Imagine

Zeca deixou o trabalho à meia-noite, com pressa, para pegar o último ônibus na Estação da Luz, que saía às 00h20.

Ele trabalhava no departamento de informática do Citibank, situado na intersecção mais emblemática do Brasil - no cruzamento da Avenida Ipiranga com a Avenida São João. Seu expediente era das 17h às 24h. Para chegar ao local, um percurso de dois quilômetros até a Estação da Luz demandava quinze minutos de caminhada. Se por acaso ele não conseguisse pegar o último transporte urbano à meia-noite e vinte minutos para o Jaçanã, estaria sem opção até às seis da manhã. Naquela época, o metrô de São Paulo operava das 6h às 22h, o que tornava crucial que ele não perdesse esse último coletivo. Num ritmo acelerado, seguia pela Avenida Ipiranga e depois pela Avenida Cásper Líbero.

Era sexta-feira, dia 5 de dezembro de 1980, Zeca havia combinado um acampamento na praia de Peruíbe com seus amigos Mario e Orlando. A viagem se estenderia até a segunda-feira, dia 8 de dezembro. O local do encontro seria na lanchonete Carinhoso, localizada na Avenida Guapira. Após o término de seu expediente de trabalho, por volta da uma da madrugada, Zeca se juntaria aos amigos e seguiriam para o litoral no carro de Orlando. Mas, conforme as horas avançavam, ele não se apresentou no horário combinado, que era 1h30. A lanchonete estava repleta de pessoas, era sexta-feira, Mario e Orlando aguardavam, enquanto saboreavam uma cerveja. Às duas da madrugada ele ainda não havia aparecido. O mesmo aconteceu às três, quatro e cinco horas da manhã. Zeca, que possuía a barraca de acampamento, não apareceu. Decepcionados, Mario e Orlando voltaram para suas respectivas casas, sem entender o comportamento de Zeca.

Assim como muitos jovens de sua geração, Zeca era um idealista, um sonhador, um Dom Quixote, convicto de que poderia transformar o mundo com suas ideias. Possuía uma consciência política aguçada e estava bem informado sobre os acontecimentos, mesmo diante da censura existente. Na época, uma forma de resistir ao regime opressor era estampar nas paredes da cidade palavras de indignação. Durante as décadas de 1970 e 1980, as inscrições nos muros de São Paulo eram claras e compreensíveis para todos. No entanto, em 1974, Raul Seixas foi convidado a deixar o seu país, enfrentando o perigo de ser preso, o que o levou a um exílio voluntário nos Estados Unidos. Foi nesse período de dois anos de exílio forçado de Raul Seixas, que Zeca expressou seu apoio ao compositor e cantor, pichando letras de suas músicas nos muros da cidade: "Viva a Sociedade Alternativa." "Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.”

No sábado à tarde, Orlando passou pela casa de Zeca, mas não encontrou ninguém. Preocupado, seguiu para a residência de Mário, na esperança de saber alguma informação. Entretanto, Mário também estava no escuro e disse: “A última vez que vi e conversei com Zeca foi há uma semana. Desde então, não sei onde ele está.” Os dois amigos permaneceram em silêncio por alguns minutos, refletindo. Orlando questionou: "Será que descobriram que é o Zeca quem picha os muros?" Mário respondeu: "Acho improvável. Ele esqueceu do acampamento e foi para algum outro lugar sem nos avisar. Quando ele aparecer, vamos lhe dar uma boa bronca, porque isso não se faz. Ele combinou conosco e não apareceu." Orlando ponderou um pouco e disse: “Mas Zeca nunca agiu assim, sempre foi pontual com seus compromissos. Deve ter acontecido algo.”

Conforme as horas avançavam, a inquietação de Orlando se intensificava. Dentre os três amigos, Orlando era o mais ansioso, pessimista, sempre temendo que algo ruim pudesse acontecer, um Shakesperiano, achava que tudo acabava em tragédia. Antes de retornar para casa, Orlando fez uma visita à lanchonete Carinhoso, local habitual de encontro entre eles e indagou sobre a presença de Zeca. A ausência de Zeca chamou a atenção, uma vez que os três eram figuras conhecidas no local. Foi informado que Zeca não havia sido visto nos últimos dias, o que era incomum, considerando que ele sempre passava horas no local, envolvido em animadas conversas com as pessoas. Orlando seguiu para a sua casa preocupado e refletindo: O que aconteceu com o Zeca?

No domingo, após uma falta de notícias de seu amigo por dois dias, Orlando decidiu verificar o paradeiro de Zeca, visitando sua casa. Ao chegar, foi recebido por sua mãe, Dona Rosa, a quem perguntou: "Olá, Dona Rosa, tudo bem? O Zeca está em casa?" A pergunta deixou Dona Rosa confusa por alguns instantes, pois para ela Zeca e Orlando estariam juntos em um acampamento na praia. Ela respondeu que Zeca havia mencionado que passaria o fim de semana com Orlando e o Mario em Peruíbe, que retornaria na segunda-feira antes do almoço, porque trabalharia à noite. Surpreso, Orlando revelou, "Pois é, Dona Rosa, Zeca não apareceu e ninguém sabe de seu paradeiro. Mário e eu passamos a noite inteira esperando por ele na lanchonete."

Dona Rosa interrompeu suas atividades e foi ao quarto do Zeca. Ao verificar que debaixo da cama, a mochila, a barraca de acampamento, o chapéu e a garrafa de água estavam como seu filho havia deixado, alarmada, ela exclamou: "Orlando, meu filho não retornou para casa. Algo está errado. Minha Nossa Senhora de Fátima, onde está o meu filho?" Orlando, tenso, percebeu que suas previsões se confirmaram: seu amigo estava desaparecido. Ao invés de se deixar levar pelo pânico, ele tentou tranquilizar Dona Rosa, prometendo ajudá-la a encontrar Zeca. Observando a angústia da mãe do seu amigo, Orlando elaborou um plano, sugeriu ir ao pronto-socorro de Santana, caso não houvesse nenhuma notícia, iríam para o Hospital das Clínicas. Ele tinha esperança de que em um desses lugares, eles poderiam encontrar alguma informação sobre Zeca.

O pronto-socorro estava abarrotado com pessoas aguardando atendimento, ambulâncias em movimento, indivíduos sentindo-se mal, outros acidentados, alguns saindo acompanhados por seus familiares. Era um domingo com várias ocorrências. Após uma longa espera, eles foram atendidos. Devido ao nervosismo de Dona Rosa, foi Orlando quem conversou com a atendente: "Meu amigo, Zeca, está desaparecido desde sexta-feira. Ele saiu do trabalho à meia-noite e ainda não retornou para casa. A senhora poderia verificar, por gentileza, se ele deu entrada no pronto-socorro?" A atendente registrou as informações e iniciou uma busca minuciosa desde a meia-noite de sexta-feira, procurando qualquer registro de entrada com o nome de Zeca. Apesar de sua revisão meticulosa, não encontrou nada. Agradecendo, Orlando e Dona Rosa seguiram para o Hospital das Clínicas.

Eles chegaram no Hospital das Clínicas noite adentro, por volta das 22h. Por ser um hospital, o cenário era pior do que no pronto-socorro. Após aguardar algumas horas eles foram atendidos. E de novo, foi o Orlando que falou e explicou a situação. “Meu amigo Zeca, saiu do trabalho à meia-noite de sexta-feira passada e até agora não apareceu em casa. Estamos vindo do pronto-socorro e não houve nenhuma entrada em seu nome. A senhora poderia verificar, por favor, no relatório de entrada de pacientes, se consta a sua identificação.” A atendente ouviu com atenção, anotou as informações sobre o Zeca e foi pesquisar no livro de entrada se tinha alguém com aquela denominação. Após um período, ela retornou informando que nos registros do hospital não constava qualquer entrada de uma pessoa naquele dia ou posteriormente, com aquele nome, e disse: "Lamento muito."

Era três horas da madrugada, Orlando se dirigiu a Dona Rosa e disse: “Amanhã vamos na empresa, no horário da sua entrada e perguntar se o Zeca foi trabalhar na sexta-feira passada. Caso eles digam que sim ou que não, iremos à delegacia e abriremos um boletim de ocorrência informando o seu desaparecimento.” Dona Rosa chorava sem parar e concordou.

Na tarde de segunda-feira, durante o horário de entrada de Zeca no trabalho, Dona Rosa e Orlando, estavam à porta do edifício Citibank, localizado no cruzamento da Avenida Ipiranga com a Avenida São João. A recepcionista da portaria e um colega do mesmo setor confirmaram que Zeca havia trabalhado na sexta-feira e teria saído à meia-noite. Após essa confirmação, dirigiram-se à delegacia mais próxima para registrar o seu desaparecimento O delegado preencheu todas as informações necessárias, incluindo uma foto 3x4 de Zeca, e prometeu que, assim que obtivesse qualquer notícia, enviaria um policial para informar a mãe no endereço indicado no relatório.

Ambos saíram da delegacia com um profundo sentimento de amargura. Nos últimos dias, Dona Rosa derramou tantas lágrimas que seus olhos se tornaram chamas vermelhas, agora secos, não havia mais gotas a serem vertidas. A senhora portuguesa, que antes era alegre, vivaz e cheia de energia, parecia ter envelhecido dez anos. No trajeto de volta para casa, o silêncio entre eles era tão intenso que parecia que estavam isolados numa catedral. Orlando dirigia o carro em completo silêncio, com o rádio desligado. O único som que se fazia presente era o pulsar da vida urbana. Dona Rosa, retraída no assento, silenciosa, olhava para frente em busca de alguma orientação. Orlando deixou Dona Rosa em sua casa, prometendo voltar em outro dia para verificar se havia novidades.

Estacionado na esquina da Rua da Alegria, Orlando lançou um olhar para o lado da estrada, lembrando-se de que Zeca descia naquele ponto todos os dias, sempre após a uma da madrugada. Uma ideia veio à sua mente: se permanecesse ali e parasse todos os ônibus, talvez algum motorista pudesse fornecer alguma informação. Assim que Ligou o rádio às 23h, a música foi interrompida por uma notícia chocante: John Lennon havia sido baleado e morto na porta de seu prédio em Nova York, por um fã que acabara de conseguir o autógrafo do seu ídolo. Descrente, mudou de estação, apenas para encontrar a mesma notícia ser repetida em todas elas. As rádios de São Paulo só falavam sobre isso, tocavam as músicas de John Lennon, contando a sua trajetória desde seus tempos com os Beatles.

Por volta de uma hora da madrugada, Orlando interceptou um coletivo, agindo como um passageiro. O motorista abriu a porta e Orlando entrou, cumprimentando-o: "Boa noite, Senhor Motorista. Peço desculpas por interromper, mas preciso saber se um amigo pegou este ônibus na Estação da Luz na sexta-feira passada, por volta da meia-noite e vinte minutos?" O motorista informou que seu trajeto começava no Parque Dom Pedro e que o próximo ônibus a passar seria o que partiu da Estação da Luz. Agradecendo a informação, Orlando desembarcou do veículo.

Os próximos minutos pareciam uma eternidade. Ansioso, Orlando olhava aguardando a chegada do ônibus. Após trinta minutos, um transporte público apareceu ao longe. Quase no centro da rua, acenou para o ônibus assim que este se aproximou. O motorista atendeu ao pedido, parou e abriu a porta. Orlando entrou e disse: "Boa noite, Senhor Motorista. Peço desculpas por interromper, mas preciso saber se um amigo pegou este ônibus na Estação da Luz na sexta-feira passada, por volta da meia-noite e vinte."

"Sim, esse é o último transporte da Estação da Luz. Sobre o rapaz, nós o socorremos, ele chegou sangrando na testa, rasgado, alguns arranhões no braço, tremia como uma vara verde e não dizia nada com nada, parecia que estava em delírios. Pelo estado que ele chegou, nem sabemos como conseguiu chegar até o ônibus, achamos que ele foi assaltado e ainda lhe deram uma tremenda de uma surra. A Estação da Luz é muito perigosa à noite. Ele sempre pegava o ônibus conosco, mas nós não sabíamos o seu nome, o cobrador nem eu. A única coisa que sabíamos é que ele trabalhava com informática e saía da empresa à meia-noite e essa era sua última condução."

"E o que aconteceu com o Zeca depois que entrou no seu ônibus?" Perguntou o Orlando. "Nós saímos do nosso itinerário e deixamos ele à uma da madrugada no pronto-socorro de Santana, como desconhecemos o seu nome e endereço, pois não carregava nenhum documento ou carteira, foi registrada a sua entrada como Loirinho." Orlando, emocionado, agradeceu, desceu do transporte coletivo que seguiu o seu caminho.

Era quase duas horas da madrugada, cansado, mas um pouco aliviado, porque o amigo não havia sido preso. Orlando voltou para sua casa e assim que acordasse de manhã, passaria na casa do Zeca, avisaria sua mãe que descobriu o seu padeiro e eles iriam ao pronto-socorro de Santana, para saber do seu amigo.

Em uma terça-feira ensolarada, 9 de dezembro, Orlando chegou à casa de Zeca às 10h da manhã. Foi recebido por Dona Rosa que estava sentada na cozinha, com um semblante que indicava que havia passado a noite ali, sem se deitar. Entusiasmado, ele entrou na casa e anunciou: "Dona Rosa, encontrei o Zeca". Ele não comentou os detalhes, para não assustar, mencionou apenas que o motorista do ônibus deixou o Zeca no pronto-socorro de Santana a uma da madrugada, sob o nome de Loirinho. Dona Rosa, assim que recebeu essa notícia, reagiu como se ela tivesse levado um choque elétrico, levantou-se rápido da cadeira e junto com Orlando, seguiram para o pronto-socorro.

Na emergência, a recepcionista que havia atendido Orlando antes reconheceu-o. Sem delongas, ele disse: "Meu amigo foi deixado aqui pelo motorista do ônibus à 1h da madrugada de sábado, com o nome de Loirinho. Por gentileza, a senhora poderia verificar no registro?" A mulher folheou as páginas e o entrou: "O Loirinho deu entrada no horário mencionado, mas como ninguém sabia seu nome e nenhum familiar apareceu até a tarde de sábado, ele foi transferido para o hospital dos desabrigados na Lapa."

Ao chegarem ao hospital, encontraram Zeca deitado numa cama da enfermaria, ao ouvir a voz de sua mãe dizendo: "Meu filho", ele despertou. Confuso, perguntou: "O que estou fazendo aqui e o que aconteceu comigo?" Ainda grogue pelos efeitos dos remédios, Zeca foi amparado por Orlando, que o conduziu até o carro. No caminho de casa, Zeca perguntou: “Que dia é hoje?” Orlando lhe disse: terça-feira, dia 9 de Dezembro de 1980. “Nossa! Eu apaguei nesses cinco dias, não me lembro de nada. O que aconteceu?” E cochilou. Assim que acordou, Orlando deu a notícia: “Ontem à noite, John Lennon foi assassinado a tiros por um fã, depois de receber um autógrafo do seu ídolo, em frente da portaria do prédio que morava em Nova York.” No rádio tocava a música “Canção do Novo Mundo” que Beto Guedes e Ronaldo Bastos fizeram para o John Lennon: “Quem souber / Dizer a exata explicação / Me diz como pode acontecer / Um simples canalha mata um rei / Em menos de um segundo / Ó, minha estrela amiga / Por quê você não fez a bala parar”

Zeca voltou a repousar, sedado por medicamentos. Na rádio tocavam as melodias de John Lennon: Stand By Me, Love e Woman. No soar dos acordes da música Imagine, Zeca despertou no trecho: "Imagine que não houvesse nenhum país / Não é difícil de imaginar / Nenhum motivo para matar ou morrer / E nem religião, também / Imagine todas as pessoas / Vivendo em paz". E disse: “Orlando, eu nasci no mesmo dia do John Lennon, dia 9 de Outubro”. Zeca adormeceu e seu amigo desligou o rádio.