O RELATÓRIO

 

Eu simplesmente não acreditei quando comecei a ler o que tinha em mãos. Tio Joca era brincalhão, mesmo tendo um ar misterioso às vezes, sempre gostava de olhar as estrelas e nos ensinar os nomes das constelações e falava sobre as origens dos mitos antigos, encenava monstros, demônios e ets para nos divertir.

 

Ele sempre foi um cara muito discreto, mas adorava tirar brincadeiras com a gente. Dizem que antes de atuar como programador em uma multinacional, ele trabalhou na ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) e viajou por todo o Brasil a trabalho. Mas ele nunca comentou nada sobre o seu emprego ou o que fazia em suas viagens, nem mesmo com a Tia Judite. Sempre que alguém perguntava algo sobre o assunto ele falava em tom de brincadeira: “Seu eu te disser, vou ter que te fazer esquecer ou fazer com que você seja esquecido!” e dava uma risada estridente e maligna, como se fosse um vilão de um filme.

 

Eu estava ajudando a Tia Judite a encontrar umas anotações velhas de receitas que ela queria muito usar para o aniversário do Tio Joca, mas ela nunca foi lá muito organizada. Assim, revirando as gavetas da cozinha, eu peguei aquele documento amarelado, coberto de poeira com a capa estampada em letras garrafais DOCUMENTO ULTRASECRETO e comecei a ler:

 

* * *

 

RELATÓRIO DE ATIVIDADES - DILIGÊNCIA EXTERNA

 

A presente unidade foi acionada duplamente no interregno de dois dias de sobreaviso. No primeiro momento, na madrugada de ontem para hoje, cidadãos acionaram a equipe devido a atividades suspeitas que ocorriam nas proximidades da área de segurança primária. Fui in loco averiguar as circunstâncias e realizar a varredura inicial de perímetro. A hipótese inicial seria se o evento teria sido originário por atividade humana de cunho potencialmente ilegal ou de entidade biológica não humana. Devido a área se encontrar no limite entre zona urbana e rural, não foi possível definir com exatidão, embora fosse visível que os depoentes tivessem receio que fosse, de fato, eventos relacionados à atividade biológica não humana como barulhos e sons de origens não usuais. Posteriormente, já no período do almoço da presente data, a equipe foi acionada após uma violação clara da área de segurança primária. Em diligência contínua, durante constatação organoléptica, foram encontrados vestígios que apontavam resquícios metabólicos condizentes a de entidade biológica não humana.

 

Considerando os aprendizados históricos dos eventos em Minas Gerais e as ocorrências semelhantes que transcorreram nos últimos dois meses. Já estávamos cientes da elevada probabilidade de ser, novamente, entidade biológica não humana. Contudo, ao se analisar os resquícios metabólicos, tal espécime seria de risco à saúde humana.

 

A equipe procedeu ao isolamento da área afetada afastando eventuais curiosos e delimitando uma margem de isolamento para eventual confronto. Inadvertidamente, não sabíamos que estávamos no raio de atuação da entidade. O contato aconteceu e a presente unidade respondeu a agressão. Devido à iminência e agilidade dos atos, no calor do combate, os dispositivos padrões para lidar com tal ameaça não estavam ao alcance da equipe, sendo utilizados meios de fortuna para atingir o objetivo, resultando na neutralização da entidade biológica não humana.

 

Os meios de fortuna tiveram sua integridade estrutural violadas, sendo necessário fazer a indenização aos proprietários. O corpo da entidade biológica não humana foi isolado e dada a devida destinação. Foi solicitada a equipe de desmobilização e limpeza para lidar com eventuais traços que possam apresentar algum risco biológico aos indivíduos circundantes. Segue em anexo as fotos com as devidas legendas.

 

É o relatório.

 

 

* * *

 

Um turbilhão de pensamentos tomou a minha mente. O que seria aquela “entidade biológica não humana”? Seria um nome técnico para alienígena? Área de segurança primária seria algum lugar de alguma base secreta? O espécime seria de risco à saúde humana, isso significaria que poderia transmitir doenças? Transformar pessoas em zumbis, talvez?

 

Reli o documento novamente e topei com outro trecho que me chamou a atenção: “Considerando os aprendizados históricos dos eventos em Minas Gerais”. Arregalei os olhos e pensei: Será que Tio Joca trabalhou na captura do et de varginha? Lembro que pelo que li era mais de um alienígena, que um policial chegou a pegar em uma das criaturas com as mãos nuas e depois veio a óbito por motivos desconhecidos, uma estranha infecção generalizada assim muitos dos animais que estavam no zoológico de varginha, que foi um dos locais de avistamento do suposto extraterrestre.

 

Estava boquiaberto com tudo aquilo, de olhos arregalados, lia e relia o documento tentando entender. Mas faltava a última folha, cadê a bendita foto!? O velho grampo de metal enferrujado já havia se deteriorado, deixando apenas um fragmento de papel fotográfico pendurado nele.

 

Tia Judite percebeu a minha demora, estranhou a minha cara de espanto e disse:

 

 Que houve, menino? Parece que viu coisa do outro mundo!

 

Apenas entreguei o documento para ela, visivelmente pálido.

 

Ela pegou o papel bruscamente, pôs os óculos de leitura, afastou um pouco a vista e passou os olhos vária vezes seguidas no documento. Suas sobrancelhas franzidas e a sua expressão facial transparecia um misto de estranheza com a de alguém que estivesse tentando se lembrar de algo.

 

Ela olhou para mim e perguntou, séria:

 

 Onde você encontrou isso?

 

Apenas apontei para a última gaveta da cozinha, que vivia emperrada. Ela pediu licença. Ela estava séria, compenetrada, e começou a vasculha-la freneticamente. Após alguns segundos, ela sacou uma foto embaçada e me mostrou, dizendo:

 

 Era isso que você estava procurando? Eu também estava procurando por isso!

 

Nesse mesmo momento, Tio Joca entrou na cozinha e viu toda aquela bagunça, eu segurando o documento e a Tia Judite segurando a foto. Com um sorriso sarcástico, perguntou:

 

 Encontraram o que queriam? E agora? – Soltou novamente a risada maligna.

 

Tia Judite o fuzilava com o olhar, e comentou:

 

 Viu o que você fez com o menino? Explica para ele agora! Pegou a foto e buscou um pano para limpá-la.

 

Uma mistura de medo e curiosidade tomava o meu coração. Poderia perguntar o que era realmente aquilo para Tio Joca? Embora ele já estive aposentado, depois de ler aquilo fiquei com medo de perguntar. Quem ele realmente era?

 

Ele me estendeu a mão, num pedido silencioso para que eu lhe entregasse o documento. Titubeei, o que ele iria fazer? Rasga-lo e fingir que nunca existiu? Lembrei-me da frase: “Seu eu te disser, vou ter que te fazer esquecer ou fazer com que você seja esquecido!” e engoli a seco.

 

Entreguei para ele com as mãos trêmulas. Ele pegou uma caneta e rabiscou atrás do papel, rindo.

 

 Esse é apenas um jeito estupidamente formal de dizer que na noite anterior eu e Judite ouvimos um rato andando pelo telhado, mas que achávamos ser um ladrão. No dia seguinte, ela encontrou as fezes e os pelos do rato no canto do banheiro e me chamou aos berros. Não deu tempo de pegar nada para matar o rato, usei o rodo como arma, mas o rodo se quebrou em três partes. Só consegui abater o bicho no lavabo. Só isso.

 

— Releia o tal relatório fazendo essas substituições: área de segurança primária = casa, entidade biológica não humana = rato; resquícios metabólicos = fezes, urina e pelos; “Considerando os aprendizados históricos dos eventos em Minas Gerais” = tivemos o mesmo problema quando morávamos em Minas; meios de fortuna = rodo; integridade estrutural violadas = quebrou; indenização aos proprietários = tive que comprar outro; "Foi solicitada a equipe de desmobilização e limpeza para lidar com eventuais traços que possam apresentar algum risco biológico aos indivíduos circundantes" = tive que chamar a moça que trabalha aqui para limpar a bagunça que ficou.

 

Fiquei olhando para ele sem acreditar. Algo tão simples escrito de forma tão complexa, para que?!

 

Ele deu outra risada escrachada e falou:

 

 Você deveria ser a sua cara!

 

Tia Judite chegou com a foto:

 

 

No verso da foto, estava a receita que ela tanto procurava: torta charlote de doce de leite.

 

Manassés Abreu
Enviado por Manassés Abreu em 01/03/2024
Reeditado em 01/03/2024
Código do texto: T8010399
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.