Classificados

É noite. No minúsculo quarto de hospedaria circulo no caderno de classificados do jornal aquele que me interessa, retoco o batom rubro, coloco minhas luvas escuras, sapatos confortáveis, cachecol, casaco com capuz, dou mais uma olhada no espelho para conferir o visual e saio em busca da vaga de emprego assinalada.

Vasculho a cidade há três meses à procura de minha irmã, Josefine. Becos, vielas e ruas, todos revirados e as poucas pistas encontradas me trouxeram até aqui.

Toco a campainha e aguardo. Olho em volta, a casa da Baronesa, conforme uma placa velha e torta suspensa no poste de madeira, não assusta, tampouco a gentil senhorinha que logo me recebe à porta. A parca luz do poste e o capuz na cabeça deixam o meu rosto parcialmente visível, mas não faço menção de tirá-lo.

Me identifico e com um gesto amistoso a senhora indica o interior da residência.

– Me acompanhe, por favor! – Ela começa a caminhar sem olhar para trás e eu a sigo. Adentro o ambiente escutando com atenção, sem emitir som algum, as orientações sobre trabalho até chegar diante de um extenso corredor. Em cada passo, em cada canto que olho, visualizo os momentos de horror vividos nessa mesma casa.

Ouço o badalar de um sino. Um relógio de parede feito de carvalho com um pêndulo de bronze que me faz gelar até os ossos. Tantas coisas que já enfrentei e sofri me fizeram fria, distante, calejada, não imaginava que ainda hoje essas badaladas me desestruturassem dessa forma.

Todos os dias, às seis horas, pela manhã e ao cair da tarde, seis terríveis badaladas anunciavam o início de meu tormento. Sabia que era chegada a hora de receber a visita da baronesa.

Logo me recomponho. Felizmente, consigo afastar meu temor e a senhorinha não percebe minha fraqueza. Retornar a esse lugar, por mais que me machuque, se faz necessário, por minha irmã. Sinto em meu interior que as pistas estão corretas, Josefine está aqui em algum lugar.

Pensar que minha querida irmã possa ser vítima da baronesa me aflige. Não sei se ela seria capaz de suportar toda a dor. A promessa de um bom salário, de um emprego, de um teto para dormir e comida atrai garotas como mariposas em direção à luz. Crescemos num orfanato, sem o calor de um lar, éramos apenas nós duas contra o mundo.

Ao final do corredor, uma porta de madeira sem pintura e com largas dobradiças de ferro em suas extremidades está fechada. A velha senhora retira do pescoço um colar contendo uma grande chave torneada que introduz na fechadura e, imediatamente, a porta é aberta.

Saio de meus devaneios ao visualizar um arremedo de sorriso curvando ligeiramente os lábios da idosa. Sorrio junto mal conseguindo disfarçar o brilho de desprezo em meu olhar ao perceber que aquela senhora não me reconheceu. Talvez a luz difusa do corredor e o capuz dificultem a identificação.

Tenho a impressão que uma ponta de surpresa estampa momentaneamente a face da senhorinha, porém assumo que possa realmente ser apenas impressão, pois logo ela se recompõe e adentramos o ambiente que, segundo ela, será o meu aposento a partir de agora.

Nesse instante, um som semelhante a gemidos vem do interior do cômodo. Curiosa, ergo uma sobrancelha.

– Não se preocupe, é somente o gato da vizinha que entra por um vão na parede à sua esquerda – justifica a senhora apontando para um canto do quarto.

– Hum rum! – um som gutural em afirmação é a minha resposta.

A velha senhora sorri satisfeita, comenta brevemente sobre as garotas que ali trabalharam, enquanto eu recordo-me do quanto me deixei iludir com as palavras daquela mulher quando da contratação, há dois anos. Seu olhar bondoso, seu sorriso afável eram para mim a promessa silenciosa de aconchego. Mas escondiam toda a perversidade de seu ser.

Um arrepio transpassa minha coluna ao imaginar que possa ter sido esse o mesmo motivo que atraiu minha irmã, tão ingênua, para as garras da baronesa.

Logo, uma sombra no canto mais escuro daquele quarto me chama a atenção e me ponho em alerta. Preciso confirmar de onde vem os gemidos e decido caminhar naquela direção.

Minha irmã sempre foi introspectiva, sofria calada, nunca dividia suas dores, suas alegrias, seus momentos. Sinto e sei que está sofrendo nas mãos da baronesa. A certeza de que ela está aqui aumenta a cada minuto. É como se eu conseguisse sentir sua presença.

De repente, a senhora impede a minha passagem e, num gesto extremamente rápido para sua idade, me empurra com violência contra a porta prendendo-nos no interior do cômodo. E, com um andar felino, se aproxima.

Sem me deixar abalar, sorrateiramente levo uma das mãos às minhas costas e retiro da bainha presa ao cós da calça um punhal, mantendo os olhos fixos nos olhos da senhora. Graças às aulas de defesa pessoal que venho fazendo, em um único movimento seguro o pulso da velha, giro rápido o corpo e inverto nossas posições colocando-a de frente para a parede, imobilizando-a totalmente.

O capuz escorrega da minha cabeça e deixa transparecer uma profunda cicatriz que vai do supercílio direito até a linha do maxilar. Trago comigo as marcas dos tempos de horror. Só consegui fugir desse pesadelo graças à ajuda do ex-jardineiro da residência, que ouviu meu grito de socorro e encontrou uma passagem camuflada entre os arbustos do jardim.

A recuperação aconteceu de forma lenta, minha voz hoje é falha, não sou mais a bela jovem que um dia fui. Durante esse período me escondi de Josefine. Há dois anos venho fugindo de tudo e de todos, sobretudo de minha irmã. Tenho receio de impressioná-la com minha aparência. Ela sempre fora a gêmea mais frágil e impressionável dentre nós. E é isso que me apavora.

Sem muito esforço, empurro a senhora até o canto escuro onde avistara um vulto, obrigo-a a se sentar numa antiga cadeira de madeira com pontas de pregos aparentes e a amarro com tiras de couro do próprio móvel.

Retiro o cachecol que esconde um corte grotesco mal cicatrizado em minha garganta e com ele, amordaço a velha que se contorce de dor ao sentir os pregos lhe perfurarem a carne.

Ao enfim me reconhecer, a velha sua frio. Dou-lhe as costas e sigo na direção do som ouvido anteriormente, localizo o vulto de uma moça e me aproximo. Uma onda de dor me invade completamente ao avistá-la banhada em sangue, porém, ainda com vida. Tristeza e alívio me acometem ao perceber que não é Josefine. Ainda assim, pego-a no colo e carinhosamente deposito-a sobre a cama que há no quarto. Me solidarizo com sua dor.

Volto-me novamente para a senhora, agora com ódio e fúria circulando em minhas veias. Com um sorriso perverso e voz rascante indago: – Lembra-se de mim, Baronesa?

Ergo meu braço acima da cabeça e estou pronta a lhe desferir um golpe com meu punhal quando ouço um ruído vindo da porta camuflada no canto mais escuro, a mesma pela qual eu fugira há dois anos. Passos vêm em nossa direção, no entanto, a pouca luminosidade do local impede que sejamos vistas.

A baronesa ao perceber que alguém se aproxima começa a murmurar chamando a atenção. Logo, o som dos passos denunciam que a pessoa está bem próxima a mim, fico em alerta máximo.

Subitamente me viro e meu chão se abre. Uma bela jovem, um sorriso maquiavélico no rosto que logo é substituído por espanto, o mesmo que me acomete. Carregando uma bandeja com instrumentos metálicos já bem conhecidos meus, está minha irmã.