Cupido Negro ...

Ela era como um verdadeiro espetáculo vivo, um "número perigo" para os olhos. Não era apenas sobre a mulher na prancha giratória, sobre a precisão, a frieza e o cálculo exatos no manejo dos punhais, não. Era mais que isso.

Era bem verdade que o tilintar de facas que cruzavam o ar em sua direção arrancavam arrepios do público embevecido, mas não o menos era que cada assobio, cada grito contido, cada olhar em que se deixavam transparecer ao mesmo tempo lascívia e inveja, medo e desejo, remorso e paixão se voltavam para ela, estavam destinados a ela.

Sua beleza era diferente, misteriosa e sombria, desconhecidamente poética: seus lábios, de indecifráveis, pareciam segredados ao silêncio eterno do palco, seus olhos eram como duas tochas; e se a multidão de seus cabelos negros já não aqueciam seus ombros, era porque o inverno habitava em sua pele.

Sempre que o circo partia cada nova cidade assomava um enigma àquele coração ( a quem muitos assegurariam como "imperturbável e frio, ocupando algum outro lugar do espaço e do tempo" ); eles iam e vinham, tudo apostando, se entregavam à loucura, e da flor ao ouro mediam o preço de seu amor: ninguém, no entanto, um suspiro, um olhar, uma tênue esperança sequer arrancou àquele coração, que parecia inumano.

Houve um dia, porém, um dia qualquer de um outono febril, no cair de uma noite de março que a história mudara. Ali da platéia, depois dos aplausos; depois das mesuras; depois um fim de número qualquer seus olhares se entrecruzaram: depois vieram as cartas anônimas, os poemas, os envelopes marcados de rosas e suas mil juras apaixonadas, tudo isso, unido ao mistério, acabou por assenhorar-se daquele jovem coração. "A flor gelada" enfim se apaixonara.

Suas correspondências perseguiram dias a fio, de cidade em cidade, sempre a mesma caligrafia, o mesmo perfume, o mesmo romance. A jovem menina seguia normalmente a sua vida de artista coadjuvante, quando, um dia ( já completamente perdida de amores ) recebeu aquele inusitado convite: ela abandonaria o circo e os seus, deixaria a vida na estrada, a vida andarilha, "eles viveriam juntos". Ela aceitou prontamente. Combinariam a sua fuga.

Estava tudo pronto, seu melhor vestido e maquiagem, "e não a de arlequim": não era mais "a donzela em perigo", "o pássaro aprisionado a um palco"; mais do que isso, somente o seu coração era agora a sua "bússola", e seus olhos, suas duas candeias de amor! Ela partiu.

A noite, então, caía, e ela esperava no lugar marcado e hora exata: a cada novo som que se ouvia à distância, a cada novo sopro de vento e folhas na estrada suas pulsações ritmavam ( o relógio desconhecia a Deus ), o tempo tinha pressa. A noite ia tarde, tão tarde como quando as estrelas brilham em seu esplendor e no meio do céu a lua é de prata; os grilos cantavam por detrás das árvores e moitas e suas lágrimas anunciavam o medo ansioso: "o que acontecera?" Quando ela tristemente tomou o seu caminho de volta.

Sozinha por onde andava ela tentou consigo mesma decifrar o que significava tudo aquilo, precisava de uma resposta, de algo ou alguém a quem culpar, fora esse algo a sua hesitação, a sua timidez? A sua insegurança a despeito de todas as juras, de todas as cartas de amor? Seria essa a consequência final, seu abandono? "Dois minutos antes", ela pensava, "apenas dois minutos" — ... mas não, não ainda, havia um homem na estrada! Uma sombra se aproximava, chamava por seu nome: "amor", ela dizia, "por que tão tarde?" Nesse momento alguém tocou seu braço, tapou seus olhos, a amordaçou: tudo o que restava era a escuridão, um sonho mau acabara de começar.

Se era realmente ele quando ela acordara o que significavam as roupas rasgadas, o sangue nas coxas, a pele nua, vermelha e suada, as feridas, a risada e o quarto escuro? Ela se sentia morta, não esboçava movimentos, reação, e nada entendia dos rostos estranhos, dos que se aproximavam, dos que se revezavam sobre seu corpo: tudo era dor, tudo era distante, e se conseguia distinguir algo era quase sempre confundida pelo zunido ensurdecedor que tomara seus ouvidos. Mais uma vez a menina apagou.

Voltara a si alguns dias mais tarde, ali, entre os arbustos, nos arredores de um circo, suja, repleta de lesões e maltrapilha do que restara de suas roupas; Enfim encontraram-na e o circo partiu ... Foram remédios e mais remédios; noites sem conta, sem dormir; crises de convulsão e pânico; feridas íntimas, alucinação; pesadelos e lembranças invasivas: tudo isso dividia agora o espaço de sua existência. A flor severa estava em pedaços.

O tempo se limitava agora a espaços de terra, a estadias de cidade em cidade, não havia espetáculo: a estrela morria lentamente e trocavam o seu brilho pela maquiagem, pelo preto e o carmim ( e ela sequer se assustava, "era um alvo a menos no tablado" ); era como uma boneca improvisada: soturna e indelével; em seus olhar não se liam mais o medo nem a paixão, neles não havia sombra nenhuma de vida escrita; estavam finalmente decididos a pôr um fim em sua carreira, o circo "precisava de uma mulher", era o que anunciavam quando o jogo mudou.

Um certo dia de um certo espetáculo em que pouco se esperava de público e atração, ela entrou; trazia em mãos sete punhais e uma tocha, foi sublime: o que parecia ser ela na giratória eram bonecas de verdade com suas roupas! A menina dançava com desenvoltura ( uma dança de chamas e aço ), a cada novo passo que dava adiante uma boneca era incendiada; cravava seus punhais nas mãos, nos pés, ou em qualquer parte indicada das mesmas por aqueles que assistiam àquele "réquiem de fogo": a estrela cintilava novamente, e mais que isso, era "um Sol."

Sua fama percorreria os quatro cantos de onde quer que aquele velho circo assentasse, e ela era sempre anunciada; todos ouviam as histórias sobre "a nêmesis em corpo de mulher", "a bruxa arlequim", "cupido negro dos palcos"; e foi numa noite de um grande espetáculo, já esperado ( havia alguém muitíssimo especial sentado ali na plateia ), seus dois olhares se entrecruzaram, ela dançava loucamente e o aço vermelho ardia; foi assim que chamaram àquele grandioso número: "o número de sangue", a menina estava vingada.

Christopher Bennett
Enviado por Christopher Bennett em 25/04/2024
Reeditado em 08/10/2024
Código do texto: T8049243
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.