Nenhuma nuvem a vista
Quando uma terrível praga assola todo o país, parte da população transforma-se misteriosamente em zumbis assustadores. Sem nenhuma razão aparente, os monstros recém-transformados possuem aversão a água, principalmente água da chuva, o que torna os dias chuvosos em uma excelente oportunidade para a população não infectada buscar abrigos seguros.
Enquanto isso, no meio do agreste baiano, Lívia correu até suas pernas não aguentarem mais.
Já fazia algumas semanas que o desespero tomara as cidades. Depois do surto mortífero que cobrira o país, não havia mais nenhum lugar em que pudesse manter-se em segurança. Morava apenas ela e a mãe em uma humilde residência na periferia de sua cidade.
Em uma manhã ensolarada, como somente no Nordeste é possível ter, sua mãe saíra para comprar alimentos e não retornara mais. Lívia era apenas uma menina, mas era inteligente o suficiente para imaginar o que havia acontecido. Agora ela teria que se virar sozinha. Por isso, durante a madrugada aproveitou que morava numa área afastada da cidade, e correu com todas as suas forças para o mais longe que pudesse ir.
Antes de sair de casa sua mãe havia lhe passado orientações para estar atenta ao rádio ao meio dia e à meia noite, porém, dificilmente ela conseguiria manter-se acordada para ouvir o rádio a noite, mas as 12 horas ela ficava com toda a atenção voltada para o que era informado. Junto com essa orientação, sua mãe lhe dissera que prestasse muita atenção a todas as informações que seriam dadas, pois disso dependeria sua vida.
Passados alguns dias desde que sua mãe saíra para não mais voltar, a menina entendeu que precisava se virar sozinha e sabia que na cidade não teria condição de permanecer em segurança. Nos dias que se seguiram ao desaparecimento de sua mãe, mantivera as portas e janelas bem fechadas e buscava acompanhar toda a movimentação da vizinhança pela fresta que havia em sua janela, sem deixar que sua presença fosse percebida. Dessa maneira observou quando toda sua vizinhança fora dizimada.
Depois de tantos dias sem a companhia da mãe, que era sua provedora, ela tinha fome, por isso decidiu sair para ver se encontrava algo nas casas ao lado da sua. Tivera sorte, encontrou algum provimento, mas nada que lhe garantisse a subsistência por mais de uma semana. Recolheu tudo o que tinha e que era possível levar em uma mochila e aguardou que surgisse alguma nuvem no céu como esperança de chuva. Três dias se passaram e nada, nenhum sinal de chuva ao alcance de seus olhos. No oeste da Bahia, a temporada de chuva é rara, por isso ela precisaria agir o mais rápido possível.
Na madrugada, ainda estava escuro quando Lívia deixava a cidade, pelo caminho havia um verdadeiro rastro de destruição. As poucas pessoas que não foram infectadas tornaram-se vítimas daquelas criaturas monstruosas que infestavam todo o país. Os corpos espalhados pelas ruas faziam exalar um odor pútrido tornando sua cidade um lugar inabitável. Por isso o silêncio que ouvia a dias, não havia mais sobreviventes, por isso as criaturas seguiram para outro lugar em busca de novas vítimas. Acharam que toda a cidade havia sido devastada.
Lívia estava assustada, cansada, faminta, e ainda assim, corria para ainda mais longe. Havia crescido naquela região, conhecia cada lugar como a palma de sua mão. Lembrava que quando era criança brincava em uma gruta, era distante, pelo que lembrava, mas talvez lá fosse seguro para ficar até aparecer ajuda.
Ela era uma garota muito esperta e logo conseguiu chegar à caverna onde desejava. Tirou a mochila das costas e colocou em um canto no chão próximo à entrada. Ali parecia um lugar seguro, mas o que iria acontecer quando suas provisões acabassem?
Antes de sair, ela se certificara de guardar o rádio na mochila. Por ser um lugar distante da torre, o sinal era fraco, por isso sua mãe costumava usar um pequeno adaptador quando levava o rádio para o trabalho no campo, na pressa Lívia se esqueceu de levar esse suporte, agora não conseguia fazer o rádio funcionar. Indignada chorou.
— Eu vou morrer aqui agora, sozinha, com fome e não conseguirei ouvir as informações sobre o surto mortífero. Como eu sou estúpida! - disse entre lágrimas.
Ela estava muito cansada e logo adormeceu sobre um lençol que havia levado na mochila. Em suas muitas tentativas de fazer o rádio funcionar, havia deixado o objeto do lado de fora, preso em um galho seco de árvore que ficava à entrada da gruta.
À meia noite, a menina acordou com o chiado do rádio ecoando pela caverna. No início, ela pensou que estivesse sonhando, mas ao perceber que o som era real, seus olhos se arregalaram de surpresa e esperança. Ela se levantou, ignorando a sensação de cansaço que ainda a envolvia. Seus passos a levaram até a entrada da gruta, onde o rádio estava transmitindo uma voz abafada e distorcida. Lívia correu para fora, segurando o rádio com as mãos trêmulas, tentando captar cada palavra.
Aos poucos, a voz foi se tornando mais clara, e Lívia conseguiu entender as palavras que estavam sendo ditas. Era uma transmissão de sobreviventes em uma área próxima. Eles afirmavam que tinha um plano de resgate para aqueles que precisassem de ajuda.
Ela mal podia acreditar no que estava ouvindo. As lágrimas corriam pelo seu rosto, mas agora eram lágrimas de alívio e esperança. Ela pegou o rádio e respondeu com toda a força que tinha em sua voz fraca, explicando sua situação e a localização da gruta. A voz do outro lado respondeu com a firmeza que ela desejava ouvir que logo a resgatariam. Para isso bastava aguardar a próxima chuva.
Alguns dias se passaram, enquanto esperava pelo resgate, Lívia não conseguia tirar os olhos do céu à espera de uma nuvem que lhe renovasse as esperanças. Sua provisão de alimentos estava se esgotando e outra vez Lívia olhava para o céu, nenhuma nuvem a vista.
Obs. O conto faz parte da coletânea Senhores da Chuva da Cartola Editora.