Nut - capítulo IV

IV

— Desculpe...

Luna baixou os olhos como um cachorrinho amuado.

— Calma... Por sorte eles saíram mais cedo e não escutaram o barulho... Aliás, que barulho foi aquele?

A garota ficou rubra. Naquela manhã, enquanto os passarinhos cantavam docemente no parapeito do prédio, Demétris acordou com um barulho ensurdecedor em seu quarto: um terrível urro.

— Desculpe mesmo, Demi... Não tive intenção... É que eu... Eu...

— Você o que? Está com fome, é isso?

Os olhos da garota se iluminaram. Ela se precipitou mais uma vez sobre o rapaz, que virando o rosto para o lado, ordenou:

— Você precisa se vestir... Use as minhas roupas, por enquanto...

— Ah, sim... roupas – ela ficou pensativa, sentada à beira da cama. – “Ele” não me pedia para usá-las – disse em tom imperceptível.

Demétris procurou em seu guarda-roupa algo que servisse na garota. Achou uma bermuda estilo praia e uma camiseta, a menor que ele dispunha.

— Tome!

Ela se vestiu sem maiores comentários.

Na cozinha ele preparou ovos mexidos, frutas e outras guloseimas matinais.

— Dessa vez eles se lembraram de deixar comida para o filho – disse, em tom de desabafo. — Está servida? – ele riu, enquanto perguntava.

Luna avançou sobre os pratos e devorou tudo com voracidade, exceto as frutas.

— Nossa... Você devia está com muita fome, realmente.

Ela pareceu não escutar o comentário.

Em poucos minutos não havia mais nada à mesa.

— Obrigado...

— Ah, de nada... Acabei ficando sem ter o que comer...

— Ah!

Ela baixou a cabeça novamente.

— Desculpe.

— Não precisa. Eu vou tomar café na lanchonete do Homero, como sempre. Quer vir comigo?

— Eu posso mesmo?

Ele riu daquela pergunta.

— Claro que pode. Mas antes lave a boca e escove os dentes – lembrou-se repentinamente do terrível hálito de sangue. – Tem uma escova lacrada dentro do armário.

***

A lanchonete do Homero estava fechada. A polícia isolara todo o perímetro do estabelecimento que ia de um beco ao prédio onde, no térreo, a lanchonete ficava. Havia já curiosos àquela hora da manhã.

— O que houve – Demétris perguntou ao homem gordo e, como sempre, de avental.

— Mais um ataque do “notívago”... Só que dessa vez o miserável achou de comer sua vítima bem do lado de minha lanchonete. O maldito vai acabar com meu negócio! Quem vai querer comer do lado de onde encontraram os restos de uma prostituta?

— Aqui... Tão perto de casa.

Demétris parou para pensar na noite passada. Os acontecimentos estranhos que, agora, estranhamente não pareciam ter alterado sua rotina.

— Homero, eu sinto muito...

— Não precisa, jovem, eu vou pegar esse miserável! Ele mexeu com a pessoa errada dessa vez.

No rosto rosado de Homero viam-se algumas rugas rígidas em cima das sobrancelhas, dando-lhe um ar estranhamente sério.

— Oh, não! Luna, onde ela está?

— Quem? – quis saber o dono da lanchonete.

— Luna, uma garota que eu conheci ontem à noite. Ela veio comigo. Mas... Onde ela se meteu?

— Hum...

— Vou procurá-la. Até, Homero.

— Até – o homem falou baixinho, enquanto o jovem saia em disparada. – Espero que a encontre. Quem sabe ela consiga fazer você “enxergar”...

Demétris procurou no meio dos curiosos que tentavam ver o trabalho da polícia, mas não notou nenhum sinal da garota. Procurou em outros estabelecimentos da rua, alguns ainda estavam fechados, mas não obteve êxito.

— Droga! Onde ela se meteu?

“Por que estou tão preocupado?”

De súbito um pensamento veio à sua cabeça, como um relâmpago: e se ela voltou para casa, para sua casa de verdade? Ou melhor (e este pensamento lhe causou uma estranha sensação de vazio, algo que incomodava profundamente, deixando-lhe extremamente nostálgico): e se ela não tivesse, de fato, existido? E se tudo não passou de um sonho?

— Demi...

— Ah!

A mão da jovem tocou o seu braço e ele sentiu um líquido quente nela.

— Luna... Eu pensei que...

A rua estava fria. Uma manhã calma, extremante calma, só não na lanchonete do pobre Homero.

Ele se virou e viu a garota. Ela estava com o rosto todo lambuzado de sangue. Suas mãos também.

— Desculpe Demi.

— O que você fez?

Os olhos do jovem estavam arregalados.

— Eu ainda estava com tanta fome...

Ele se afastou, soltando a mão dela que estava agarrada ao seu braço.

— Por favor, perdoe-me... Eu... Eu trouxe algo para você...

Colocou a mão dentro do bolso da bermuda e retirou algo, que cobriu com a palma das duas mãos, exibindo o conteúdo abruptamente à frente do jovem.

— Eles eram tão lindos. “Ele” não os quis... Pensei em trazê-los para você, Demi.

O coração de Demétris palpitava; os dois globos oculares soltos nas mãos da garota pareciam fita-lo, dois olhos verdes e ensangüentados.

Demétris fechou os olhos tentando recobrar sua sanidade, abriu-os novamente e olhou a face rubra de Luna, evitando suas mãos. Disse por fim:

— O... O que você é?

Continua...