear no trem de carga. Coisa de moleque.

Brincadeira de menino. Travessura......

Foi assim aquele dia. Eles entraram em um trem de carga. Coisa de

moleque. Nunca mais foram vistos. Meu irmão e os dois meninos

desapareceram.

Minha mãe chorou muito. A policia procurou durante dois anos.

Espalharam fotos deles por todo o Brasil. Passou a até na televisão.

A noite eu ouvia o choro de minha mãe. No silêncio e na escuridão da

noite ouvia o barulho do trem. Minha mãe chorava quando via o trem.

Eu ouvia as vozes das crianças brincando na ferrovia. “ olha é o trem de

carga, vamos entrar nele. Vamos pegar rabeira. Olha o maquinista está

buzinando e dando tchau. Piui e tic tac”

eu ouvia as risadas deles. Eles estavam muito felizes.

O que teria acontecido? Aqueles meninos eram tão bonitos.

Eram bons meninos. Eram ingênuos como toda criança.

Minha mãe olhava o trem como se esperasse o retorno do meu irmão. De

repente ele estaria junto com o maquinista na locomotiva sorrindo e

acenando para ela. Ela chorava.

Meu pai vendeu a casa e fomos morar em outra cidade.

Quarenta anos depois, hoje eu já sou avô. Meus netos gostam de trenzinho.

A noite eu ouço seu barulho. Lentamente no meio da noite. Eu sonhei com

ele. Ele falou comigo. Onde você está Paulinho? O que aconteceu? Nossa

mãe está preocupada? Por que não volta para casa? Meu pai quer te ver.

Mamãe fez suco de limão com torradas. Convide também Naílton e

Jaílson. Vamos brincar e dar risadas. Vamos brincar no trenzinho que papai

nos deu. Ele estava alegre. Ele disse: “ eu estou bem.... ele deu risadas...

acenou dizendo tchau......” eu me levantei como que sem ar. Ouvi um grito

de horror no meio da noite. Eu disse “ mãe o que aconteceu?” ela

respondeu “ Paulinho sumiu.... tiraram ele de mim.... foi o trem ….. esse

trem …. esses maquinistas …. essas ferrovia..... foram eles.... esses

malditos. Eu quero meu filho... o trem levou ele para longe de mim”

eu me acordei novamente estava sonhando que estava sonhando.

Seu barulho fantasmagórico rasgou a noite. Era o cargueiro que passava ao

longe. Eu vi a luz do trem no meio das trevas da noite e ouvi o Paulinho

me chamando para brincar.

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Cartaz:

Lista Nacional dos desaparecidos. Cartaz com fotos das crianças.

Paulo Rodrigues Alves de Almeida, desapareceu aos doze anos de idade.

Naílton Silva e Santos, desapareceu aos onze anos de idade.

Jaílson Silva e Santos , desapareceu aos dez anos de idade.

Todos esses meninos desapareceram próximos a um ferrovia, no

entroncamento ferroviário. Todos desapareceram no mesmo dia.

Dia 18 de setembro de 1997, numa quinta feira por volta das dez horas da

manhã.

Se você avistou qualquer um deles, avise a policia ou ligue para o setor de

pessoas desaparecidas.

Final

Clip com a música: O trenzinho do caipira (Letra de Ferreira Gullar e

música de Heitor Villa Lobos)

Lá vai o trem com menino, lá vai a vida a rodar,

lá vai ciranda e destino, cidade e noite a girar.

Lá vai o trem sem destino, pro dia novo encontrar

Correndo vai pela terra, vai pela serra, vai pelo mar

Cantando pela serra, o luar

correndo entre as estrelas, a voar

no ar, no ar....

Davy Almeida
Enviado por Davy Almeida em 19/09/2024
Código do texto: T8155226
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