Nut - capítulo V

V

As sobras sempre são jogadas aos cachorros. Mas nesse caso, as sobras, quando havia, eram dadas a outros seres. Os bichos de estimação “dele”. Eis um prazer difícil de entender: criar seres humanos em cativeiro, abusando-os, tratando-os como animais, dando-lhes restos como refeição. Luna, a meiga garota de olhos brilhantes e hálito de sangue, surgiu à janela do apartamento de Demétris; saindo da penumbra de uma noite fria direto para os braços do jovem, fugindo de um cativeiro.

Um reencontro, na verdade, ou apenas a seqüência de um pesadelo?

— O que você é? – a voz de Demétris saiu fria.

— Eu...

— Você matou alguém? Você come – as palavras incharam em sua boca – carne de gente...

— Não...

Ela precipitou-se chorosa sobre o rapaz.

— Saia de perto de mim!

Com um solavanco a menina cai para trás, deixando os olhos verdes e ensangüentados rolarem no calçamento.

— Demi... Desculpe.

— Nunca mais apareça perto de mim!

Ele sai em disparada pela calçada, sem ver mais nada pela frente. Sentia um pavor na alma, todavia o olhar cheio de lágrimas da jovem ainda doía mais dentro dele.

Ele dobrou a esquina. Luna se sentou embaixo de um orelhão e, com a cabeça sobre os joelhos, soluçava.

— O que você faz aqui, garota?

A sombra do homem gordo cobriu todo o corpo da jovem.

— Daqui a pouco essa rua estará apanhada de gente e todos vão querer saber o que uma jovem ensangüentada faz aqui, sentada. Não vão acreditar que você trabalha num açougue.

Ela o olhou por cima dos joelhos.

— Eu só queria...

— Eu sei... Você só queria agradá-lo. Levante.

Luna deu a mão para Homero que a levou dali imediatamente. Os olhos presenteados a Demétris ficaram onde caíram, parecendo fitar os dois que desapareciam na rua naquela manhã sinistra.

***

— Fiz errado dessa vez?

A voz vinha de debaixo da cama, no mesmo apartamento sujo e cheio de livros do velho com o cajado de osso.

— Não. Você aprende rápido, Hanael. – a voz do velho se misturava à densa fumaça de seu cigarro caseiro.

— Por que não me deixa pegá-la de uma vez?

— Não preciso lhe responder isso.

— Mas senhor – a cama balançou um pouco – estamos nesse jogo de gato e rato há um tempo e...

— Cale-se. Não está se divertindo?

— Sim... Como nunca – e a voz embaixo da cama ganhou um tom sinistro, soava como um rosnado.

— Pois aproveite. Logo “eles” virão para tornar as coisas um pouco mais... COF! COF! – o velho engasga-se com a fumaça de seu cigarro. – Um tanto mais difíceis.

***

O local era úmido, lembrando muito um esgoto. Havia um fogão, uma pia, geladeiras. Uma cozinha, na verdade.

— Ainda está com fome? – Homero perguntou, de costas para Luna, que se encontrava preza atrás de grades embaixo da pia da cozinha fétida.

— Por quê? – a voz da garota saiu baixinho.

— Você poderia fazer sua caça em qualquer lugar, mas ao lado de minha lanchonete foi o fim para você, garota-monstro!

— Eu... Eu não...

— Cale-se! Pretendia não interferir para o bem daquele jovem, mas você estragou tudo...

Virou-se para a grade, mostrando um enorme facão recém-amolado.

— Não... Por favor – ela suplicou, sua voz soava agora como um miado de um gatinho acuado.

— Tivesse pensado nisso antes de fazer o que fez!

Abriu a grade, agarrou a garota pelos cabelos negros e a fez ficar de quatro no chão.

— Hum... Faz tempo que não trabalho mais nesse “ramo”. Vai ser uma forma de matar as saudades de minha juventude.

A jovem fechou os olhos, imaginando o momento em que o facão acertaria seu pescoço e a faria sangrar até a morte. Falou, por fim:

— Vá em frente. Mate-me.

Seu tom de voz agora tinha uma calma descabida.

— Hum. Vejo que entendeu que seres como você não podem viver à solta por aí. – Homero tentava esconder a surpresa com aquela mudança brusca de atitude.

— Acerte no ponto certo...

Os olhos de Homero se arregalaram.

“O ponto”.

Ele nunca tivera o dom de distinguir “o ponto”, normalmente ficava no pescoço, mas para matar um daqueles, tem que acertar o ponto vital correto, caso contrário uma fera terrível irá matar seu algoz imediatamente.

— No meu pulmão esquerdo. Pode acertar.

A voz de Luna parecia vir de outro lugar da cozinha de tão abafada que saiu.

— Eu pensei em desferir vários golpes de uma só vez, na verdade acho que não consigo mais fazer algo assim, mas acabaria acertando o “ponto”... Hum... Acho que vou acreditar em você... ADEUS!

O facão subiu e desceu à mesma velocidade.

Segundos depois, o corpo de Luna caia desfalecido no chão úmido da cozinha da lanchonete do Homero.

Continua...