O Livro Carcomido
Ela fitou com fúria o livro de Górki que lhe havia emprestado havia quase um mês. Sempre cuidava seus livros com esmero, impecavelmente. Aquela era a primeira vez que ele lhe trazia um livro assim. Duvidava ela de que ele lera os que emprestara anteriormente, pois sempre comentava-os com certa superficialidade. Marina sempre inquiria-se se Sérgio simplesmente os tomava emprestado para impressioná-la de alguma forma.
- Muito bom este Infância – disse ele, a colocar o livro sobre a mesa de Marina. – Até Roberta interessou-se em lê-lo – completou, com um sorriso flácido.
O escritório estava cheio naquela sexta-feira. Todos estavam ocupados com os olhares enfiados nas suas telas de computador. Iracunda, Marina fitou novamente o livro: as páginas – que eram alvas – estavam amareladas. Havia uma dobra na sobre capa, além de orelhas em algumas páginas cujos capítulos começavam.
Sua ira não assomou-se-lhe pelo valor que pagara pelo livro – afinal, a um leitor contumaz, o valor de um livro não era importante, mas o quanto a história consegue tocá-lo. Além disso, percebeu algumas manchas de café em algumas páginas. Tentava distrair-se para não lembrar-se que um de seus amados russos sofrera um atentado tão parecido como o de Alexandre II. Massacrar um livro de tal forma, pensou ela consigo, é o mesmo que cometer um atentado terrorista. Ela tinha de tomar providências. Clicava o mouse do computador com tanta força, a não perceber que seus apertos eram movidos pela raiva pela qual estava passando. Resolveu ela levantar-se para arejar a mente. Dirigiu-se pelo corredor onde havia as demais mesas de seus colegas de trabalho, a fim de buscar um café frio preparado naquela manhã. Acercou-se da mesa de Sérgio, pensou dizer alguma coisa, mas não quis puxar assunto.
Encheu um copo de plástico com o papel frio e dirigiu-se à janela do andar. Vislumbrou os prédios, as árvores, a rua, os carros. Se Sérgio dali caísse, imaginou, cairia sobre o carro de Virginia – que era uma de seus desafetos no escritório. Preferia parar o carro na rua a pagar uma pequena taxa ao estacionamento vizinho – que tinha convênio com o escritório. Engoliu o café frio e refez seu caminho até sua mesa. As horas passavam. Queria sair depressa. Faltavam ainda três horas para o fim do expediente.
Quando faltavam trinta minutos para o encerramento da jornada laboral, Sérgio acercou-se novamente da mesa de Marina. Com esgar de raiva, ela fitou-o nos olhos, silente, a menear suavemente a cabeça como quem inquirisse a um inimigo por que motivos a encarava.
- Queria saber – começou ele, reticente, a perceber que Marina não estava muito bem para consigo –, você tem algum romance para emprestar para este final de semana? Algo curto. Acho que em três dias consigo devolver.
Haveria um feriado na segunda-feira. Marina sequer lembrava-se disso. Por um instante, não conseguiu ela responder. A si lhe era muito difícil negar às pessoas quaisquer coisas. Ora olhava para a tela do computador, a não conseguir ler direito, ora olhava para o rosto de Sérgio – que demonstrava certa indiferença às circunstâncias daquele livro que havia tomado de empréstimo.
- Tenho que ver – comentou ela, a pigarrear um pouco. Deu um suspiro profundo e demorado. Seus olhos circunvolviam os quatro cantos do escritório. – Tenho um romance de Lispector muito bom. Vá em casa amanhã e busque-o!
- Ótimo – exclamou ele. – Faz tempo que quero ler Lispector!
Ele virou as costas e volveu à sua mesa. Marina encarou-o pelas costas com um ar de vingança. Ela planejava alguma coisa. Mas o que seria?
Na manhã seguinte, ela limpou seu apartamento. A secar uma garrafa de vinho seco, ouvia uma música suave no rádio. Apenas a voz de Dorival Caymmi ressoava naquele ambiente. Súbito, ela dirigiu-se à sua estante de livros, puxou um e fitou-o com certo carinho. Seu Górki carcomido repousava sobre a mesa de centro ao lado da garrafa de vinho. Abriu o livro que tinha em mãos e pôs-se a cheirá-lo. Ainda parecia novo, embora o tivesse comprado havia quase três anos. Fechou-o e colocou-o longe da prateleira que estava – havia posto-o na primeira prateleira inferior da estante.
Não demorou muito para que Sérgio fosse anunciado pelo porteiro do prédio ao interfone.
- Diga-lhe para que suba – falou ela, com certa indiferença no tom de voz. Antônio, o porteiro, percebeu-lha vazia pelo tom que falara ao interfone, pois sempre que ela consigo falava, dava-lhe os bons dias, as boas tardes ou as boas noites antes de quaisquer coisas.
Ela dirigiu-se à porta do apartamento e deixou-a entreaberta. Acercou-se da mesa de centro, pegou a taça de vinho – que ainda estava cheia – e esvaziou-a com um gole.
Andou até a cozinha e começou a mexer na gaveta de talheres.
Sérgio, embora tivesse visto a porta entreaberta, tocou a campainha.
- Entre – ela gritou da cozinha. – O livro está na primeira prateleira da estante, na parte de baixo!
A erguer os sobrolhos e franzir o cenho, Sérgio adentrou o apartamento. O ambiente – que visitara uma vez e era luminoso e arejado – ora estava lúgubre e escuro. Tocava Carlos Galhardo no rádio.
- Vou pegar o livro – anunciou ele. Acercou-se da estante, agachou-se e pôs-se a procurar o livro de Clarice Lispector. A Maçã.
Ao encontrá-lo, tentou levantar-se, porém fora atingido na cabeça por uma panela. Sorrateira, Marina estava prostrada atrás de si pronta para o ataque. Ao tentar entender o que se passava, Sérgio tentou levantar-se, porém fora atacado com pancadas por mais três vezes. Desmaiou sobre o tapete novo da sala. Um sangue negro e grosso escorria-lhe da cabeça, além da enorme protuberância que se lhe formara na fronte.
Ao percebê-lo ainda respirar, Marina volveu à cozinha e muniu-se de uma faca. Perfurou-lhe por treze vezes o peito, a deixar que respingasse sangue sobre muitos dos seus livros.
Ela parecia insatisfeita. A fúria ainda a tomava. Levantou-se, buscou uma nova garrafa de vinho e contemplou o corpo do colega de trabalho sobre o seu tapete novo.
Ela sentou-se em sua poltrona, encheu a taça em que tomara o primeiro vinho do dia e, súbito, teve uma nova ideia. Com as mãos sujas de sangue, vasculhou os bolsos do falecido. Alcançou seu celular. As manchas de sangue sobre o rosto de Sérgio impediam o reconhecimento facial. Ela tomou um pano molhado e limpou-o. Logo, conseguiu desbloquear o celular.
Como se fosse Sérgio, mandou mensagens à Roberta a fim de que fosse à sua casa confraternizar com os colegas de escritório. Disse-lhe que estava pelo centro da cidade e a encontraria em casa de Marina.
Roberta – cuja única confraternização com Marina ocorrera na festa de final de ano da empresa no ano anterior – parecia ser uma pessoa inocente.
Naquela noite, o outro porteiro, César, havia anunciado a chegada de Roberta.
- Peça-lhe para que suba. Seu marido já está aqui – comentou.
Dessa vez, Marina não deixara a porta entreaberta. Aguardou Roberta, munida da panela com que alvejara Sérgio, atrás da porta.
Ao tocar da campainha, Marina – cujas manchas de sangue de Sérgio pelo seu corpo estavam secas – abriu a porta, a desferir-lhe de imediado uma pancada certeira no rosto. O nariz de Roberta quebrou na hora. Esta nem teve tempo de gritar ou emitir sinais de terror.
Marina arrastou-a ao lado do corpo gélido de Sérgio e, novamente, com mais treze facadas concluiu sua vingança.
Achou até graça nos livros sujos de sangue – a pensar dar-lhes certo glamour. Jogou o livro carcomido de Górki sobre o casal morto. Pegou A Maçã da mão de Sérgio, sentou-se em sua poltrona e começou a lê-lo, satisfeita.