A Cartomante
Eram 22 horas. No bar Antipelego, a conversa regada a cerveja e a cachaça era comandada por trabalhadores da construção civil. Depois de dez horas seguidas de trabalho, eles se reuniam no popular bar de Barro Preto, em Minas Gerais, para relaxar e molhar as mãos cheias de calos. O assunto quase sempre era futebol. Naquele dia, 27 de dezembro de 1940, o tema futebolístico debatido era assaz específico: torcedores do Palestra Itália e do Atlético-MG debatiam sobre quem iria vencer a final do Campeonato da Cidade, que aconteceria dois dias depois.
A discussão era intensa. Apostavam x cruzeiros, y cruzeiros, z cruzeiros. Mas o mais interessante eram os argumentos que inventavam para justificar a vitória de um ou de outro. Um alfaiate que vivia do outro lado da rua, torcedor fanático do Palestra e envolvido em atividades políticas de esquerda, tinha um argumento “materialista” (de acordo com palavras dele) que o levava à conclusão - vejam só - de que o seu próprio time seria derrotado.
- Palestra só vencerá o Atlético quando abandonar o reformismo pelego! - ele disse.
- Aaaaaahhhhhh!!! - os outros bêbados gritaram.
Uma postura revolucionária faria o Palestra ser vitorioso. Mas não entenda isso, caro leitor, de forma literal. Ele estava se referindo a questões táticas. O Palestra, segundo o nosso marxista, deveria largar o burguês WM e jogar no 4-2-4. O alfaiate possuía uma coluna no jornal esquerdista O Bloco Vermelho, onde comentava discussões táticas.
Outro bêbado, também palestrino, admitiu ter curtido o argumento.
- Eu caí fora da Itália porque não estava aguentando aquele careca falar tanta merda. Me dá até um certo alívio escutar algo assim, embora não faça o menor sentido. - ele disse.
Um bêbado atleticano resolveu usar argumentos futebolísticos.
- O Atlético vencerá porque é bicampeão.
Ele havia lido em algum lugar sobre a “Teoria da Hegemonia”. O criador dessa teoria havia se inspirado em Paul Kemmerer e sua “Lei da Serialidade”. Haveria um lei por trás do bicampeonato atleticano que regeria a sua hegemonia no futebol. O futebol estaria sob um “sistema” em que o título de campeão acontece em série. Com isso, o atleticano concluiu que o seu time do coração venceria mais uns 10 campeonatos da Cidade, quando ocorreria a ruptura com esse “sistema” e outro clube daria início a sua própria hegemonia.
- Por que vocês acham que o Time Verde venceu 10 campeonatos seguidos? Foi a Lei da Hegemonia.
Depois de escutar tantas teóricas exóticas que explicariam a vitória de um dos dois times, o palestrino Giovanni resolveu falar.
- Vou contar para vocês. Tem uma cartomante aqui na área. Perguntei a ela sobre o jogo Palestra x América, no dia 1º de dezembro. - ele disse. - Ela acertou!
- Acertou o placar? - perguntou um bêbado.
- Só disse que ia vencer.
- Aaaaaaaaaaaahhh!!! - mais uma vez, os bêbados gritaram.
- Só acreditarei no dia que ela acertar o placar exato! - disse um bêbado.
Enquanto a bebedeira rolava, Antonio chegava ao Antipelego. Não para beber, pois ele estava tendo êxito em segurar seus impulsos boêmios. Estava indo ao bar para buscar o irmão Giovanni. No caminho, ele já havia escutado menções ao confronto entre palestrinos e atleticanos. Só se falava nisso na cidade.
Ele entra no bar e vai até o irmão.
- Vamos ter que sair amanhã cedo. Trabalho! E sua mulher lhe procura.
Os dois saíram do bar. Giovanni andava cambaleando um pouco.
- Me leva para a outra rua! - pediu Giovanni.
- Por quê? Você vai acordar de ressaca e quer beber mais? Quer perder o emprego?
- Deixa de reclamar e me leva. Coisa rápida!
Enquanto eles vão a esse local, vamos às breves biografias dos dois irmãos. Giovanni é trabalhador da construção civil e casado. Antonio trabalhava num pequeno comércio. Era solteiro e sonhava em ser advogado. Possuía conhecimentos matemáticos avançados e era visto como o mais “racional” entre os irmãos.
- Ah, você não está falando sério. - disse Antonio. Os dois irmãos estavam de frente à casa da cartomante mencionada por Giovanni.
- Quero saber se nosso time vai ganhar. - afirmou Giovanni.
- Você acredita nisso?
- Antonio, você tem uma ferradura pendurada na porta! Só te acha racional quem não te conhece!
- Você não acredita na ferradura, mas acredita nisso?
- Você não acredita nisso, mas acredita na ferradura?
Giovanni ficou quieto. Ficou subentendido entre os dois que a discussão encerrava e o pedido de Giovanni teria de ser acatado. Antonio foi desarmado com o argumento que menciona a ferradura em sua porta.
Os palestrinos bateram na porta. Não apareceu ninguém.
- Giovanni, é tarde. Ela nem deve estar aí. Ou foi dormir.
Então, apareceu uma mulher. Era a Cartomante. Giovanni disse que queria consultá-la. Ela desceu as escadas, abriu a porta. Depois subiu enquanto dizia:
- Subam.
Subiram duas escadas. A iluminação estava ruim. Giovanni tropeçava toda hora. Estava bêbado. Mas conseguiram chegar inteiros ao sotão. A sala que havia ali era humilde e com bagulhos por toda parte. Em cima da mesinha, onde os dois irmãos sentaram, havia uma bola de cristal e cartas de baralho.
A Cartomante sentou em frente a eles.
- Já sei o que trouxeram vocês aqui! Estão aflitos e curiosos se o time de vocês vencerão no dia 29.
- Isso! Perfeito! Olha aí, Antonio. - disse Giovanni, entusiasmado. - Meu irmão não acredita nessas coisas.
Isso não impressionou Antonio, que pensava “claro que ela notar que somos torcedores, pois estamos vestindo a camisa do Palestra”.
A Cartomante embaralhou as cartas com seus dedos finos.
- As cartas estão me revelando… - ela disse de uma forma que tentava despertar a curiosidade de seus clientes.
Giovanni estava com os olhos arregalados. Antonio manifestava um cenho indiferente.
- Por alguma razão, não consigo ver. - disse a Cartomante.
- O quê?! - perguntou Giovanni. Antonio continuava indiferente.
- Não consigo ver o que ocorre. As cartas estão saltando no tempo. Do dia de hoje, a revelação pula para dezembro de 2019!
- Giovanni, vou dar um fora daqui. Isso é ridículo. - disse Antonio, expressando irritação.
- Calma, Antonio!
As cartas continuavam sendo embaralhadas. Mas segundo a Cartomante, ela não conseguia ver nada nos próximos 79 anos. O seu serviço se tornava, portanto, inútil para Giovanni.
- Então, nos diga. - disse Antonio.
- Hã? - perguntou Giovanni.
- Diga. O que vai acontecer com o Palestra daqui a 79 anos!?
- Quer mesmo saber? - perguntou a Cartomante.
- Antonio, agora acredita?
- Já viemos aqui, perdemos tempo… Vamos assistir a palhaçada completa. - disse Antonio.
De repente, a pouca iluminação se apagou. A bola de cristal começou a brilhar.
- Isso só pode ser um truque! - disse Antonio.
Na bola de cristal, imagens. Trófeus, uniforme azul, Mineirão… A Cartomante caiu e começou a se contorcer como se estivesse tendo uma convulsão. Ela começou a falar com uma voz roufenha e tenebrosa:
- Libertadores, 6 a 1, Campeonato Brasileiro, jogo na neve com Bayern de Munique, Série B, Itair Machado…
- Do que diabos ela está falando?! - perguntou Antonio.
- Não sei! Vamos embora daqui! - disse Giovanni.
- É um truque! Ela quer nos assustar! - afirmou Antonio, que estava visivelmente assustado.
Os dois desceram correndo as escadas e saíram para rua e depois correram para casa. Giovanni nem cambaleava mais. O susto o fez ficar sóbrio rapidinho.
FIM