Os Coleman

CAPÍTULO 1

Acordo com a mão pálida de Susie - a fiel e antiga governanta da família Coleman - sobre meu rosto, seus dedos finos e compridos acariciando de leve minha bochecha rosada. Sinto uma gota d’água cair embaixo dos meus olhos e escorregar suavemente até minha boca, deixando um gosto vagamente salgado. Uma lágrima, pensei, e lentamente comecei a realmente processar a imagem que estava vendo. Susie, que possuía um jeito vaidoso, regrado e costumeiro de se vestir, usava um roupão de seda rosada, pantufas, e um coque alto com incontáveis fios de cabelo grisalho para fora. Seu rosto estava manchado de maquiagem do dia anterior; olheiras profundas e escuras entregavam a quantidade de dias que havia passado sem dormir.

- Julie, querida, vá se aprontar, estamos em cima da hora. Disse ela em soluços, porém, ao mesmo tempo, com a voz dócil e gentil de sempre. Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, eu a puxei para um abraço, sem me importar com as lágrimas que molhavam meu pijama de frio. Depois de longos dois minutos, Susie se soltou dos meus braços, e, sem falar uma palavra, abriu a grande porta marrom que separava meu quarto do corredor principal e foi embora.

Encarei a parede branca e vazia, imaginando o que aconteceria se eu faltasse ao funeral de meu irmão mais velho, e acabei chegando à conclusão que o melhor seria não pensar nisso. Fui até o longo closet que abrigava uma quantidade imensa de sapatos, vestidos e bolsas de grife, e acabei puxando um vestido preto, longo e discreto, com o intuito de me disfarçar dentre a multidão que provavelmente eu teria que enfrentar em apenas alguns minutos.

CAPÍTULO 2

Depois de driblarmos duas dúzias de paparazzis que queriam saber do destino da famigerada Herança dos Coleman após a morte do filho primogênito e legítimo herdeiro da fortuna bilionária, eu, meu pai, Daniel e Susie, descemos da BMW a prova de balas com uma equipe de seis seguranças armados e um helicóptero sobrevoando a área nos cercando até a entrada do cemitério onde Adam seria velado. Minha mãe estava aos prantos; seu vestido bordado estava encharcado de lágrimas misturadas com a maquiagem que Susie havia insistido que ela fizesse. O corpo estava exposto em um caixão feito do que eu apostava todo o meu dinheiro ser a madeira mais cara que a loja poderia oferecer. Me ajoelhei diante do caixão e chorei. Nunca fui de chorar, muito menos em público, muito menos na frente dos meus pais. Mas naquele dia, não consegui me conter. Adam estava morto. E eu não podia fazer nada.

CAPÍTULO 3

Após a cerimônia, jornalistas e fotógrafos aguardavam uma entrevista de meu pai para a rede local, e, mesmo com todo o sofrimento que eu sabia que ele no fundo estava sentindo, o grande Edward Coleman não recusaria a uma chance de fazer uma comovente aparição.

- Nossa família está devastada. Disse ele introduzindo o que eu esperava ser um enorme e completo monólogo.

- Há dias que eu e minha esposa não temos uma boa noite de sono, pois passamos as madrugadas em claro investigando a causa e o culpado pelo acidente de carro que matou meu querido filho e legítimo herdeiro, Adam.

Ouvir aquelas palavras fizeram meu estômago revirar. Acidente de carro. Entre os três irmãos Coleman, Adam era o mais cuidadoso; seguia as ordens dadas pelos pais com rigor, como se sua vida inteira dependesse da aprovação dos donos de uma das maiores quantias financeiras já possuída por um ser humano. Era improvável que Adam realmente tivesse morrido daquela maneira, por conta, - segundo a polícia - de um motorista bêbado.

Nem notei o tempo passar; enquanto me afundava em deliciosas memórias de infância com meu falecido irmão, a entrevista já havia sido encerrada, e meu pai enxugava as lágrimas - que eu acreditava terem sido derramadas propositalmente - e andava em direção a BMW em que Susie e minha mãe já estavam instaladas. Eu o segui, e quando finalmente nos sentamos no macio banco de couro do carro, eu me dei conta de que alguém estava faltando.

-Daniel. Declarei em voz alta. Onde ele está?

-Seu irmão não perderia a oportunidade de atrapalhar esta família. Respondeu minha mãe, bufando.

-Eu vou atrás dele. Disse Susie, fazendo menção de abrir a porta do carro.

-Não! Já está na hora dessas crianças aprenderem a se virarem sozinhas, Susie, Julie irá procurá-lo.

Seguindo as ordens de minha mãe, desci do carro e adentrei novamente o cemitério, dois seguranças me acompanhando e protegendo da metralhadora de perguntas e cliques que dos jornalistas ainda posicionados na porta do cemitério, esperando a BMW se mover, faziam. Passei pelo labirinto de túmulos bem cuidados e flores vermelhas até chegar onde parecia ser um caminho sem saída, exceto por uma porta de carvalho com uma maçaneta já gasta pelo tempo. Girei a maçaneta e, quando a porta destrancou, fazendo um grunhido alto ecoar pelo cemitério, quase congelei com o que vi. Um homem ruivo, com uma pequena constelação de sardas no nariz fino e pontudo; o cabelo levemente ondulado encharcado de sangue. Ele seria lindo se não estivesse caído morto no chão.

CAPÍTULO 4

Sinceramente, não tive medo. Pena? Sim. Angústia? Sim. Mas acho que anos assistindo filmes de terror me deixaram imune a esse tipo de imagem. Me aproximei do corpo ainda espantada com a ironia de morrer justo no quartinho de limpeza de um cemitério, e chequei seus batimentos cardíacos. - sim, estava morto - não sabia como agir. Pensei em ligar para a polícia, mas isso agitaria demais os paparazzi. Então voltei para o carro (e para o desgosto de minha mãe) sem Daniel. Contei o que eu havia visto, com o coração martelando no peito, e, enquanto minha boca se movimentava formando frases quase incompreensíveis de tão rápidas, minhas mãos não paravam de gesticular - costume de quando meu corpo não conseguia conter minha ansiedade. - Susie, em um gesto carinhoso de proteção, agarrou minhas mãos com força e me mandou respirar fundo.

Assim que tive forças para formular palavras audíveis, cinco dos meus seguranças particulares me acompanharam até o quartinho onde o recém visto cadáver estaria. Os seguranças abriram a porta com o rifle na mão e tudo o que encontraram foi uma embalagem de produto de limpeza semiaberta jogada no chão.

Droga, murmurei.

Meu primeiro reflexo foi agachar e alcançar o alvejante, porém no momento em que meus dedos alcançaram a embalagem úmida, o chefe da minha equipe de proteção me repreendeu, dando um tapinha de leve no meu ombro.

- Digitais. Disse ele.

-Precisamos do acesso às câmeras de segurança. meu pai ordenou discretamente quando apareceu por trás do pequeno aglomerado de pessoas em volta do quartinho.

-Sei que minha filha não mentiria sobre algo assim.

Dei um sorriso amarelo, feliz com o modesto elogio, no entanto, perturbada demais para agradecer.

CAPÍTULO 5

Quando o coveiro nos levou a sala de acesso às câmeras de segurança, me senti em um filme de terror. O lugar era pequeno e escuro, com computadores e telões cobrindo boa parte da parede branca descascada. Dentro da salinha, eu, meus pais, Susie e alguns seguranças, nos esprememos para conseguir ter uma boa visão sobre os movimentos do homem desconhecido.

-Geralmente não precisamos utilizar muito essa sala. Explicou o coveiro, parecendo um tanto acanhado.

Ele se sentou em uma cadeira de rodinhas e mexeu em alguns botões do monitor, voltando os arquivos da câmera para alguns minutos atrás. Meu coração palpitou quando um vulto encapuzado apareceu no vídeo, dentro do quartinho de limpeza, retirando o cadáver do chão e limpando seus rastros. A única parte do indivíduo que não estava coberta era o pescoço, onde havia uma pequena mancha de nascença. Quando o sujeito encapuzado terminava de limpar o resto de sangue, deixou o alvejante cair de sua mão, possivelmente assustado com o barulho dos passos que seguiam. Ele se escondeu atrás da porta, e quando nós já tínhamos saído de perto da cena do crime, ele tampou a câmera de segurança com o que parecia ser tinta spray.

No momento em que o vídeo acabou, meus pais olhavam perplexos um para o outro, preocupados com a possibilidade de isso ser algum tipo de ameaça contra seu império.

CAPÍTULO 6

Após ligarem para a polícia, os seguranças que não foram checar o quartinho nos acompanharam de volta a entrada do cemitério, onde Daniel estava apoiado no capô do carro, com uma leve expressão de surpresa.

-O que rolou aqui? Perguntou ele com um sorrisinho no rosto. Aquele garoto adorava confusões.

-Nada que fará uma grande diferença na sua vida. Respondi, observando três de meus seguranças tentarem espantar os paparazzi do meio de nosso caminho.

Depois do sucesso na missão do trio de homens barbudos e musculosos, a família agora incompleta adentrou o carro e deu o comando para Robert, o motorista, nos levar de volta para casa.

Sentei-me entre Susie e Daniel no banco traseiro, o ar pesado do carro aparente devido às circunstâncias recentes. Lentamente, olhei para o outro lado, onde meu irmão mais novo estava sentado, a fim de obter um ponto de vista diferente da paisagem arborizada que nos cercava.

Não sei se perdi o fôlego, se gritei, se fiquei pálida ou com cara de espanto de repente, porque, quando me dei conta, eu era o foco de vários olhares preocupados. Menos do de Daniel.

-Está tudo bem, querida? Perguntou minha mãe, com uma voz doce, capaz de aquietar qualquer alma perdida. Menos a minha. Menos naquele momento. Nada, absolutamente nenhum ser vivo poderia ser um conforto para mim diante daquela imagem. Diante da mancha de nascença com um leve formato de coração no pescoço de Daniel. A mesma do homem encapuzado.

CAPÍTULO 7

Meu cérebro, diante daqueles segundos aterrorizantes, incapacitou-se de formular uma palavra sequer. Somente na terceira tentativa de minha mãe de chamar minha atenção, eu respondi que sim, estava tudo bem. E isso foi o suficiente para seus olhos se voltarem para a tela do seu celular de última geração.

Talvez eu estivesse delirando. Talvez os tantos livros de ficção que lia estivessem mexendo com o meu inconsciente. Ou talvez fosse só coincidência. Ou não. Tudo era demais para mim. Não podia ser isso. Daniel não podia ser um assassino, pois apesar da minha relação com meu irmão ser baseada somente em alguns “bom dia” ou coisas do tipo, “como vai a escola?” e algumas alfinetadas durante o café da manhã, nós somos fruto da mesma relação, fomos criados no mesmo teto e os mesmos valores foram ensinados a nós dois.

Não sabia o que pensar, então, quando o carro estacionou na garagem recheada de lamborghinis, eu corri para o escritório de Daniel, que mal chegara e já havia se enfiado no quarto escuro, provavelmente para lamentar a morte do irmão predileto. Quando toquei na maçaneta, percebi o inevitável: A porta estava trancada. Óbvio. Peguei um grampo de cabelo no bolso e fiz o meu melhor para incorporar uma espécie de James Bond feminino.

-Ora, ora, ora, irmãzinha, não sabia que tinha virado arrombadora de portas. Congelei quando ouvi a voz logo atrás de mim. Naquele momento tenho quase certeza de que perdi o controle do meu corpo, porque quando percebi já estava falando absurdos: Seu estúpido! Como você pôde? Matar assim, sem mais nem menos, uma pessoa! Com vida, nome, sobrenome, paixões, medos… Uma pessoa jovem! Que ainda tinha uma vida inteira para aproveitar. Daniel deu um passo à frente, e segundos depois, senti uma leve ardência no pescoço. Meus olhos se fecharam e os ruídos ao meu redor se tornaram inaudíveis.

CAPÍTULO 8

Quando acordei, minha cabeça latejava, meu corpo doía e meus olhos pesavam. Tudo estava escuro ao meu redor, exceto por uma faixa de luz vinda do teto que iluminava uma silhueta alta. Aos poucos, meu cérebro começava a processar as últimas informações captadas.

-Pelo visto você não resistiu a uma generosa dose de calmante, não é mesmo irmãzinha? A voz de Daniel ecoava pelo galpão malcheiroso. Tentei raciocinar como eu chegara até ali. Nenhuma resposta plausível me veio à mente. A única possibilidade era uma espécie de sequestro. Chequei todas as aberturas de meu vestido preto em busca de algo que me tirasse daquela situação. Quando Daniel percebeu que minha procura foi em vão, ele magicamente mostrou meu aparelho celular entre seus dedos ressecados. Quando recuperei totalmente minha visão, percebi algo em sua mão direita. Uma arma.

-Assustada? Daniel provocou. Não respondi.

-Bom, deve estar se perguntando como e porque você foi parar aqui, não é mesmo? Ele nem esperou minha resposta para continuar a falar.

-Acho que você merece uma explicação antes de morrer acidentalmente em um acidente de carro, assim como Simon. Daniel sorriu maliciosamente.

-Não… Não pode ser… - As palavras entalaram em minha garganta. Foi ele. Daniel havia matado o próprio irmão. E pôs a culpa em um estúpido acidente de carro.

-Não me leve a mal, Julie. Eu realmente gostava de Simon. Mas não o suficiente para abrir mão de uma herança de 80 bilhões de dólares por ele. Se você quer saber, cometer um assassinato foi bem simples. Aqueles idiotas da polícia são subornados com qualquer milhãozinho que lhes for oferecido. Bastou quebrar o freio da lamborghini de meu querido irmão e botar a culpa na bebida. Ninguém desconfiou.

-Você é nojento! Exclamei, me esforçando para segurar as lágrimas que ameaçavam cair.

-Eu não diria isso na sua situação, Daniel respondeu, levantando a arma na direção de minha testa.

-Porque você matou aquele rapaz no quartinho? Questionei, ciente de que não havia como minha condição piorar.

-Bom… Ele era, digamos… Um profissional fiel ao seu trabalho. Um dia ele estava na delegacia em que trabalhava e descobriu a pequena quantia que os investigadores receberam para ficarem de bico fechado e resolveu tirar satisfações comigo. Não tinha outro jeito de me safar dessa. Eu até poderia dizer que estou arrependido, mas seria uma tremenda mentira.

-Acho que dessa vez você realmente não vai ter como se safar. Dei um sorrisinho quando um batalhão da polícia veio por trás de Daniel, o imobilizando.

-O que? Como assim?! Meu irmão já algemado gritava.

-Bom, acho que você me subestimou. Quando cheguei à porta de seu quarto, eu já havia ligado os pontos e descoberto que era você quem estava por trás de toda essa história. Bastou colocar um pequeno gravador por dentro de minha roupa, conectá-lo ao sistema de segurança da casa, e pronto! Meu orgulho ofuscava a tristeza de ver meu único irmão vivo indo para a cadeia.

-Você vai pagar por isso! Daniel berrava enquanto tentava sem sucesso se desvencilhar dos policiais robustos. Mas nem seu olhar desolado era capaz de acabar com a maravilhosa sensação de vitória que percorria minhas veias.

Maria Flor Alves Frey
Enviado por Natália Xavier de Oliveira em 22/02/2024
Código do texto: T8004693
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