O ATAQUE DE ONÇA
O ATAQUE DE ONÇA
Autor: Moyses Laredo
História de pescador da Amazônia
Em toda pescaria é comum acontecerem pequenos acidentes, desde um simples anzol que fisga o dedo, até lascar a cabeça do dedinho, com topada em raiz de árvore, formiga de fogo na roupa, ferrão de arraia em beiradões de praia, passando por perda de objetos no rio, chuva com vento e o campeão de todas, o carapanã, esse se não houver uma rede de proteção o chamado mosquiteiro, a noite não passa. Ninguém volta o mesmo, depois de cada pescaria, algo muda na pessoa. Mas nunca se espera um ataque de onça, acha-se sempre que a movimentação e o ruido das pessoas são suficientes para afastá-las, mas cuidado, isso não se aplica às onças que nunca toparam com humanos, as que vivem isoladas no centro da mata, elas não têm medo de nada, encaram os humanos como mais um animal de sua vasta dieta alimentar. Quando há um ataque surpresa do nada, é até difícil de aceitar no geral, porém, em certas comunidades, é considerado como eventual, ou seja, aqui ou acolá acontece. Os seringueiros são os que se deparam com as pintadas constantemente, vez por outra têm que usar a 28” sextavada, que levam sempre carregadas às costas para suas seguranças, contudo, na mata Amazônica sempre há esse risco, por mais que não se espere, ele sempre está presente.
A onça é um animal sorrateiro, enxerga bem à noite, o ataque dela ninguém tem como prever, nem sequer se pode ouvir seus passos de tão macios, mesmo em folhas mortas que estalam ao menor peso como de uma cotia, elas conseguem pisar com as patas almofadadas deixando tão-somente o rastro de duas pegadas, o que quer dizer que elas pisam com as patas traseiras exatamente em cima do rastro das dianteiras, e assim, consegue abafar o ruído. Apenas os animais predados sabem de sua aproximação, se for um bando de macacos, eles sempre põem um vigia numa árvore para observar o ambiente, o que nem sempre funciona, num descuido do vigilante, coitado, ele vira lanche, é o primeiro a ser devorado, daí porque as onças estão na crista da cadeia alimentar. É impressionante o domínio da autoridade da onça, quando ela se aproxima até os pássaros silenciam, como uma reverência à sua majestade. Seu tamanho é impressionante, contrasta com sua agilidade, ela domina o local e parece que tudo gira em torno dela. É como se a floresta parasse naquele momento, só para vê-la passar. Sua principal arma é sua mordida, possui mordida mais poderosa entre os felinos e uma maneira única de caçar. Enquanto os outros gatos usam uma técnica de caça com mordida no pescoço seguida de sufocamento, a onça-pintada crava os caninos na cabeça da presa perfura o crânio da vítima até chegar ao cérebro. A força exercida é tão grande que chega a quebrar cascos de jabutis.
Seu padrão de pelagem amarelo com rosetas pretas é a perfeita camuflagem para andar na floresta, onde os fachos de luz em meio à sombra das árvores tornam o felino praticamente invisível. Ela se aproxima da presa silenciosamente, utilizando áreas de vegetação densa para se esconder. As almofadas na sola das patas ajudam a abafar o som e permitem que o predador ande sem fazer barulho. Quando está perto de seu alvo parte para o certeiro ataque.
As onças mais velhas não mais se esforçam tanto para caçar, procuram presas que não lhes deem trabalho, ela seleciona indivíduos inexperientes, filhotes, machucados, doentes ou mais velhos o que afinal resulta em benefício para a própria população de presas e mantém o equilíbrio do ecossistema, mas também, de vez em quando, o bicho homem entra na sua dieta.
A história começa quando quatro amigos que saíram numa pescaria, pegaram um barco de recreio. O recreio pretendia visitar aldeias indígenas. Chegando no local, o grande motor de linha ficaria ancorado no local por cinco dias, os turistas saíram e foram visitar várias aldeias próximas, então os quatro amigos aproveitaram e foram pescar, desceram do toldo os seus caiaques, saíram pelo rio Mucuim afluente do Rio Purus, avistaram um igarapé que deságua nesse mesmo rio, e lá se embrenharam com o único objetivo pescar, queriam surubim dos parrudos, jandiá, barba chata, jaú, pirarara, etc. Os amigos combinaram em pegar só os brutos, para isso adentraram nesse “córgo” (córrego) chamado de igarapé, que no dicionário da língua indígena Tupi, é uma palavra formada por ygara (canoa) e apé (caminho). Significando “caminho de canoa”. O dito igarapé, vieram a saber depois chamar-se “igarapé das onças”. A entrada, se apresentou muito fechada por paus e galhos caídos, mas, ao ultrapassarem todos os obstáculos se revelou um lugar de muitas praias. Cada um dos amigos seguiu seus instintos e foram se dispersando, até que um deles, o protagonista de nossa história, se quedou numa beirada que tinha um curto barranco, pois assim achava ter uma visão melhor do rio. Apoitou o caiaque, deu com a mão em suas tralhas, subiu a pequena lera do barranco e finalmente, depois desses esforços, acomodou-se num pequeno tronco caído que usou de banco, se ajeitou para lançar sua linha comprida de 200lb (para peixes de até 90kg) e dar início à pescaria, antes, porém, deu uma longa e demorada olhada ao seu derredor, para sentiu a nobreza da mata, ouvir os cânticos dos pássaros e ver se havia alguma boca mole (cobra) pela redondeza, mas o silêncio de fundo, era tanto que que lhe doía as oiças, e finalmente, se sentindo mais à vontade arrumou a linha comprida (para peixes grandes não se usa caniço ou vara de pesca) colocou a isca, cortou com a sua amoladíssima faca comprida feita de disco de arado, um generoso pedaço de carne seca, que ao retirar do saco plástico a carne seca abafada, exalou um odor pútrefo de carne estragada que empestou o ambiente, ainda bem que não era pra comer, enfiou no anzol tamanho 10/0 próprio para peixes grandes, lançou-o como se lança uma funda, bem no meio do igarapé a favor da correnteza, se deixando levar sem contudo, encostar no fundo.
Passadas umas duas horas, já tinha puxado alguns peixes como: surubim, dourado, jaú, piraíba. O jaú sozinho pesava uns 22kg, para os padrões locais ainda é considerado um filhote, porque essa espécie chega a pesar uns 90kg ou mais, na sua maior idade. Resolveu sair dali seu instinto lhe dizia que não era seguro, desceu e foi para a pequena praia curta que se formava logo abaixo do ponto em que estava. Acomodou-se com suas tralhas, enterrou a faca de ponta na areia para não provocar acidentes e continuou a pescaria, a essa altura não tinha ideia aonde estavam os seus amigos. De repente, notou que a mata silenciou de maneira estranha, tudo ficou quieto, os pássaros que a poucos gorjeavam, se calaram, parecia que até o vento também parou. Nesse ponto começou a escutar o estalar de folhas secas acompanhado de umas pisadas suáveis, ao mesmo tempo, sobreveio um odor de carniça que não era da carne seca que trouxera, era muito diferente. Estava com receio de se virar para ver se via alguma coisa por trás, depois de um tempo criou coragem e se virou, tomou o maior susto de toda a sua vida, tinha uma enorme onça bem atrás dele, estava lá, a poucos passos, a temida onça pintada da Amazônia, a bicha estava toda encrespada, os pelos da costa em pé. Ela lhe fitava diretamente nos olhos, viu sua boca aberta e as enormes presas, aventou a possibilidade de se jogar n’água, mas achou inútil já que ela também sabe nadar vai até buscar jacarés e capivaras no fundo d’água, e ainda, já estava armada no bote para saltar e ele, tinha que se levantar e correr, tempo esse que achava não dispor. Que situação, os amigos distantes, correu a vista e não visualizou nenhum deles. A cabeça pensa rápido, mas o corpo não obedece. A partir desse ponto, houve o tão inesperado ataque, o baque sobre o corpo da pessoa é como se alguém jogasse uma saca de cimento de 50kg nos seus peitos, pensou, “...Meu D-US, estou sendo atacado mesmo, e por uma onça selvagem no meio da mata sem ninguém para me dar socorro?...” A onça o agarrou com firmeza, fincando suas garras que penetraram suas carnes, riscou seu corpo todo, depois, abocanhou sua cabeça, sentiu um dente furar sua testa, os outros, arrancarem o coro cabeludo, o sangue começou a escorrer pela sua cabeça, e a onça, cada vez apertando mais, teve uma única reação possível nesse momento, meteu a mão na sua boca empurrando-a para trás, na tentativa de evitar que ela esmagasse o seu crânio, com isso torou três dos seus dedos, um deles até a segunda falange, o bafo de sangue e o seu ronco estavam colados no seu ouvido, é coisa difícil de descrever, o seu próprio sangue escorria pela face, a pele se soltou junto com parte do couro cabeludo e cobriu-lhe uma banda do rosto tapando sua visão, imaginou depois, que se pudesse se ver, que susto não tomaria. Quando ela começou a arrastá-lo para dentro da mata, ainda procurou travar os dedos dos pés na areia para dificultar o arrasto, achou que ali seria o seu fim, pensou na sua família, nos seus amigos, entrou em desespero e ao mesmo tempo sobreveio uma grande revolta, não iria deixar barato pra essa onça, num relance viu sua faca enterrada na areia a alcançou-a num desesperado movimento de contorção já sendo arrastado, ele é um homem de 70kg, mas não parecia tudo isso na boca dela, ela o arrastou com muita facilidade. De posse da faca ainda se cortou pois a agarrou diretamente pela lâmina, mas conseguiu cutucar a costela dela, o coro muito duro e a má posição não conseguia furar, enquanto isso, ela continuava a arrastá-lo para dentro da mata, numa dessas cutucadas a faca entrou cerca de 5cm o que lhe deu esperança e ai então, ele fechou o punho e bateu no cabo como se fosse uma marreta, embora com a mão cortada, mas não sentia dor, a faca penetrou um pouco mais, enquanto isso, a outra mão era literalmente mastigada, mas como achava que estava tendo vantagens, continuou a marretar o cabo da faca para penetrar mais na costela dela, e graças à D-US obteve êxito, estava ainda pendurado na boca dela mas conseguiu fazer a faca entrar até sumir o cabo, foi ai que notou um certo desestímulo dela, começou a arfar repetidamente, parou de apertar sua cabeça até que o soltou completamente, depois, se embrenhou cambaleando na mata. Nesse ponto, ele se arrastou até a praia e começou a gritar por seus amigos, mesmo sem avistá-los, no entanto, a voz não lhe saía, a garganta cheia do seu próprio sangue, da testa fluía jorros de sangue, a mão que estava dentro da boca da onça já não sentia seus dedos ou o que restou deles, a outra, que empurrou a faca, tinha cortes profundos. Em poucos minutos sua voz retornou, recolocou a pele solta no lugar e pode enxergar, foi quando passou a gritar pelos seus amigos que vieram todos alegres achando que ele talvez tivesse fisgado um bruto, o primeiro que chegou, ao olhar pra ele desmaiou, caiu na sua frente, somente os outros que perguntaram o que houve, contou-lhe rapidamente, então o colocaram no caiaque e rumaram para a comunidade onde o barco de recreia estava ancorado. A comunidade local dispensou a lancha do programa Lancha Escola LE, para leva-lo ao hospital mais próximo. Chegando lá, os médicos avaliaram o estrago, ganhou 158 pontos das garras dela pelo corpo, já sua mão, conseguiram reimplantar uma falange que estava solta segurada apenas pela pele, as outras, a onça havia mastiga e engolido. Depois, fizeram as suturas adequadas no couro cabeludo, teve muita sorte daquele dente não ter perfurado seu olho, disse-lhe o médico. Quanto a onça, o pessoal a encontrou poucos metros dali ela morreu por causa do ferimento da faca, a pontinha riscou e fez sangrar o seu coração, achou que foi a última marretada que deu no cabo o que veio a provocar a grande hemorragia nela. Os amigos ainda lhe perguntaram se queria o couro, ele dispensou, fizeram apenas uma bainha para a sua faca. Muito tempo depois voltou às suas pescarias, mas, não mais se aventurou em lugares ermos e desabitados, procurou lugares mais próximos e sempre acompanhados dos amigos. “Gato escaldado tem medo de água quente”.