Olhos no quintal

Fui morar sozinha e não tive medo de enfrentar os desafios da sobrevivência. Ninguém me forçou a fazer essa escolha. Eu queria realizar um teste, sair de baixo da saia dos meus pais. Nem era mais novinha. Estava na casa dos trinta. Tinha tudo em casa. Comida, um quarto, roupa lavada e um carinho de mãe, com aquela comida especial. Éramos felizes. Nossa casa simples, num bairro periférico, não deixava nada a desejar de uma mansão cheia de objetos valiosos.

A mudança pegou os velhos de surpresa, mas prometi ficar sempre os visitando semanalmente. E cumpri isso por um certo período, mas a rotina de trabalho no escritório de contabilidade me deixava morta de cansada e eu chegava em casa e dormia. No fim de semana, ficava vendo séries, bebendo cerveja e pedindo delivery. Estava um pouco com medo de engordar. Apesar de solteira, eu sempre fui vaidosa, gostava de me sentir gostosa.

Era um apartamento de dois compartimentos no Centro de Fortaleza. Bairro movimentado de dia e silencioso a noite. A varanda dava para um galpão abandonado. Um sábado, à noite, escutei um barulho. Pensei ser um gato. Por aqui é sempre lotado de bichanos. E continuei a assistir TV. O sono logo me consumiu. O vento vindo do lado de fora era bem agradável.

Agora eu me acordei, de um susto, quando a grade lá fora parecia ser balançada por alguém. Me levantei e fui observar de perto e era o vento que mexia com força tudo por perto. Mas o que me assustou de verdade, foi ver aquelas duas bolinhas luminosas vindo de baixo. Era tudo escuridão, porém, aquela luz permanecia acesa. Olhei duas vezes, pisquei e sumiu. Eu fiquei me perguntando? Aquilo eram olhos de algum ladrão em busca de roubar algum inquilino? Interfonei, para o síndico. Um senhor de 45 anos chamado Arnaldo.

— Eu estou lhe falando, deve ter alguém lá nos fundos do quintal — Eu disse querendo a ajuda dele.

— Minha filha, não deve ser nada, pode ser um gatinho e se for ladrão, ali é um terreno baldio, não faz parte do prédio — Replicou ele, com a voz cansada de sono.

— Se acontecer algo você será responsável — Pus um pouco de pressão.

— Está bem Riana, vou pegar a lanterna, estou indo aí.

Como o apartamento dele era de frente para a avenida, ele só tinha acesso ao galpão, de onde eu morava. Ele veio de roupão, fiquei constrangida, quase peço a ele para voltar, mas o deixei entrar e ver da sacada, se via algo. A luz do seu equipamento era forte e conseguiu clarear todo o galpão, para onde era apontado. Não tinha nada ali, eu fiquei mais sossegada e mandei logo ele sair do meu quarto.

Sou sozinha, mas tenho um respeito a mim mesma. Não permito homens enxeridos fazerem algo que eu não quero. Voltei a dormir. Logo acordei e fui cuidar da vida. Quando pedalava pela ciclofaixa, senti que um ciclista estava me seguindo. Ele dobrava em todas as ruas que eu ia e parecia não se importar com meu incômodo. Parei e ele também ficou a poucos metros de mim, fingindo está mexendo na bicicleta. Eu gritei.

— Ei rapaz, está na minha cola direto. Se toca, vou chamar a polícia — Disse com um tom de sisuda que eu estava.

— Ei moça, não precisa fazer isso. Eu estou apenas fazendo algo que me pediram — Ele disse isso com uma voz vacilante.

— E alguém pediu para você me vigiar? Pior ainda, me diga do que se trata.

— Eu a queria ajudar, mas não posso. Se eu fizer isso eu perco um parente.

— Como assim, perde um parente? — Eu estava bastante nervosa.

Ele deu meia volta e saiu em disparada na direção contrária, e agora eu é que o perseguia. Mas o jovem era rápido. E sumiu quando eu menos esperava. Trabalhei muito durante uma semana e nada de estranho aconteceu. Mas num sábado à noite, quando eu cochilava, as batidas na porta começaram. O vento forte remexeu as grades na varanda e me levantei para verificar.

Quase desmaiei, quando vi a duas mãos pretas e cabeludas chacoalhando as grades. Peguei o pau da vassoura e bati com força. Ouvi um grito, misturado com um uivo e um barulho de algo caindo ao solo. Olhei para baixo e uns olhos luminosos me olhavam. Eu tive que pegar o revólver guardado. Nunca imaginei usar. Foi tão instantâneo todo o desfecho.

Eu papoquei bala, em direção aos olhos luminosos. E os gritos se intensificaram. Só ouvi as portas dos apartamentos abrindo-se e as pessoas querendo saber o que estava acontecendo. Eu escondi a arma e sai para o corredor. Falei que tinha algo no galpão e três homens e algumas mulheres desceram as escadas com tacos de beisebol, pedras, paus e seguiram para lá.

Eu voltei ao apartamento e fui observar lá de cima. Eram lanternas iluminando todos os lados. Uma das luzes focalizou sangue. No outro dia, tinha policiais verificando o galpão. Meu medo era que viessem aqui e vissem que tenho arma em casa. Segunda fui trabalhar e percebi o rapaz atrás de mim novamente. Parei e cheguei perto dele. Segurei a gola da camisa e pedi explicação.

— Você fez algo que pode custar muitas vidas. Aquele em que você atirou és mais do que um demônio, ele é um protetor em fase de aprendizado. Mas algo maior está vindo e ninguém vai poder deter — As palavras saíram roucas, mas fortes.

— Eu não preciso de proteção de demônio nenhum — falei com raiva.

— Ele é seu parente.

Essas palavras me feriram. Fiquei pasma. E perguntei mais sobre os fatos. Porém, o menino, não quis me dizer. Só pediu que eu ficasse alerta. E foi o que fiz, não conseguia mais dormir direito e sempre estava com a arma na mão e olhando para o galpão. Vários dias acordei na varanda. Tive que tomar umas cervejas, algumas vezes, e fumar um baseado para aguentar toda aquela loucura.

Pensei em voltar para casa de minha mãe, mas não queria levar problemas para eles. Eu tinha que resolver isso sozinha. Então desci uma noite ao galpão. Pulei o muro e andei pela escuridão. Muitos matos altos, restos de equipamentos enferrujados. Quando senti a mão pesada no meu ombro. Poderia ali ter me virado e dado um tiro na cara da criatura, mas não. Queria ver do que era feito aquele ser.

Olhos vermelhos tomam parte da face do bicho. Parecia uma mistura de mostro da tasmânia, com lobo. Não sabia se expressar corretamente. Mas apontou para o meu apartamento e fez um sinal dizendo que estava protegendo a minha residência.

Perguntei que proteção era essa, já que minha vida sempre foi tranquila. Foi quando, do meio do escuro, saiu o rapaz que me perseguia na bike durante a semana.

— Olha, vou ter que lhe falar. Sua alma me pertence. Mas você não pode morrer agora. Se isso acontecer, vai começar uma guerra entre o céu e o inferno.

Carlos Emanuel
Enviado por Carlos Emanuel em 02/07/2024
Código do texto: T8098272
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