Carne Crua
Havia alguns dias que Alice não estava bem.
Formava um casal muito amoroso junto a Osvaldo – que pacientemente ajudava a cuidar os vários tipos de pássaros, roedores, peixes, cães e gatos que a esposa ajuntava em sua espaçosa casa. Quinze anos antes, mudaram-se para o interior para adequar melhor aqueles animais.
Vegana, Alice jamais pensara em comer carne a pensar em seus bichinhos. Sempre zelosa com suas crias, assistira-os mais que a si mesma.
De repente, depois de ver um documentário a respeito de uma famosa marca de hamburgueres, ela começou a devanear a respeito da sensação de, novamente, tornar a apreciar carne.
Um belo dia, voltou das compras e surpreendeu o marido – que lia um jornal do dia anterior.
- Veja o que eu trouxe, querido – anunciou ela, com um sorriso estranho no rosto.
Osvaldo interrompeu sua leitura, levantou-se do sofá e a seguiu até a cozinha. Ela começou a tirar as compras das sacolas e, por último, tirou um pacote que deixou Osvaldo intrigado.
- Carne? – inquiriu ele, a franzir o cenho.
- Suína – replicou ela, ainda a sorrir, como se tivesse encontrado ouro.
- Você vai comer isso?
- Sim, e crua.
Ela abriu o pacote, vasculhou os armários e dali tirou um prato. Repousou-o sobre a mesa e serviu um pedaço de bisteca crua.
Sentou-se à mesa e, animalescamente, desfrutou a carne como se estivesse muito bem passada.
- O que está acontecendo com você? – perguntou Osvaldo, a assistir à cena incrédulo.
- Não vai me acompanhar?
Horas depois, Alice lia um livro na sala de estar e Osvaldo se acercou. Sentou-se ao lado da esposa, em silêncio, e observou-a. Ela parecia terna, porém mudada.
- Você não vai me explicar o que está acontecendo?
- O que quer que eu fale, querido? – interrompeu ela a sua leitura e olhou-o nos olhos.
Osvaldo respirou profundamente e prosseguiu:
- Faz vinte e três anos que você não come nenhum derivado de carne e hoje, de repente, me aparece com carne suína... e a come crua!
Alice levantou-se, a parecer ofendida. Circulou pela sala e então redarguiu:
- Osvaldo, não somos animais?
- Racionais – interrompeu ele.
- De qualquer forma, perdemos a nossa essência natural. Quantas e quantas vezes ao cozer temos que ferver água para amolecer verduras e legumes? Nossos bichinhos, por exemplo, não precisam cozinhar nada!
- Certo. Qual é a lógica do que você está a dizer?
- A lógica é que estou buscando algo que perdemos há muito. Não quero ser demasiado humana – replicou ela.
Osvaldo levantou-se. Dirigiu-se ao quarto e voltou com um cartão. Sentou-se próximo ao telefone e começou a discar.
- O que está fazendo?
- Ligando para o dr. Arnaldo, teu psiquiatra – falou ele.
Ela puxou o fio do telefone e interrompeu a ligação.
- Por que está fazendo isso?
- Você acha que tem algum sentido o que você está fazendo?
Alice começou a chorar, melindrada. Osvaldo sentiu-se mal, levantou-se e abraçou-a.
- Meu amor, tudo o que eu quero é o teu bem – desculpou-se ele.
Alice agia como uma criança magoada, porém convenceu o marido a não ligar para o psiquiatra. Fazia dias que ela não tomava suas medicações nos horários corretos.
Dias se passaram e novos episódios estranhos começaram a ocorrer: Alice começara a comer carne bovina e caprina. Sempre cruas.
- Alice, é um ultimato: ou você para ou vou embora para sempre – exclamou Osvaldo, a vê-la devorar um pescoço de galinha.
Conforme os dias foram passando, Osvaldo percebeu que alguns pássaros haviam sumido das gaiolas.
- Elas estão morrendo, ora – respondeu Alice ao ser inquirida sobre os sumiços. – Você não as alimenta direito!
- Muito estranho isso – comentou ele. – Há três calopsitas a menos nas gaiolas!
E assim outros animais começaram a desaparecer do recinto: os roedores, os cães, os gatos...
- Você anda comendo nossos animais? – perguntou Osvaldo.
- Não.
- E onde é que estão? Fui dar comida para a Pérola e ela desapareceu!
- Eu não sei.
Osvaldo pensou ser aquela a última ação de Alice contra quaisquer animais. Novamente, foi buscar o cartão do psiquiatra e sentou-se ao sofá, a discar o número.
Sorrateiramente, Alice dirigiu-se à cozinha. Munida de um cutelo recém comprado, cortou o pescoço do marido. Osvaldo agonizou pouco antes de cair desfalecido.
Com muito esforço, Alice arrastou seu corpo até a cozinha. Com o cutelo, abriu o corpo do marido. Serviu-se um prato e ali foi comendo as carnes cruas de seu corpo morto.