QUARENTA SEGUNDOS
Não importa quão absurda seja uma mentira, se é a única possibilidade de escapar. Não importa quão óbvia seja a verdade, se é a de que você nunca conseguirá escapar.
Martin Cruz Smith – Parque Górki
Ofegava dentro da enorme chouba de astracã e o restante das roupas grossas. Não importava o peso. A função daquele arsenal de peles e pelos, era protegê-lo do frio. Apesar da brisa — uns cinco nós, apenas — a temperatura marcava quase quarenta abaixo de zero. E parado, fazendo a mira, tudo ficava pior.
Sua presa estava roendo o gelo, logo abaixo do barranco de neve onde se ajoelhara. Cabeças de peixe ou algo do tipo. O pelo castanho escuro brilhando em contraste com a vastidão branca que os cercava. O rifle de caça já lhe rendera uns bons dólares, com as outras trinta e duas peles daquela temporada. Insistiu em ficar um dia a mais. Os outros foram embora naquela manhã. Teria a cabana só para si, logo mais. Era só mais um tiro, uma pele e adeus.
Apoiou a lateral do corpo em um tronco na borda do precipício. Uma encosta de uns dez metros, íngreme, até a borda do lago. Teria de contornar, quando fosse recuperar a zibelina. Um declive mais adiante, levava ao que parecia ser uma praia às margens do lago. Seu olhar estava lá embaixo. Um pequeno monte de neve entre ele e o alvo. Um caroço de uns vinte e poucos centímetros de altura. O animal parecia arrancar pedaços do que estava escondido ali atrás. O tiro tinha de ser preciso, na pequena cabeça. “Nada de estragar peles” — lhe ensinara o pai.
Há segundos especiais antes de apertar o gatilho. Segundos onde a precisão se manifesta e você, como caçador, deve estar atento. Como uma ave fugidia, o tiro certeiro aparece entre o momento de aspirar e o de expirar. A pausa, onde a firmeza do braço e a pontaria não podem lhe trair. O pequeno mustelídeo abaixava a cabeça, escondendo-se atrás do monte de neve e quando arrancava um naco de sua presa, erguia-se e girava os olhos, para lá e para cá, mastigando.
Bang! No alvo! Crack! Hein?
O encaixe da coronha no ombro fora perfeito. A respiração controlada. A presa, devidamente morta. O movimento reflexo do joelho, porém, forçou o chão e a beirada toda ruiu. Gregtschenko perdeu o prumo. A onda branca, com rochas e detritos, rolou pela encosta, chocando-se com estrondo no lago gelado. Suas mãos, em desespero, buscaram apoio ao sentir-se n’água. Em vão. Um destino inexorável.
Quando seu corpo afundou, sua mente não soube o que pensar. A última palavra pronunciada foi um xingamento e depois, um vazio. Os sentidos responderam melhor. Sorveu o ar pela boca e a fechou, garantindo o suprimento de oxigênio. Os olhos viram o tronco descendo e subindo na massa de água gelada. Tentou girar o corpo. Sentiu as roupas se encharcando. Agora, seriam sua mortalha. Não pode sequer pensar qual seria a probabilidade de haver uma pedra submersa, para servir-lhe de apoio. Deixar aquela armadilha, era “o” desejo? Não. Sobreviver, se possível.
Foi nesse momento que o tronco o acertou no rosto. Sentiu o rosto arder, a dor e mais desespero enquanto se agarrava. Forçou o corpo para o alto, para a superfície, o ar. O cérebro o instigava a lutar sem esmorecer. As articulações dos dedos congelavam. Estava sem luvas. Eram um peso extra nos bolsos, agora. As pernas moviam-se com o restante das forças. O calor fornecido pela vodka era uma brasa a se apagar. O cantil de cobre perdeu-se. Agora era um inimigo cruel, pois tornava seu sangue mais ralo. Mais fácil de congelar.
No susto de cair, o coração bombeava sangue, álcool e adrenalina. Não pensou absolutamente, nem por um instante, nas coisas que abandonava. As dívidas do rifle, o destino das peles abandonadas na cabana, sem dono. As promessas firmadas com a família o aguardando na cidade. Ficaria sem matar a saudade dos carinhos da esposa e dos filhos. A bebê recém-nascida, alegrando seu lar. Era-lhe impossível dedicar milésimos de segundos a pensar nos seus amores e alegrias. Só pensava sobreviver.
A mais cruel de todas as conjecturas a respeito das numerosas considerações às portas da morte, consistia no fato de ser simplesmente impossível elencar prioridades. O destino o espreitava de algum ponto ali perto. A cabeça fora d’água, um braço agarrado ao tronco, outro remando até a borda. “O barranco não estava na margem?” Muita coisa caiu sobre o gelo, além dele. Sair era sua meta.
Não tinha a menor consciência de que deveria fazer uma imagem do todo complexo e abrangente universo de sua existência. Dedicar todo o carinho a isso. Escolher uma imagem especial e única para marcar o fundo dos olhos. Ter na mente, coisas que Gregtschenko não poderia desperdiçar.
Não havia tempo.
Ao deixar o lago congelado, enfrentaria a brisa que baixava o marcador do termômetro, somando-se aos quarenta negativos. Uma geladeira mortal.
Não havia mesmo tempo.
O desespero não permitiu lembrá-lo das histórias sobre cair em um lago congelado. O dilema de ter de escolher como morrer: dentro ou fora d’água. Era preciso escolher a última prece e sua última imagem feliz. Mas ele não se dava conta disso, queria sobreviver. Arrastando-se sobre o que sobrara daquela encosta, seu rosto lívido, suas mãos como pedras, o ar lhe faltava, o calor lhe faltava. Tudo pesava mais.
Seus últimos quarenta segundos no mundo.
Poderia ter retornado sobre os próprios passos, empreendendo uma jornada de duas milhas até o abrigo da cabana. Havia bastante lenha e quando o vento e o frio oferecessem uma trégua, poderia partir com a moto e a preciosa carga de peles, rumo à vila. Havia gasolina suficiente.
Ver o animal despreocupado, alimentando-se, fora um convite. Seus instrumentos marcavam trinta e oito e meio graus negativos. O vento trazia o mercúrio ainda mais para baixo. Tirou as luvas e posicionou-se para o tiro. Seria a última bala da temporada — se não aparecesse nenhum lobo ou urso diante dele, claro. Ao apoiar o joelho esquerdo na neve e deixar o corpo encostar-se à lateral do tronco do pinheiro, desconsiderou a paisagem ao seu redor.
Era um declive perigoso sim. O tronco do pinheiro parecia sólido fincado na beirada, com raízes sob a neve. Nada indicava ser arriscado. Apoiar-se daquele modo, era até natural. Nunca saberia se a vodka atrapalhou seu discernimento, é verdade. O barulho do solo cedendo e o tronco seco tombando o surpreendeu. A zibelina jazia no gelo. O deslizamento levou tudo ao redor dele. Escorregaram rapidamente em direção ao lago. Gregtschenko não pensou em arrepender-se do último tiro.
Não tinha tempo para isso.
“A temperatura da água é mais amena do que na superfície”
Por que pensava nisso agora? Os lagos congelados naquela parte do Irkutsk tinham, no máximo, espelhos de três ou quatro centímetros de espessura. A temperatura havia caído de vez, nas duas últimas semanas. Extraordinariamente, a previsão de encerramento da temporada era dali a outras duas semanas. Atingira os cinquenta abaixo de zero durante a noite passada. O inverno fechava o cerco ao redor. Aquela queda, só facilitou as coisas.
Arrancou a chouba, com esforço enorme. Era cada minuto mais difícil sorver o ar. A dor no rosto deixara de existir. A sensação da água na pele se perdia a cada esforço para encher os pulmões de ar. E o ponteiro de segundos do Ceifador, girou. Não era uma saída. A verdade estava ali e sua mente agarrava-se a última esperança.
Outros segundos e não sentia suas pernas. O rosto já estava dormente, coberto pelo gelo. As células na ponta do nariz, começaram a morrer.
Não atinou, em seu cansaço extremo, que os pés se mantinham dentro do lago. Os tremores vieram e o raciocínio não ajudou em nada. Todo o corpo perdeu a sensibilidade. Os olhos azuis se arregalaram para o céu cinzento. O último suspiro ficou preso antes de passar pelas cordas vocais.