Entre o Sagrado e o Profano
Jair não se sentia parte da comunidade, mesmo morando há cinco anos no vilarejo. A população, formada em sua maioria por idosos, não era tão simpática com ele. As pessoas pareciam estar sempre cochichando pelos cantos e nunca o incluíam nas conversas. Seu alento era Isabel, sua esposa. Casaram-se há três anos e tinham um filho de um ano. Isabel cresceu órfã, seus pais morreram naquele vilarejo e a população terminou de criar a menina que tinha apenas cinco anos. Isabel ajudava o padre em todas as missas e visitava os acamados.
Domingo à tarde, Jair não se sentia bem, estava enjoado e com dor de cabeça.
— Deve ter comido algo que lhe fez mal.
— Talvez seja, ou uma gripe chegando. Se você não se importar, vou ficar em casa hoje.
Isabel foi à missa sozinha. Charles dormia enquanto o pai tomava um remédio.
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— Querida Isabel, como você bem sabe, nossa comunidade está sendo atacada por forças malignas. Seu Belchior foi tomado por um espírito essa madrugada e matou sua esposa à dentadas. Lívio está acamado com medo de tudo, vive trancado, nu e alucinando. Dona Eva só come carne crua e não fala com ninguém. Por enquanto estamos conseguindo manter em segredo, mas sabemos que isso não vai parar até levar nosso último morador. Você, como filha especial de nossa comunidade, sabe o que precisa fazer.
Estavam em um cômodo subterrâneo, abaixo da igreja, era quase meia-noite e a população vestia roupa preta e capuz vermelho. Isabel estava no altar, ao lado do ancião Joaquim, o padre.
Isabel chorava em silêncio, relembrando das sombras que percorriam sua casa, dos monstros que tiraram a vida dos seus pais e principalmente de Jair, tão carinhoso, a tratava como uma pessoa e não um amuleto.
— Senhor, eu gostaria que houvesse um outro jeito. Eu mesma me coloco em sacrifício pela comunidade.
— Você sabe que isso é impossível. Precisamos de um ser limpo, puro, imaculado.
Nessa hora, a anciã Maria entrou carregando Charles, que chorava em desespero.
— Se aproxime, irmã Maria. Traga nossa ovelha.
O padre perguntou como fora a captura do bebê e ela confirmou que Jair ficara dormindo profundamente.
Joaquim pegou a criança e a colocou deitada sobre uma plataforma de pedra.
— Oh, querido Altíssimo, estamos todos aqui reunidos para celebrar esse grandioso dia em Vossa presença. Pedimos perdão por todos os pecados da nossa comunidade. Mas, como queremos voltar a ser uma comunidade abençoada e livre de todos os males, trouxemos uma oferenda para o Senhor, um ser livre de pecados que poderá nos livrar de todo o mal.
Os integrantes da comunidade começaram a entonar orações em diversas línguas. Isabel beijou o rosto do filho, pedindo perdão. O menino estava vermelho de tanto chorar.
O padre afastou a mãe e pegou um cálice de ouro, ergueu-o, despejou um pouco do conteúdo na cabeça da criança. O líquido vermelho o assustou, parou de chorar e olhou assustado ao redor. Joaquim aproximou o cálice da boca do menino, o obrigando a ingerir o líquido.
— Recebe, oh Senhor, em Tuas mãos este sacrifício!
Mas nada aconteceu ao garoto.
Joaquim deixou o cálice de lado e pegou uma adaga. Ele não queria fazer isso, mas o líquido não fora o suficiente.
— Para o nosso bem e de toda Santa Igreja!
O padre ergueu as mãos e fechou os olhos. Desceu a adaga no peito de Charles.
A criança gritou.
E continuou gritando.
Até que a porta foi arrebentada e Jair entrou.
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Oito meses antes...
Jair voltou da escola mais cedo, as aulas foram interrompidas por falta de água. Seus alunos ficaram felizes e ele também.
Abriu uma garrafa de cerveja, aproveitando que a esposa ainda não estava em casa e foi para seu quarto. Deitou na cama e percebeu algo debaixo do travesseiro da esposa. Era um livro grosso e de capa preta. A medida que Jair o folheava, ia ficando assustado. Muitas orações estranhas, anotações nos cantos com a letra de Isabel, sobre possessões, demônios, maldições, espíritos malignos, castigos. Ao ler os nomes dos integrantes da comunidade, percebeu porque não fazia parte deles. Quando escutou o motor do carro de Isabel, fechou e guardou onde estava. Não falou nada, mas passou a observar o comportamento estranho da esposa quando estava ao lado do padre e de outros integrantes da comunidade.
Foi então que ele tomou uma decisão. Fez algo que sua querida avó o ensinou quando era jovem. Uma noite de quinta-feira, pegou seu filho à meia-noite e, colocando na sua mãozinha direita uma chave de metal antiga, proferiu a oração:
— Chave de São Pedro, feche meu corpo de toda inveja, de toda iniquidade, de toda maldade. Chave de São Pedro, feche meu corpo de todo punhal, de todo medo, de todo mal. Chave de São Pedro, feche meu corpo para todos os perigos, para os falsos amigos e para os inimigos. Chave de São Pedro, feche meu corpo contra pragas, feitiços, malefícios, catimbó e azar.
Jair fez a mesma coisa ao meio-dia de sexta e à meia-noite.
— Pronto, meu filho. Agora você está a salvo do mal, seja ele qual for.
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Quando Jair viu seu filho naquele altar, ele se desesperou e correu até lá, empurrando o ancião Joaquim. Homens tentaram segurá-lo, mas ele estava com uma faca e ameaçava a todos. Como a maioria das pessoas ali eram idosos, ficaram com medo.
— Soltem meu filho!
— Faça o que tem que ser feito, Isabel! — Gritou o padre, enquanto tentava se levantar.
Isabel pegou o punhal e o ergueu. Olhava para o filho ferido e tremia. Lágrimas escorriam pelo seu rosto, mas ela sabia que precisava fazer.
— Isabel, não! — Gritou Jair.
A mulher caiu de joelhos e cravou o punhal em seu próprio peito. Jair pegou o filho e correu dali, ignorando os gritos de Joaquim.
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Três meses se passaram e Jair mudou-se com Charles para uma cidade maior. Charles ficou com uma cicatriz na omoplata esquerda e os médicos disseram ser um milagre que ele tenha sobrevivido ao ataque da mãe depressiva. Jair ficou sabendo que a comunidade na qual ele viveu fora tomada por uma onda de insanidade, onde todos os moradores mais velhos tiveram demência. Jair nunca mais tirou do pescoço uma correntinha de ouro e uma chave como pingente.