Decúbito Dorsal
Naquele sábado caloroso, Arnaldo estava enlutado. Ninguém de sua família havia falecido tampouco algum dos seus escassos amigos. Estava de luto por si mesmo. Percebeu-se acordado sobre a cama em um silêncio sepulcral. Em decúbito dorsal, estava prostrado sobre o colchão com os dedos entrecruzados, como se estivesse a se preparar para o esquife. Pensava ser aquele um de seus últimos momentos.
Súbito, a campainha tocou. Uma sensação de impotência o tomou porque não conseguia levantar-se. Abriu os olhos e fitou o teto. A campainha soou novamente. Então, uma terceira vez. Alguns instantes depois, o celular começou a vibrar ao seu lado. Não tinha forças para tomá-lo de sobre a mesa de cabeceira. Ao lado do celular, o último livro que tentara começar a ler. Algum livro de Henry James. Um copo d’água pela metade, algumas cartelas vazias de aspirina e a foto de Helena – que, pensara ele por um instante, devia ser a pessoa a tocar a campainha naquele momento e a fazer aquelas ligações.
Mas o que Helena quereria consigo? Talvez pegar suas últimas trouxas de roupa que havia esquecido e soltar-lhe palavras que certamente perfurariam seu ego a fim de deixá-lo mais aborrecido e tristonho que antes.
Porém, se fosse Helena parada à porta do apartamento – outorgada a subida devido à afinidade que tinha com o porteiro –, ali ficaria, pois Arnaldo sequer fizera a menção de se levantar. Ele sentia que ainda estava vivo. O peito arfava lentamente devido à respiração que ora inspirava, ora expirava. Sentia a barriga a encher e a murchar.
O corpo estava duro feito pedra. Por mais que quisesse mudar a posição, não conseguia. Somente os olhos – como se estivessem presos dentro daquele corpo – e os pensamentos é que se moviam. Tudo se lhe passava pela cabeça naquele momento: as tristezas, as alegrias, os triunfos, os júbilos, as tragédias. Porém, Arnaldo não conseguia mensurar o que era bom ou ruim. Apenas avaliava-os com o olhar cego da justiça. Uma justiça interna que moldou o ser que se tornara até então.
Três pancadas na porta conseguiram fazer com que ele ouvisse de dentro do quarto. Havia trocado a fechadura alguns dias antes, portanto ninguém conseguiria entrar ali. Ouviu, de fato, a voz de Helena, do porteiro e um tilintar de chaves. Sentiu um certo alívio, pois não conseguiriam entrar. Além da fechadura, por dentro havia duas novas trancas. Não soube conjeturar porque tal sintoma de superproteção e segurança havia se lhe acometido durante algum tempo, mas percebeu que fizera aquilo com algum propósito.
Num átimo, Arnaldo conseguiu se levantar. Acercou-se da porta – havia um rebuliço do lado de fora. Olhou pelo olho mágico – estavam Helena, o porteiro, as chaves e alguns vizinhos curiosos.
Não disse nada, pois não queria mais o contato de ninguém. Andou até a cozinha e de dentro de uma gaveta tirou uma faca. Ali mesmo fez duas incisões profundas no próprio pulso, a ver seu sangue jorrar por toda a cozinha.
Ao sentir perder as forças, dirigiu-se novamente ao quarto – e consigo um rastro de sangue. Deitou-se novamente em posição de decúbito dorsal, entrecruzou os dedos e vislumbrou o teto pela última vez.
Com uma expressão lívida, Arnaldo findou sua existência.
Somente horas depois, Helena, o porteiro e os vizinhos conseguiram entrar no apartamento – após o arrombamento da porta. Arnaldo já estava pálido e gélido.
Com um sorriso franco, Helena apreciou o que viu: o ex-marido antecipara os seus planos daquela tarde.