Escritor bom é escritor morto

Mal consegui conter a ansiedade no meio da noite, queria que os primeiros raios de sol dessem sinal de que o dia finalmente chegara; pus-me logo de pé, imaginando finalmente que o fruto da minha criação estaria nas livrarias de todo o planeta. Vós que conheceis a natureza da minha escrita, sabeis que me mantive na linha de mestre da fragilidade e do horror, meus personagens acabavam em desfechos cruéis, tidos como monstros ou aberrações;

Confesso que fui um escritor cruel; castiguei não por castigar, mas porque era isso que o público queria ver nas minhas obras, o suspense é o que os hipnotiza.

Entretanto, esta noite, devo confessar que o medo tomou conta do meu ser, isto porque fui confrontado por uma visita misteriosa, alguém que eu jamais ousaria pensar que se faria presente no mundo real e se voltaria contra mim.

A visita estava na sala esperando-me, usava um casaco grande e um chapéu que lhe cobria praticamente todo o rosto. Me contive em perguntar quem era. Até que finalmente pude perceber as mãos em carnes vivas do ser. O pavor tomou conta de mim, um frio doloroso subia por entre o corpo e penetrava a alma;

Era Fortunato, o filho rebelde, a ovelha perdida, o fruto da minha criação.

Devo entender que Fortunato tinha lá seus motivos de estar à minha espera, acabaria por se vingar, isto era o que eu merecia por tê-lo feito sofrer em carnes vivas, foi a própria determinação que tive em ganhar o leitor que me fez criar um monstro, fui desumano com ele. Devia não o ter castigado, poderia ter dado-lhe um final feliz, mas se assim fizesse seria esquecido para sempre, um escritor acabado.

Fortunado fora um homem bom, entre outros adjetivos, talentoso e valente. O melhor pianista que ousei criar. Orgulhava-se da sua quantidade de prêmios recebidos, tocava como ninguém as melodias dos deuses. Poucos pianistas possuíam o talento verdadeiro.

Na maioria das vezes, sua alegria resumia-se em poder tocar para grã-finos importantes e ricos, ludibriava-se com grandes plateias e adorava os holofotes da fama.

Na verdade, acabei criando um charlatão, daqueles que só se importava com o dinheiro, o talento dado só lhe servia para encher-lhe os bolsos. Enfim, é sempre o que acontece ao criar-se personagens grandes; eles tomam folego e se alforriam.

Mas como lhes dissera a pouco, o pianista estava lá a minha espera, no canto escuro da sala.

Pedi que sentasse e assim o fez. Percebi que Fortunato parecia alcoolizado e transtornado.

Trajava-se de luto, faixas de gazes por todo o rosto, apenas podia ver-lhe os olhos vermelhos.

Fiquei apavorado de vê-lo naquele estado lastimável. Desejei que tudo fosse um sonho, mas a imagem de Fortunato estava ali presente na minha frente, o criador e a criatura.

- Fortunato, devo confessar que estou surpreso com sua visita, respondi.

-Surpreso? Não deverias prevê que eu viria?

-Tenho as minhas dúvidas se não estou sonhando, afinal de contas não passas de um ser imaginário criado para agradar leitores do mundo afora, insisti!

- Um sonho! Deixe-me mostrar a você o que é realidade, respondeu Fortunato!

Assim, Fortunato tirou o chapéu da cabeça e aos poucos foi removendo as ataduras do rosto.

Não havia criados em casa, por isso tive que engolir a seco o pavor de estar completamente sozinho, a mercer da infeliz presença. Um enjoo terrível tomou conta do meu estomago e misturado a um odor de carne podre que pairava pela sala. Gostaria de sair dali às pressas, mas não pude. Fortunato encarava-me como quem deseja fazer justiça com as próprias mãos.

-Mas como podia um personagem das minhas histórias criar vida e está agora na minha frente? - indaguei-me mentalmente!

A verdade era que Fortunato não se conformara com o destino que lhe reservei. Também não o questionei, pois arranquei-lhe o dom ao fazê-lo desaparecer no incêndio que provoquei. Fui fiel as entrelinhas, mas injusto com ele.

Assim falando, a pobre criatura aproximou-se de mim, pegou-me pelo braço e me levou pelas escadarias da casa, tive que suportar o odor e o acompanhar ate meus aposentos.

Adentramos até minha escrivaria, retirei da gaveta o exemplar do meu livro, ainda sem capa. Feito isso, Fortunato pediu que lhe acompanhasse ao lugar onde passara incansáveis dias, meu próprio porão.

Descemos então pelas escadas novamente e fomos em direção ao porão. Quando finalmente chegamos no destino, encontrávamos nós dois em um lugar escuro e silencioso.

o pianista bradou em tom de ordem que eu não ousasse sair correndo. nao teve jeito, obdeci!

O lugar inteiro exalava o mesmo odor de Fortunato, uma mistura de morfo com visceras de animais podres, algo insuportável de detalhar.

Finalmente as luzes foram acessas.

A enfraquecida luz não nos permitia ver muito bem. Mas era suficiente para que eu pudesse sondar as extremidades do ambiente.

- É um ignorante mesmo- interrompeu-me Fortunato, enquanto surgia de um canto escuro com correntes pesadas e uma espécie de garrafa de vinho.

Avançou até mim, sem vacilar.

Pude sentir a fúria de quem se revoltara contra seu criador. Num instante, tentei voltar para cima, mas fui surpreendido com um supetão na cabeça, desmaiei.

Um momento a mais e acordei desorientado. Foi ai que observei que correntes percorriam blocos da parede de concreto, bem perto um do outro, provavelmente criados por Fortunato nesse período que se escondera no porão. Até que percebi que uma das extremidades da corrente havia sido lançada sobre meus pés, estava preso igual uma fera selvagem.

Fortunato, o pianista vingativo, havia preparado a armadilha em poucos segundos.

- Está sentindo o gosto de como a liberdade lhe é tirada? - perguntou-me em tom de deboche. Primeiro vem o desespero para logo mais o gran-finale. Posso sentir o seu medo, um escritor como qualquer homem, impune, sem armas, sem poder. - Continuou.

Implorei que me soltasse imediatamente.

- Não me convém, meu senhor, tenho que realmente reescrever essa história. – disse ele. Mas antes que eu desapareça por completo daqui, deixe-me falar algumas coisas.

- Com que direito você pode apagar a existência de seus personagens? Continuou a criatura

. Então não reconheces que es um escritor mal?

-Como? Fora a única coisa que pude falar.

- Quero dizer, não se acha tu um Deus, aquele que é soberano sobre o destino dos homens, continuou Fortunato.

- Como assim? Fiz-me de desentendido.

Sucedeu-se um prolongado silencio entre nós.

Tempos depois, Fortunato levantou-se, pegando algumas roupas minhas que estavam amontoadas sobre caixotes e as usou silenciosamente. Colocou meu chapéu preferido, meu precioso sapato que fora um presente de Veneza e finalmente saiu em direção a entrada do porão, mas antes que pudesse desaparecer por completo, olhou para mim pela última vez e disse suas últimas palavras, enquanto tomava uma taça de vinho.

- Sinto muito meu caro, mas, escritor bom é escritor morto! Já está mais do que na hora de um novo escritor surgir, com uma bela história. Esta noite terei muito trabalho de escrever um novo enredo sobre um escritor decadente que desapareceu e nunca mais foi encontrado. Minha obra de estreia se chamara “acorrentado”.

Fortunato se foi dando prolongadas gargalhadas, até que o silencio se fez presente novamente!

O pavor tomara conta de mim por completo enquanto as luzes se apagavam para sempre!

Ivonoel cardoso
Enviado por Ivonoel cardoso em 29/06/2024
Reeditado em 30/06/2024
Código do texto: T8096381
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