Gabriela
Dia 27 de abril, sábado. O tempo estava ótimo, sereno, com um vento de outono que anunciava chuva no dia seguinte. Sai para o pátio da casa e senti o clima encorajador do fim de semana.
Tinha tido uma onda de sonhos esquisitos que me fizeram pensar em momentos da minha vida até então. Algumas frustrações, alegrias e dissabores. O clima, no entanto, me alegrou e até planejei ir à praça ver meus amigos e tocar violão.
Troquei de roupa, escovei os dentes e preparei o almoço. Perto das 14 horas, peguei o meu violão e sai de casa em direção à praça. Como o carro estava com o meu pai, fui a pé por um trajeto que demoraria vinte minutos. O sol esquentava minhas faces e o vento passava de vez em quando para sacudir a copa das árvores. Cenas da minha vida ainda passavam em minha mente, como fumaças remanescentes dos sonhos da noite anterior. Solidão todo mundo há de sentir, mas nesta etapa da minha vida este sentimento é ainda maior, já que o término de meu namoro com a Alana já vai completar quatro meses, tal relacionamento que durou quatro anos. Morávamos juntos na casa em que habito agora, e todos aqueles planos de família, filhos, e futuro caíram por terra em um piscar de olhos. Já tinha superado isto, pelo menos tentava me convencer, e só em momentos específicos uma dor me acometia por algum tempo, fruto de acontecimentos aleatórios que me faziam lembrar dela. Pois bem... cada esquina um novo mundo. Ora um gato passava por mim, ora um cachorro. Ora um casal passava lá no outro lado da rua; ora um senhor idoso sentado em um banco. Carros, motos, o povo estava na rua aproveitando o dia agradável.
Chegando perto da praça, vi já de longe que lá havia poucas pessoas. Um grupo de jovens andava de skate na pista. Algumas famílias se divertiam com suas crianças no parquinho. As árvores belas e de variadas espécies moviam seus galhos pelo vento. Perto da pista de skate encontrei dois conhecidos. “Vai fazer show, hoje, Renato”, consenti, sorrindo. Fui até o lado oposto da praça onde tinha menos barulho. Ninguém em redor. Saquei o violão e comecei a afiná-lo. Às vezes alguém passava na calçada da rua. Mi... Si... Sol... Ré. Depois de afinado, comecei a tocar uma canção dos Beatles. Em seguida, “Angel Wings”, do Social Distortion. Um grupo se acercou, inclusive os conhecidos de antes. Algum que outro cantava junto. Depois foi a vez de tocar “Knew it all along” de uma banda americana desconhecida chamada “Midtown”, uma balada muito bonita, e que eu acredito ficar boa na minha voz. O pessoal que me assistia começou se dispersar, de certo não conheciam a música. Terminada esta, toquei a minha mais nova canção autoral, chamada “I remember the day”, cuja letra é a seguinte:
I remember the day I asked you out
You came with me to the square of our town and we
Said things which I can't recall right now
Cause the wind was passing through your ears
And I don't know how I didn't fall on my knees
To beg you to make this day last for years
Now it’s gone ah now it's gone all the rest of my dreams
Now it’s gone ah now it's gone for eternity.
Quando estava perto do fim, uma garota aproximou-se a minha direita. Usava um vestido de verão, branco, e seus cabelos ondulados eram castanhos e claros. Sentou-se no banco e apreciava a música. Quando terminei, pude notá-la melhor: ela era muito bonita; nenhum exagero em suas feições. Ela aplaudiu-me expressando um sorriso elegante e infantil. “Parabéns! Parabéns! Que música mais linda!”. Agradeci devolvendo o sorriso e acenando com a cabeça. “Mesmo que eu não saiba o inglês muito bem, achei a canção incrível”, acrescentou. Começamos a conversar sobre música, instrumentos e afins. Três rapazes que me conheciam se aproximaram quando eu comecei a tocar outra música de autoria própria. Ficaram por lá, a menina ao lado, sentada com as pernas dobradas sobre o banco, parecia prestar atenção profundamente. Quando acabei, o pessoal aplaudiu. Cumprimentei os rapazes e continuei conversando com a menina. “Como é o teu nome?” ela disse: “Gabriela, prazer!”. Começamos a conversar sobre o aprendizado em inglês, eu disse que estudo desde pequeno, que minha família me pagou cursos e algumas viagens para o exterior. Falei também do meu intercâmbio, dos amigos estrangeiros que tinha. Certo momento os rapazes saíram. Achei estranho que um deles, o que se chamava Otávio, disse aos demais, sem querer ser percebido “Ele tá doidão”. Por que doidão? Pensei, mas tudo bem. A menina tomava toda minha atenção. Contarei um pouco sobre esta conversa, do que eu lembro dela:
— E você, o que faz da vida? — Perguntei.
— Estudo geografia. — Gabriela respondeu.
— Legal, eu adoro geografia também.
— Eu gosto de dar aula. Já tive a oportunidade de ensinar um que outro parente que precisava de reforço na escola.
— Verdade. Eu gosto de tocar violão e compor música, mas não faço disto a minha profissão.
— E o que você faz, então?
— Estudo para ser advogado. Coisa de família, sabe, os pais meio que me “forçaram”.
— É... acontece. — Ela disse, com um ar meio triste.
Ficamos lá olhando a praça, para as árvores e as pessoas que passavam pela rua. Senti uma felicidade enorme em tê-la conhecido. Seus olhos tinham um brilho único, o que lhe dava um olhar meigo e sereno, quase amigável. Suas mãos rosadas por vezes ajeitavam uma mecha de cabelo que lhe invadia a face. Então ela quebra o silêncio:
— E tu, namora?
— Não, já faz um ano.
Meio desajeitado, mas convicto, beijei-lhe a face, na bochecha. Um cheiro de floral saiu de suas faces, um aroma muito bom. Fiquei um pouco tonto, com aquela sensação de ansiosidade típica de quem se interessa subitamente. Ela levou um susto, deu um pulo, mas logo soltou uma risadinha e olhou-me no fundo dos olhos. — Tu é meio bobinho, né? — Eu, sem saber o que fazer, pedi-lhe desculpas. — Não, de boa... — Ela passou então a conversar sobre animais, depois de vermos um cachorro caramelo passando numa esquina.
— Sabe, eu tenho um labrador muito bonito, todo preto. — Ela disse.
— É mesmo? Como é o nome?
— O Átila. Ele é bem dócil como todo labrador.
— Eu, infelizmente, não tenho mais cachorro nem gato. Só vez ou outra uma gata aparece lá em casa pelo pátio. Mas ela é da rua.
— Por que não a adota?
— Ah, sei lá. Quem sabe um dia ela para lá e não sai mais.
— Gostaria de ver o Átila?
— Sim! Tu mora aqui perto?
— Sim, posso busca-lo, ok? Tu me espera?
— Claro. Ficarei aqui.
— Já volto, então. — Ela disse, e levantou-se e foi para a esquerda. Cruzou a rua e desapareceu por entre um muro grande que eu não sabia o que era. Muito bem, pensei, logo ela virá com o cachorro. Eu respirava um pouco mais intenso, quem sabe estava apaixonado pela menina? A ansiedade calma de ver-se enamorado. Que loucura fiz com aquele beijo! Mas tudo bem, de certo ela não o teria odiado. Esperei lá e quinze minutos se passaram, nada. Depois meia hora, nada. Quarenta e cinco minutos, ela não vinha. Uma hora, nem sinal. “Mas que estranho” Pensei cá comigo. “Onde ela mora? Será que se assustou e queria fugir com o meu beijo?’. Uma hora e quinze. Uma hora e meia. Quando chegou uma hora e quarenta e cinco, não aguentei mais. “Ela foi por aquele caminho, né?” pensei. “Então vou lá ver o que é”. Levantei-me e fui em direção ao muro. Passei por dois dos rapazes que antes estavam ouvindo minha música e perguntei: “Vocês sabem quem era aquela menina?” Eles fizeram uma careta e continuaram caminhando, indiferentes. “Mas que diabo”. Cruzei a rua e virei à esquerda. Um enorme muro seguia em metade de uma quadra. “Mas que lugar é este?”. Achei um portão enorme, uma placa: “Cemitério Santa Rita”. “Meu Deus!”. Senti um arrepio percorrendo minha espinha. “E se... não pode...”. Desconfiado, entrei no cemitério e comecei a passear pelos corredores. Olhava as tumbas. Não era um cemitério com muitas lápides, mas sim grande em terreno. Tudo aquilo me deixou triste e confuso. Tentava conectar as ideias e o absurdo da situação me deixava perplexo. Lágrimas começaram a cair dos meus olhos. Ofegava, sentia um peso no peito. Para o meu desespero, em uma das lápides que lá havia, uma bem bonita e grande, estava escrito o nome de “Gabriela Onofre Panisson” — 1985 – 2015. Procurei pela foto, e lá ela estava, com as mesmas feições das quais eu vi, há pouco, nela. Devia ser de família importante, pois havia epitáfio e até uma estátua de um anjo por cima da tumba. Sentei-me sobre sua calçada e fiquei lá, chorando por meia hora. Depois, abatido e cansado, voltei pela praça e olhei ao redor, mas não achei-a. Assustado, voltei para casa e fui dormir mais cedo, numa tristeza jamais sentida por mim.
N’outro dia adotei a gata, e coloquei o nome dela de “Gabriela”.