Pedido amargo.
Sábado à noite. Uma chuva incessante bate na grande janela da sala. O tempo quente da tarde dá lugar um ar refrescante e reconfortante.
O mundo se acabando em água lá fora frustrou os planos da balada do fim de semana, mas jovens são criativos e depois de algumas ligações e uns papos furados pelo telefone a galera combinou de se juntar na casa da Ana. Por que na casa da Ana você deve estar se perguntando. A resposta é simples, para uma boa estória precisamos de uma casa onde os pais saíram por algum motivo, deixando assim algum adolescente sozinho.
Os garotos trouxeram bebida, esperançosos que uma das garotas passe da medida e termine com algum deles numa das camas da casa. As garotas, mesmo sabendo do aguaceiro que caía, se arrumaram todas para passar umas horas na casa da Ana. Nunca se sabe se o garoto dos sonhos pode estar lá não é.
O som alto desta vez não incomoda os vizinhos, já que o barulho da chuva abafava as batidas das caixas sonoras. Cigarros eram passados de mão e mão e a conversa rolava em pequenos grupos. As horas parecem correr mais rápidas quando se está se divertindo. E logo os grupos foram se desmontando, e os pedaços que foram ficando se juntaram em um único grupo no centro da sala.
Podia-se ver Alice dormindo no colo de Carlos. Marina e Cláudia, amigas inseparáveis, sentadas no chão ao longo da parede. Sérgio mantinha ainda seu copo de vodka com gelo na mão, sentado na velha poltrona em um conto mais afastado. Ana estava com Marcos no sofá menor, aquilo foi intencional, ela estava de olho nele durante a note toda e esperava um avanço por parte dele, e quando digo avanço não é apenas um beijo.
O papo já tinha dado voltas. Escola, garotas, pais, garotos, relacionamentos de fulano com cicrano que ia ou não dar certo e o bla bla bla de sempre. Até que as luzes se apagaram e o som deu sua última batida. A energia elétrica tinha ido embora. Um gritinho de susto de Marina e Cláudia foi ouvido e logo depois muitas risadas.
Carlos iluminava as pessoas com seu celular, mas sem descuidar da cabeça de Alice que ainda dormia em seu colo. Marcos pediu emprestado o celular para poder abastecer as pessoas de bebida. Ana não perdeu tempo e se ofereceu par ir junto, ele ia precisar de uma mão pra trazer as bebidas, e quem sabe pra alguma coisa a mais. Foram até a cozinha e o que se ouviu na sala eram piadas sobre os dois e a seca que estavam de ficar sozinhos. E foi na cozinha que Ana perdeu o medo de ser feliz, jogou Carlos pra um canto e deu uns amassos nele, a coisa estava realmente pegando fogo ali quando se ouviu da sala outras piadas e que estavam morrendo de sede.
Ana pediu a Carlos para que dormisse ali aquela noite, com ela, E ele disse que nada no mundo o faria ir embora aquela noite.
Voltaram para a sala com umas latas de cerveja, a garrafa de vodka com uns três dedos de bebida ainda, e duas latas de refrigerantes para as amigas no chão.
Sergio brincou aquela hora dizendo que estavam pensando que o Jason (do filme sexta-feira 13) tinha pego eles transando na cozinha e que os tinha matados. Riram a vontade e começaram a lembrar de filmes de terror.
Ana que havia se encolhido nos braços de Carlos se afastou e tomou a palavra.
- Eu li um livro há algum tempo atrás, não me lembro o nome dele agora, mas lembro que aquilo me fez ter pesadelos por um bom tempo - olhou séria para a chuva que caía lá fora, respirou fundo e continuou – era algo sobre um garoto que morria, mas voltava a vida através de um pacto que fazia com uma criatura negra. Ele não era do mal, mas a criatura negra era diabólica e ele tinha que fazer algumas coisas que não gostaria de fazer para poder continuar vivo e ter sua vingança. Eram corpos e vísceras espalhados por todos os capítulos, as folhas eram praticamente manchadas de sangue. Algo que jamais vou esquecer.
- Pois se uma criatura dessa aparecesse aqui eu daria um chute no rabo dela - disse Carlos e gargalhou alto acordando Alice.
- Você é muito tola em acreditar em algo assim - continuou Marina, e Cláudia seguindo a amiga completou – Só uma menininha ia ter medo dessas coisas que escrevem em livros.
Marcos também riu da situação e Ana se sentindo ofendida, levantou –se e disse que ía ao banheiro.
Ei, leva o celular para iluminar o caminho alguém disse, mas ela já estava a caminho do banheiro e nem deu bola para as risadas. Entrou, limpou a borda do acento com papel higiênico e se sentou, mas não precisava fazer nada, o que ela queria era um pouco de tranqüilidade e nessa hora ela desejou que a criatura negra aparecesse para eles, então ela veria eles se borrarem de medo enquanto ela ria em seu íntimo.
Logo ela escuta barulhos e gritos, alguém bateu na porta com violência e isso só a deixou com mais raiva. Como podem ficar tirando sarro dela dessa forma? Ela fecha os olhos e espera.
Os barulhos de dentro da casa cessaram, mas a chuva lá fora parecia ter se intensificado. Os trovões eram ensurdecedores e a única luz que tinha era a dos raios.
Saiu do banheiro mais calma e foi direto para a sala.
- Cansaram da brincadeira? - ela disse, mas não houve nenhuma resposta. E achando que eles não estavam mais ali ela continuou - Ei pessoal, não vou brincar de pique esconde com vocês, já me deixaram puta da vida, cadê vocês!
Ela caminha para o sofá onde estava sentada, não acredita que até Marcos tenha entrado na brincadeira, e então a energia volta e ela vê o que sua sala se tornou.
Jatos de sangue formavam desenhos estranhos nas paredes. Alice continuava com a cabeça sobre o colo de Carlos, mas o corpo dela estava estripado derrubado ao chão. Carlos tinha um sorriso enorme formado por um corte em sua garganta, fazendo a cabeça pender para trás e seus olhos se fixarem no teto. Marina e Cláudia não tinham mais rosto, toda a massa que revestia o crânio delas fora arrancado, eram dois cadáveres abraçados. E de Marcos ela apenas viu a cabeça jogada de qualquer jeito em cima do tapete.
De repente ela ouve o barulho de gelo batendo no copo, rapidamente se vira e vê Sergio tomando mais um gole de vodka. O rosto pálido dela é um ponto de exclamação para ele, que termina de engolir o líquido em sua boca, olha nos olhos dela e como se nada de anormal tivesse acontecido ele diz:
- Cuidado com o que se pede. Pode acabar tornando-se real.