O Ciclone
Foi a minha primeira semana nesta cidade do Mar da China. Encontrei-a ainda recuperando-se da última tempestade. Pablo levou-me para conhecer algumas ruas próximas a sua residência e, enquanto nos distraíamos com a apreciação das chácaras, das estâncias ajardinadas, das pequenas hortas cultivadas na frente das casas, ia escutando do meu amigo o porquê da sua decisão de mudar-se dali o quanto antes.
- Mas tem prosperado muito depois que veio para cá. Não creio que esteja disposto a abandonar o seu negócio das ostras – eu disse.
- É só o que me prende ainda aqui. Vou mostrar algo e, depois que vir, quero que me diga, com sinceridade, se vale a pena continuar morando nesse lugar.
Dirigiu para um campo aberto, envolto por cerca viva feita de palmas e toras presas a arame farpado, com brechas suficientes para uma boa visão do terreno. Um campo aberto e muito verde estendia-se diante de nossos olhos. Um laranjal formado por fileiras de árvores ainda novas, baixas, dominava parte da paisagem. Na parte lisa, ainda virgem, a charrua inclinava-se para uma valeta, certamente quebrada. Ao fundo, um resto de construção, mais precisamente, o esqueleto do que havia sido uma casa de madeira, própria de agricultor. Restava um pedaço do alicerce, uma parede intacta, um resto de porta e uma placa de vidro encravada no que poderia ter sido uma enorme janela ou a decoração da varanda.
- É um cenário assustador no meio de uma paisagem deslumbrante – eu disse, ainda não refeito do choque do que acabara de presenciar.
- Como estão os moradores? – perguntei em seguida.
- Não estão; esta é que é a triste realidade. Não é que tenham morrido.
Já sabiam do risco que corriam por morar em área tão passível deste tipo de acidente. Conseguiram se proteger a tempo abandonando o local. Deixaram tudo para trás e vão vender a propriedade; não sei qual louco que irá comprar isto aqui.
- É só construírem algo decente, que não seja carregado pelo tufão.
- Está brincando! – disse meu amigo, enquanto religava o motor do automóvel. – Não faz ideia do que esta tempestade é capaz. Já sei então o que vai dizer ao conhecer minha casa; acho que não mudaria estando no meu lugar.
- Onde vai encontrar um negócio de retorno tão rápido e certo? Segundo me disse, o último ciclone ocorreu há dois anos e já estava previsto. E não há previsão para outro nos próximos anos.
- Mesmo assim, não pretendo me arriscar.
Seguimos para a residência de Pablo; revi seu lindo casal de filhos adolescentes e fui apresentado a atual esposa. Tai Chi era uma linda mulher e conhecera Pablo no comércio de Hong Kong durante pesquisa feita por ele antes de iniciar sua ostreicultura. A paixão foi rápida como rápido foi o progresso de Pablo na nova atividade. Tai Chi já era do ramo, herdado de seus ancestrais. Tal como o amor, o incentivo foi grande e ele abraçou os dois. A casa era moderna, aconchegante, situada em uma área urbana da cidade, com pouco comércio e muito verde. Para a praia mais próxima era suficiente um passeio a pé ou de bicicleta. Durante os dias em que fui hóspede de Pablo empreendi algumas vezes esse percurso bucólico e inocente, contornando, com pedaladas descontraídas, o pequeno porto, cumprimentando os homens sentados na ponta do ancoradouro, fumando, negociando o pescado ou simplesmente sentindo o passar do tempo na contemplação do vaivém das ondas ou na chegada e na saída dos barcos para as suas aventuras.
Passei um dia inteiro com Pablo e sua mulher em alto mar, acompanhando e, quando possível, no auxílio à atividade deles. Era exaustivo para o casal descer e subir, em constantes e controlados mergulhos em busca das pérolas. Pablo ainda não era independente. Estava ligado a uma companhia que, nos últimos anos, alcançara prosperidade e prestigio. Pelo que constatei ao ver seu status atual de vida e seu entusiasmo, seria apenas uma questão de tempo, e pouco tempo, até que Pablo partisse para a independência, adquirindo o seu próprio barco e tendo ao seu lado seus próprios homens trabalhando para ele. O único senão neste objetivo de Pablo encontrava-se na sua indecisão em continuar na ilha. Seu temor maior eram os ciclones; seria este o único e temível obstáculo ao sonho do meu amigo. Talvez o apego ao sucesso que já havia adquirido e a habilidade da profissão, o demovessem da ideia de tudo abandonar. Mas para os filhos e para Tai Chi isto não importava tanto. Quanto a ela, a convivência com este medo tirara-lhe um pouco de sua felicidade por já ter, mais de uma vez, presenciado a tragédia de um ciclone.
Em um dos meus passeios pela praia testemunhei o que um vento realmente forte pode proporcionar de medo e insegurança. Deixei minha bicicleta junto a uma beirada de terreno calcetado e me dirigi para o mar. Minha intenção era relaxar um pouco sobre a areia e espraiar as ideias, pensar em minha terra distante; no que estaria fazendo naquele momento, caso lá estivesse. Comecei a perceber, por trás de mim, em toda a extensão da areia, um movimento de massa atmosférica, uma friagem repentina e incomum. Uma ventania, a princípio lenta, começou a se precipitar, levantando tufos de areia em pequenos movimentos rotatórios. Alguns pedacinhos de papel, uma ou outra folha ergueram-se e flanaram no ar. A ventania se intensificou; pessoas ao meu redor preparavam-se para deixar o local; e eu faria o mesmo.
Passei o ano seguinte enleado com as mudanças inovadoras ocorridas na empresa para a qual eu trabalhava no Rio de Janeiro. Foram transformações positivas, mas que me exigiram dedicação redobrada. Isto fez com que rareassem meus contatos de amizade, Pablo inclusive. Ainda tomado pela satisfação dos momentos que passara em Hong Kong, pela ótima companhia de Pablo e a amabilidade de sua família aceitei o convite para repetir com eles minhas próximas férias. Combinamos para que coincidisse o nosso afastamento do trabalho e, das duas semanas da minha permanência, a segunda seria de lazer total com ele e sua família. A situação de Pablo ia de vento em popa; havia comprado o barco que tanto sonhara e já dava suas primeiras investidas por conta própria, assessorado por um grande entendedor do negócio, proprietário de duas ostreiras com produção excelente e de ótima qualidade. Mas como eu não queria saber de trabalho e ele tampouco, saíamos muito; e para lugares onde eu nunca havia estado e que ele fazia questão de que eu conhecesse. Assim visitávamos ilhas exóticas, comíamos frutos do mar, praticávamos a pescaria; foi mesmo um período de muita diversão e de companhias alegres e prazerosas.
Dois dias antes do meu retorno ao Brasil vivenciei o que Pablo e sua família tanto temiam. O fenômeno começou com o mar se agitando inesperadamente enquanto comíamos no barco e fazíamos plano para o passeio daquela tarde. O rádio noticiava uma ameaça de ciclone vindo da região nordeste e alastrando-se rapidamente. Por precaução achamos por bem retornarmos, cancelando a excursão. Durante a primeira hora de nossa viagem de volta não sentimos anormalidade e a programação da estação que sintonizávamos seguia habitual. Ao aproximarmo-nos da costa, mas sem ainda identificarmos qualquer movimento, dada a distância, interrompeu-se novamente a programação e voltaram a anunciar o ciclone e a destruição que vinha fazendo no litoral. Percebi a apreensão de Pablo e procurei distraí-lo com uma conversa amena. Constatei em Tai Chi, entretanto, um nervosismo ainda maior. Ela andava no convés de um lado a outro, vez por outra levando a mão sobre a testa como quem tenta o vislumbre de uma paisagem distante; enquanto o fazia, lamentava não ter trazido o par de binóculos.
Ao nos aproximarmos do porto a fileira de embarcações, sempre muito bem alinhada, estava em desordem e barcos menores se agitavam na água, batendo-se uns contra outros. O iate de Pablo, mesmo parado e já preso à tora de madeira do ancoradouro, saltitava feito um boneco de mola. Foi difícil para todos nós deixarmos o seu interior. O vento nesta altura já uivava assustadoramente; andávamos apressados na ponte, querendo ganhar a terra firme e ela parecia desabar a cada pancada dos nossos pés. Os pneus abaixo sacolejavam, lançando em todas as direções jatos abundantes de água salgada. Quase não havia gente no porto; a sensação era de abandono em busca de um abrigo seguro contra a devastação que se anunciava. Voltando a olhar para o mar avistei um barco pequeno de pescadores. Vi o desespero dos dois homens enquanto tentavam aproximar-se da praia. Remavam, alvoroçados, procurando, de algum jeito, controlar a fúria das ondas assoladas pela força do vento. Por mais que tentassem não conseguiam. As rajadas batiam contra eles, impulsionando-os em sentido contrário. Numa manobra mais arriscada, o barquinho acabou virando com os dois homens. Um consegue agarrar-se a uma das boias de sinalização e dali, com algum esforço, chegar a uma embarcação próxima. Quanto ao outro, sem ter a mesma sorte ou habilidade, deixou-se afundar. Jamais soube do seu destino, pois voltei a concentrar minha atenção onde pisava porque temia, a qualquer momento, o desabamento do frágil ancoradouro.
Um barulho infernal fazia estremecer a ponte, coberta de alumínios superpostos, encaixados em forma de telha. De repente, seguido de um estalo fragoroso, uma das placas se solta e sai batendo, rolando desgovernada sobre o teto da cobertura, caindo na água. Isto facilitou o desprendimento de outras placas e a repetição de um movimento igual ou semelhante. Temendo um sério acidente começamos a correr, mas ao mesmo tempo com risco de desabarmos junto com a plataforma. Conseguimos finalmente alcançar a terra firme. Disparamos pela areia em direção ao automóvel do outro lado da avenida. Eu olhei para além das montanhas e meu espírito se inquietou quando percebi uma nuvem negra, uma espécie de cortina enfumaçada dominando a paisagem do horizonte; não consegui avaliar para que lado ela se dirigia; na verdade não sabia ao certo se era mesmo uma nuvem, a visão apavorou-me e eu fiquei totalmente confuso. A força do vento era assustadora e, seus sinais, de pânico e destruição. As pequenas árvores do bulevar pareciam bonecos de marionetes manipulados por mãos invisíveis e poderosas. As folhas se desprendiam e, com velocidade espantosa, ganhavam a atmosfera, subindo dezenas de metros pela força do vento.
Um galho maior se soltou de uma das árvores, voou de encontro a um automóvel em sentido contrário e espatifou-se no para-brisa do carro.
Seu motorista precisou frear bruscamente, o que fez rodopiar o veículo; para não atravessar o jardim para a outra pista, parou em cima do canteiro central. O barulho era ensurdecedor. O vento arrastava o que vinha pelo caminho. No alto dos postes, os fios bailavam; em um dos cruzamentos, o sinal luminoso rompeu-se e permaneceu dependurado, balançando; sua queda em plena pista era iminente e os poucos carros que ainda insistiam em desafiar a tempestade, ao perceberem, desviavam já quase em cima, preferindo o risco de bater em outro que passasse ao seu lado no mesmo momento a receber o impacto vindo do alto. Conseguimos entrar no automóvel e deixar para trás aquele cenário de pânico e destruição. Em nossa trajetória ao longo da praia vimos um mar violento, cujas ondas avançavam pela areia, chegando praticamente aqui, no calçadão, engolindo os degraus de acesso à avenida, esborrifando a pista, alcançando veículos. No nosso caminho havia quiosques afetados pela força do vento, mesas e cadeiras atiradas ao longe, no canteiro central do bulevar, na areia, boiando nos vestígios da ressaca invasora. Esta vinha, fremente, pegando o que estava na praia: objetos lançados sem direção, palmas arrancadas dos coqueiros a beira mar, pequenos frutos, verdes, sem nenhuma utilidade fora de seu lugar de origem, lixeiras que se despregaram dos postes, cadeiras de praia, óculos de mergulho, toalhas, tudo isso esquecido, ou mais provavelmente, largado na pressa e no desespero de se abandonar o local. A pedido de Pablo, Tai Chi, ao seu lado, ligou o rádio, tentando sintonizar a mesma estação que ouvíamos no barco.
- Não consigo - ela disse, mexendo em todos os botões. – Nada, nenhum sinal de transmissão.
O que ouvíamos não passava de chiados incompreensíveis quando não estática total, o que me fez avaliar a situação como realmente séria e preocupante. Entrando na parte rural, onde mora o meu amigo, espantei-me com a precipitação de granizo a nossa frente. A pressão atmosférica caíra drasticamente; as pequenas pedras castigavam o nosso capô e rebatiam no para-brisa, dificultando a visão de Pablo. Aconselhei que parasse a fim de esperarmos um alívio da tempestade, mas ele sequer deu-me ouvidos; não insisti. Intui acertadamente a razão de sua ansiedade em ir adiante. Preocupava-o a casa. Não era um imóvel segurado, embora ele reconhecesse o seu erro em desistir da apólice no momento final da transação; tudo por não concordar com certas exigências da seguradora. De minha parte, achei absurda esta atitude de Pablo que poderia acarretar em uma perda incalculável. Em todo caso não entrei em detalhes, até por desconhecer o que o levara a tal decisão.
Viramos a última curva e entramos na rua onde morava. O granizo dera lugar a uma chuva, líquida, persistente e gelada; tremíamos todos dentro do carro. Os vidros embaciados como paredes de um iglu. Do lado de fora, a visão escassa não nos permitia ver além de um panorama triste, a despeito da paisagem privilegiada do lugarejo. O ar acobreado, a solidão das pradarias e dos animais sem pastor, fuçando a grama encharcada, comendo e bebendo ao mesmo tempo ao pé das toras do cercado, caídas nas poças que se formaram, e as patas muito próximas aos círculos dos arames farpados; árvores tombadas, postes arrancados; um estrago total e comovente. Tai Chi inclinava a cabeça sobre o ombro do esposo que, tenso, agarrando com força o volante, não emitia palavras nem emoções. Eu não ousava falar, mas percebia, na fisionomia rubicunda e no seu olhar empedernido sobre a via a sua frente, a sua inquietação, toda a ansiedade reprimida e inconsolável. Estacionou na frente da casa. A chuva dera uma trégua. Havia mais claridade e menos vento.
Não houve tragédia, para a felicidade de toda a família. Tudo estava intacto; o impacto da tempestade fora menor ali e não causara ruína, além de uns poucos estragos. Fiquei feliz por meu amigo. Mas passei o resto daquele dia e do outro, tranquilo, dentro da casa, procurando assuntos e distrações que não lembrassem as horas desagradáveis que passamos. Foi aventura demais para o nosso tão curto período de férias.