Boca de Morte
Tinha a alma revestida pela fraqueza. Recomendaram, então, uma breve visita à Madame Soraya, cujos caminhos da vida alheia sabia facilmente sondar.
Embora uma má sensação corresse em seu peito, era preciso romper com o estigma trazido por esses assuntos um tanto metafísicos e de todo inverossímeis. Se um psicanalista não lhe dera o jeito necessário para ter um quinhão que fosse de prumo para seguir a vida, o jeito seria apelar para as divindades superiores ou então para os oráculos.
A velha atendia nos Sete Navalhas, defronte a outro empreendimento que mantinha grosseiramente e no qual só lhe foi concedido porque soube forjar muito bem uma ou outra revelação - era uma tabacaria grande, imponente, muito frequentada na região do centro.
Convenceu-se a fazer uma breve visita. Para fugir das probabilidades do flagrante, resolvera ir perto da meia-noite, onde os passeios noturnos eram mais escassos. Preparava-se constantemente para o encontro. Vestia-se e, em seguida, deitava as roupas ao chão, e novamente procurava outra combinação que servisse, depois tornava a recompor-se com a camisa que antes já havia descartado. Maldizendo seu infortúnio, em desespero, sentou-se na cama e tentou adormecer para sempre; não conseguindo, levantou-se novamente, agora bem disposto, e seguiu nesse vaivém até que sua mãe estivesse resguardada e ele finalmente conseguisse trancar toda a casa e sair à rua.
Não fazia frio. Fora isso, havia no ar não sei que branca névoa elevando-se sobre o chão e dando a Avenida Floriano Peixoto um ar gélido e sombrio.
Percorreu com receio as calçadas. Um degrau mal espelhado, um automóvel em alta velocidade ou até mesmo uma árvore balançando por influência do vento seriam suficientes para despertar o seu patológico medo de existir. Era um menininho, inapto para a vida, dizia sua mãe, pois se recusava a chamá-lo de homem. Além do pânico característico à sua personalidade, dominava-o uma atroz sensação de constantemente estar sendo seguido; embora os últimos acontecimentos fossem suficientes para elevar esse mau agouro, tranquilizava-se com a sabedoria de quem toda a vida lutou contra esses mesmos pressentimentos.
Ao sair da Avenida Floriano Peixoto e adentrar na Aderbal Piragibe, rua da qual estava disposto a colocar todo o seu futuro diante daquela vidente, sentiu o desejo de refazer o caminho de volta para casa, deitar na sua macia cama, beijar a mamãe na testa, assistir alguns episódios da sua série favorita e esquecer por completo toda aquela infeliz ideia. Não sabia ao certo porque se resignava tão facilmente às opiniões alheias, concordando com tudo que lhes propusessem desde que isso não gerasse qualquer tipo de conflito. Embora se se desentendesse com frequência com sua amável e intocável mãe, sabia estar abaixo de um ser superior cuja maternidade lhe concedia um incontestável poder perante o filho. Se ela lhe pôs naquele terrível mundo, com todas as dificuldades inerentes à nossa época, o que poderia fazer? Como todos nós, não escolhera as condições físicas nem o berço familiar ao qual rebentaria. Sacudiu-se e repeliu a ideia de desistência: se estava indo para se recompor, iria se considerar ainda mais covarde se o primeiro gérmen de recusa fosse suficiente para tolhê-lo das de suas mais íntimas pretensões.
Pouco ou nada sabia sobre a Madame Soraya - como o ciclo de amigos conservava-se perto do zero, precisava firmar-se nas poucas informações que lhe chegavam; e como sempre acontece quando não se dispõe de uma infinidade de possibilidades, fiou-se em sua própria crença, conduzindo seu desejo do modo como lhe aprouvia - a sua certeza era de que, como uma rosa-dos-ventos, aquela vidente certamente o guiaria para o caminho correto.
A tabacaria fervia em gargalhadas e uivos frenéticos. Uma turba jovial bebia e baforava na calçada. A inteligência da madame previra até isso: o desejo de fumar descambava sempre no desejo de beber, e abarcando interesses tão próximos, aquela esquina da Aderbal tornava-se local preferido dos ermos noturnos.
Mal entrou na rua e de pronto assustou-se. Sentados em uma mesinha gasta, aquele grupinho sorria, brincava e proferia insultos mutuamente. Precisava de todo modo evitá-los. Pensando ser impossível fazê-lo, considerando a tabacaria estar defronte ao seu destino, cogitou novamente a desistência. Outra vez o sentimento de covardia lhe tomava por completo. Nessas situações banais e corriqueiras, que pareciam simples até para uma criança, para ele eram penosas, precisando sempre de um empurrão ou de uma força interior que o soerguesse; mas a fraqueza de sua natureza não permitia grandes ousadias; sozinho, desalentado, sacudiu-se e, antes que pudesse fazer o movimento de retorno, um dos rapazes gritou da frente da Tabacaria:
- Aquele ali não é o Boca de Morte?
- Vem cá, Boca de Morte!
Não sabia ao certo a origem do apelido; em determinados momentos aludiu a possível estranheza que a paralisia de sua boca, causada por um grande trauma, despertava. De outras pensava tratar-se do incidente ocorrido ainda criança, quando a vista de vulnerabilidades inerentes à pobreza precisou ele e a família recorrer a métodos que poderiam muito bem fazer inveja aos habitantes do novo mundo. O fato não lhe causava repulsa, pois com a relativação das coisas com a qual estava habituado aquilo poderia muito bem entrar num panorama situacional , reflexo de uma ocasisão isolada- não refletindo um gosto peculiar por certos prazeres ocultos.
Encarou seus demônios e foi até aonde estava o grupo de amigos:
- Na época da escola o boca de morte era cheio das frescuras, não era? Bom dia, senhor! Me vê dois quilos de patinho móido, por gentileza.
- Boca de Morte era calado demais. Ninguém achava que ia dar pra gente. Ta aí agora trabalhando numa multinacional, lidando no setor de cortes nobres.
- Numa multinacional!
- De cortes nobres!
- E dona Maria, Boca de Morte, vai bem? Saudade, viu? Diz pra ela que o Nino mandou um beijo.
Sentia que as mudanças já se apresentavam em seu íntimo; não sendo adepto da mentira, e sabendo também que não havia porque fazê-lo, contou-lhes sobre a frieza da mãe, da palidez com que há bastante tempo se conservava; contou-lhes também dos divãs sem retorno que eram as conversas que mantinha com ela. De umas semanas para cá deixou de ouvi-lo, olhando-o sempre com aquele imutável rosto, exangue, reprimindo-o como sempre fizera, expondo-lhe suas fraquezas e sua imperícia para existir.
A certa altura os amigos de infância já não davam tanta atenção para suas falas. Decidiu assim interromper o monólogo e retomar o caminho para o Sete Navalhas.
Cruzou a rua e logo se deparou com o portão de ferro grosso; as paredes, em redor, eram de um branco mal caiado e quase imperceptível. No lado esquerdo, em relação ao limiar da entrada, estava grafitado na parede uma carta representando o sete de paus. Do outro lado, mais uma carta, agora representando o seis de ouros; estavam dispostas de modo a suscitar uma correspondência mágica da qual não conseguia referenciar de imediato. Deus dois toques na campainha e foi recebido pela própria Soraya - lindamente trajada num organdi azul.
O local trazia um cheiro nauseabundo e no ar havia ainda aquela névoa volumosa, agourenta, emprestando ao estabelecimento um tom desagradável. Nunca havia entrado num lugar como aquele antes. Estava assustado. De imediato, em seus olhos a madame não reparou nada, talvez porque a corcunda e o queixo proeminente quase aterrado no peito tomassem para si toda a atenção. No entanto, logo depois, passou a fitá-lo diretamente, fixando-se na direção do seu globo ócular. Se os olhos refletem tão bem a alma de um sujeito, o olhar dele era um fundo e espesso açude, cujas àguas noturnas não permitem distinguir meios e fins, deixando-nos margem para interpretações obscuras. Assim como a noite suscita o medo, aquele rapaz em todo seu aspecto e constituição física produzia um estranhamento ao mundo - parecia de todo alheio, indiferente a qualquer força superior ou punição divina.
A Madame abriu uma caixa preta, armazenada dentro de um de seus armários, e cautelosamente retirou uma vela; a doce resposta que lhe saiu da boca sugeriu que o fizesse para espantar os mosquitos, mas o eriçamento dos pelos em seu braço direito prontamente acusavam-na de catastróficos presságios.
Passado o procedimento inicial de apresentação, sabiamente conduzido pela vidente, viu-se calado e bem sentado num banquinho beje, curto, onde a altura em relação ao piso de cimento queimado fazia suas costas doerem.
- homens como você vêm o tempo todo aqui. Querem um rumo, um horizonte para se guiar na vida. Venha, menino, tira uma carta.
- Tá vendo essa aqui com a caveirinha segurando uma foice? Essa representa a morte. Mas não a morte futura. Não, nem se avexe! Ela representa a morte de alguém que já se foi . Uma morte já morrida.
- Então não é previsão, madame, se o morto já foi velado.
- As cartas sabem muito bem o que revelam: e elas sugerem que é preciso fazer uma reflexão diante da morte. Olhe esta outra - e apontou para uma outra carta posicionada na mesa - ela nos mostra a aflição de um corpo sem descanso. Vê o baú? É um objeto sem fecho. Tem algo na sua vida sem conclusão, menino?
- Tem não, madame.
Ao dizer essas palavras, súbito veio-lhe o desejo corrosivo de estapear aquela velha mentirosa, de artimanhas tão conhecidas e de charlatismo tão escancarado. Como não dispusesse de força e tino para proferir todos os impropérios que agora irrompiam na sua mente, e muitos menos para ir às vias de fato, apenas agradeceu a consulta e meteu-se para fora daquela ambiente sufocante.
Do lado externo a atmosfera mantinha-se: o vento trazido pelas vozes das ruas causou-lhe tremendos arrepios - a noite alta parecia dizer que o momento de ação finalmente haveria de chegar e, temendo qualquer tipo de atitude sua, viu-se encurralado pelas possibilidades. O verme roedor, com o qual estava habituado, molestava-o por dentro, dolorosamente empurrando-o para o desfecho daquilo que há tanto adiara.
Mediante a agitação produzida pela embriguez, o duro coração dos amigos na tabacaria jamais entenderia aquela pujante dor produzida pelo desleixo. Sua postura diante dos acontecimentos não era senão uma tentativa de recusa, o meio que lhe sobrou para manter seu único vínculo com o amor, mesmo que esse tenha se mostrado desamasiadamente protetor e despótico.
A conclusão era inevitável. Estava pronto: precisa encarar face a face aquela mal irremediável, a ocasião única que nos retira desse tão singular ciclo e nos leva para o desconhecido. Apalpou os bolsos da calça, puxou o celular, pensou em discar o telefone cujos dois últimos números terminavam em sete e seis, e ensaiou o pedido. Vacilou na decisão. Para manter o segredo e passar despercebido, precisaria de um involúcro fechado. Encomendaria o mais belo de todos, revestido de madeira boa e envernizado por fora, desde que não houvesse visão para o seu interior. Ao redor, ainda poria algumas flores para ratificar a dissimulação. Digitou o número, vacilante, e antes que pudesse concluir a encomenda, um dos amigos, após uma lenta e profunda tragada, atravessou a rua e veio ao seu encontro. Esperou impassível enquanto este outro cruzava lentamente a pista. Sua alma se concentrou. Em vão olhou para os lados na tentativa de socorro; então entendeu.
- Nem se incomode, boca de morte - disse-lhe - já encontraram o corpo.