Entre-a(co)bertas
A janela aberta permitia entrar uma insistente corrente de ar frio, típica daquela época do ano. Mas ainda assim permanecia aberta. Não porque o residente não sentia frio — afinal, este tremia — mas apenas porque a dormência que o embalava era como um resto de morfina na guerra e o frio como gelo na ferida, impedido que se inche, afastando a dor com um excesso de sensações sobre sua pele. Só que não havia mais para onde fugir, não se ousasse tentar ir para longe de si mesmo.
É tão fácil lutar contra os males externos — pareceu naquele momento. Existem opções bem estabelecidas e intuitivas: fugir ou lutar, morrer ou sobreviver. O mesmo instinto que tornava aquela sensação um mal externo que sua mente dava forma e logo não compreendia como não havia nada lá, lutando insistentemente contra si mesma num processo de auto-sabotagem sem válvula de escape.
Só o medo.
Medo, irracional e único. A sensação primordial que nos torna irracionais tão facilmente. Um piscar de olhos no escuro. Nus diante do desconhecido que nos cerca, sem fogo, sem mitos e sem cobertas. Só o terror puro que te faz correr quando as luzes se apagam. Ele está se aproximando.
Sua mente sussurra, ele sussurra.
Ele está atrás; está perto; em você; na sua mente.
"Não tem nada lá..."
Ele repete pra si mesmo. Ela repete pra você.
A porta range com o vento, quebrando o silêncio que sempre esteve lá, compondo o som ambiente e ecoando em ouvidos agora atentos — antes preenchidos de pensamentos claros e coesos, mas que perdem o sentido no instante que se silenciam — em busca de um sinal de vida pra se agarrar. Gritos, bem que poderiam ser gritos. Sejam eles de felicidade, desespero, espanto. A vida grita.
Afinal, ao contrário do que se pensa, os gritos contam tanto da morte quanto a noite do dia: nada. Ela não fala, não conta, não muda. É uma canção eterna, imutável e serena. Uma nota grave cortando a noite.
A calma eterna que traz o terror efêmero, mas absoluto. Quem teme a morte se prende aos gritos e vê no silêncio um temor instintivo. Que tem a vida se atém, corre do silêncio.
Ele está se aproximando, ele sente agora, um agito. Dois. Três, passos se igualando às batidas do seu coração mais altos e mais rápidos.
Quatro.
Cinco.
Eles param, seu coração para.
A porta está trancada, a janela aberta. O vento que entra é cortante e sopra forte. Em contraste à falta de som do lado de fora, seus gritos dentro da casa parecem ressoar por mais tempo enquanto se cobre por inteiro: preenchido com um calor e som do seu coração que martelava em seus ouvidos ao mesmo tempo que, aflito, não conseguiam se enfileirar as palavras para formar frases completas. O resultado, murmúrios desconexos se cobrindo e recobrindo.
O vento bate.
Seis.
Sete, respirações profundas...
Ele quer olhar pra fora mas não tem coragem, imóvel como um cadáver quente, a exceção de seus pés que ficaram pra fora. Gelados.
Uma falha, — oito — ele puxa a coberta pra baixo sem se revelar um centímetro de sua face, lentamente ele avança, e não mais respira, não mas pensa, não grita. Só tem o vento...
Silêncio.
Ele lentamente cobre um pé e usa este enganchado no tecido para cobrir o outro com facilidade, respirando aliviado, puxa o ar com força.
Nove.
O frio só está na ponta do seu pé esquerdo, subindo lentamente como vermes que borbulham sobre sua pele necrosando ao tom do escuro que o cerca. Ele pode escutar suas patas e seus dentes, aflitos e roendo.
Uma janela se bate,
Uma porta se abre.
Ele não está lá, ele não está lá, não está...
— Não — a voz estava nos seus ouvidos — eu estou aqui.
Dez...