os pássaros do ipê amarelo

ainda tênue a linha de claridade do sol cintilava o horizonte quando João Carlos ouviu o primeiro gorjear dos pássaros que ficavam no ipê amarelo em frente à janela do seu quarto.

num repente João Carlos pensou ter ouvido algo diferente, diferente não, igual! mas parecia ter ouvido de alguma forma diferente.. fechou os olhos e se concentrou, aguardando a confirmação da novidade.

então, nova sinfonia dos vizinhos plumados, e uma confirmação - ele realmente havia ouvido aquilo: os pássaros estavam cantando em Sol Maior!!

mas como ele sabia disso? até ontem mal sabia as sete notas musicais em ordem.

em um salto João Carlos se pôs em pé, olhou ao redor do quarto, um acanhado e mal planejado quarto de solteiro que usava na casa da sua mãe desde que voltara do exterior, olhava sem foco a pequena cama de solteiro quando ouviu um carro passando na rua de baixo: Si Bemol!

Com urgência se vestiu, sua cabeça girava em espirais de dar inveja a Fibonacci! já ouvira histórias de pessoas que aprenderam idiomas durante o sono, aprenderam a tocar algum instrumento durante o descanso noturno, mas seria possível? acontecera com ele??

correu à cozinha onde encontrou sua mãe e Claudia tomando o café da manhã, de olhos arregalados disse: os pássaros cantam em Sol Maior!

o volume das palavras saiu mais alto do que ele queria, então encolheu os ombros num misto de acanhamento e pedido de desculpas, mas repetiu: Sol Maior!

Claudia e a mãe se entreolharam e sorrindo se voltaram à João Carlos. - quer dizer que você tem ouvido absoluto? isso não é tão raro assim.. desdenhou a irmã.

buscando apoio João Carlos encontrou sua mãe de olhos entumescidos, notou que ela parecia mais velha que no dia anterior, num misto de sorriso e resiliência lhe disse: isso é maravilhoso meu filho! que descoberta fabulosa, quer seu café agora?

mesmo sem entender o desdém da família João Carlos bebeu seu café às pressas e perguntou sobre o velho piano da sua avó, ao que sua mãe e irmã responderam em uníssono: está na sala de jantar.. aquilo parecia estranhamente ensaiado, de uma maneira que ele não entendia nem sabia explicar, talvez fosse algum déjà vu, ou reflexo da sua descoberta matinal..

sentou-se em frente ao piano e sem saber o porquê, resolveu testar o som, não parecia nada com o piano velho e empoeirado que deixara pra trás quando saiu de casa à alguns meses, ou seriam anos? balançou a cabeça para retornar ao presente e suavemente foi deslizando suas mãos sobre o teclado, estranhamente sabia o que fazer, mas não sabia como.

durante à manhã sua audiência foi a família, Claudia e a mãe sentadas à mesa de jantar assistiram peças impecáveis de Mozart, Chopin, Vivaldi, Beethoven, Stravinski, Chiquinha Gonzaga, Villa-Lobos, e principalmente Bach! ele parecia dominar cada nota de toda a obra do compositor alemão....

à tarde não foi diferente, com a visita de amigos que provavelmente souberam da novidade pela irmã, João Carlos pode contar as boas novas de sua descoberta surpreendente (ao menos ele achava surpreendente).

Claudia interrompeu as explicações do irmão com a pergunta: você pode receber algumas pessoas do jornal?

- como assim? quem falou com o jornal? como eles descobriram?

Claudia apenas disse - só querem fazer algumas perguntas, pode receber eles ?? - claro!

finalmente encontrou olhos tão empolgados quanto os seus, a jovem jornalista parecia mais nervosa que ele, não entendia o porquê de tantas perguntas sobre o tempo, infância e lugares distantes.

queria falar sobre os pássaros cantando em Sol Maior na sua janela, mas ninguém perguntou, sequer pediram que tocasse algo ao piano..

os jornalistas se despediram com o pedido de fotos e autógrafos, João Carlos achou muito estranho, mas novamente relevou..

ao entardecer sua mãe lhe fez um convite: vamos à universidade? haverá um concerto e algumas palestras, acho que você vai gostar. João Carlos se aprontou e vestiu um pesado e desconhecido casaco que encontrou em seu armário, levava bordado ao peito as iniciais J.C.S.

chegando ao concerto sentiu mil coisas que não sabia explicar, como se fossem nostalgias do futuro ou esperanças do passado, parecia que todos olhavam para todos seus passos, que todos vigiavam todos seus movimentos, sentiu vergonha e orgulho, ânimo e cansaço, respirou fundo e continuou..

reconheceu todas as obras apresentadas, percebeu os pequenos deslizes cometidos pelos músicos, reparou no despreparo do jovem maestro regente, e mesmo sem saber como, sabia que tudo ali de alguma forma lhe pertencia, pertenceu.. pertenceria..(?) pensou que nunca foi bom em entender tempos verbais.

ao fim da audição durante as conversas com jovens músicos e senhores bem vestidos que se apresentavam dizendo seus nomes, sobrenomes, cidade onde moravam e cargo ocupado na universidade, João Carlos recebeu o convite do jovem maestro à quem criticara minutos antes: o Sr poderia dizer algumas palavras no início das palestras? use o tempo que o Sr precisar!

surpreso respondeu: - não sei! nunca falei para tantas pessoas... e o que eu poderia dizer? posso falar sobre os pássaros que cantam em Sol Maior?

- claro, seria uma honra ouvir suas histórias!

João Carlos esperava à margem do palco sua hora de contar a boa nova, da descoberta recente sobre ouvido absoluto aos ensaios no velho piano da vovó..

começou a olhar todos a sua volta e sentir olhos que lhe esmagavam de curiosidade, não entendia a urgência com que tantas pessoas souberam de sua história, será que era por causa da reportagem feita mais cedo? aquela foto no telão parecia com ele, porém mais jovem..

sentindo o momento de falar se aproximando João Carlos percebeu o ar mais denso ao seu redor, suava mesmo sendo aquela uma noite fria em agosto, sentiu um tremor estranho nas mãos e uma vontade animalesca de sair correndo, em desespero encontrou os olhos de Claudia que lhe responderam em cumplicidade muda, pegou a irmã pelo braço, pediu desculpas e se retirou.

na volta pra casa ouviu no carro sua mãe e Claudia se revezando em palavras de apoio:

- isso acontece!

- você só está cansado!

- outro dia você tenta de novo!

João Carlos apenas pensava: ninguém perguntou sobre os pássaros do ipê amarelo..

ainda tênue a linha de claridade do sol cintilava o horizonte quando João Carlos ouviu o primeiro gorjear dos pássaros que ficavam no ipê amarelo em frente à janela do seu quarto.

João Carlos pulou da cama, vestiu-se às pressas, correu à cozinha, contou a novidade para irmã e para a mãe (que pareceu mais velha que ontem) perguntou pelo piano e saiu rumo à sala de jantar..

após alguns segundos compridos, de fumaça de café e silêncio palpável, Claudia olhou para mãe que tinha os pequenos olhos pretos marejados e disse: alguém tem que contar pra ele..

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Enviado por sao so letras em 03/07/2024
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