Pestilência

A primeira tarde de inverno chegou e junto dela uma pesada nuvem negra, trazendo consigo frio e melancolia. Estamos cansados de ficar escondidos, mas não temos muitas opções depois que o mal nos abateu. Não faço a menor ideia de quanto tempo faz isso, mas sinceramente, agora essa é a coisa que menos importa. Hoje eu me tornei a última pessoa da casa capaz de ir lá fora e, infelizmente, vou precisar sair pra conseguir remédio e comida.

Meu pai me fez vestir a velha jaqueta que ele usou na última grande guerra que participou. Essa guerra não tinha nada a ver com as grandes batalhas tão lembradas em filmes, ela foi uma guerra muito mais obscura de nossas terras, que alguns nem lembram que existiu. A cor vermelha surrada dela iria ser um contraste diferente no tom acinzentado que cercou o mundo. Além dela, botei minhas luvas e minha máscara, agora não apenas para nos proteger do ar pestilento, mas também para proteger minha identidade. Coloquei a mochila nas costas e prendi uma sutil, porém muito útil, faca na cintura que eu usava para treinar arremesso em alguns sacos de areia nos fundos de casa. Estava pronto para sair.

As ruas estavam vazias, tirando pelos carros que foram largados fechando algumas entradas, poucos tem coragem e força para se aventurar nelas. Os poucos moradores que sobraram no meu bairro se trancaram em suas casas, protegidos do mundo exterior. Algumas casas estavam com suas janelas fechadas por tábuas, placas, coisas que pudessem bloquear a visão e a passagem do que quer que seja. Não havia muito barulho em quilômetros além dos latidos de alguns vira-latas e sons de ratos que passavam por ali. Eles infestaram a cidade, já faz um bom tempo. Brotam dos esgotos e debaixo das pilhas de corpos que sobraram da primeira onda. Não eram ratos comuns, eles eram bem maiores, com dentes que poderiam rasgar a carne com facilidade e olhos vermelhos, olhos que parecem te vigiar de noite, aguardando que você morra para te devorar. Alguns dizem que eles são acompanhados de demônios, que aparecem trazendo desgraça e morte. Não sei se é verdade, mas de fato, junto deles veio a segunda onda, levando consigo quase metade do país para a morte e talvez a mesma quantidade dos países que sobraram.

Conseguimos lidar com boa parte os mortos, enterramos eles, até que todos os que enterravam começaram a morrer. Depois passamos a crema-los, até que todos os que faziam isso também começaram a morrer. Depois disso cada um começou a fazer sua pequena fogueira particular, simplesmente pegamos álcool e fósforo, de qualquer jeito, até que finalmente os cabeças do governo nos proibiram de fazer isso, por causa do cheiro de carne queimada e do excesso de fumaça. Não tínhamos mais onde enfiar os corpos, nem forças para isso, então começaram a se acumular, nas ruas mesmo, como sacos de lixo podre, com a eterna promessa de que alguém viria recolher, o que obviamente nunca aconteceu. Aos olhos de quem comanda nós já estamos mortos, não tem porque se preocupar em limpar o chão ou não.

A maior parte das lojas está fechada. Ninguém mais compra, praticamente ninguém tem dinheiro, afinal. Somente uns poucos comerciantes se mantém esperançosos, fora eles, apenas os serviços essenciais: mercados, farmácias, etc, para a minha sorte. A pouca segurança que ainda existia vinha de pequenas câmeras instaladas em postes, postas lá por seres tão cruéis quanto a própria doença. Dizem que vão purificar as ruas de qualquer um que andar com a face exposta, sem sequer ter a certeza se estão infectados ou não. Acabei de passar por uma dessas pessoas que foram “purificadas”. Ela está encostada na parede da casa do outro lado da rua, pingando sangue de um buraco nas costas. Não consigo entender como sabendo de tudo o que está acontecendo eles ainda conseguem sair desprotegidos. Deve ser quase como na época daquelas campanhas de camisinha que eu nunca mais vi, mesmo sabendo que podiam pegar uma penca de doenças no pau, ainda insistiam em não usá-las. De qualquer forma, agora sei que eles os purificadores estão por perto, devo ter atenção redobradas.

Chego no mercado aberto mais próximo depois de duas horas de caminhada. Sou recebido por um funcionário magrelo. Suas olheiras revelam o cansaço por ainda precisar fazer aquilo. Não deve estar ganhando mais do que alguns centavos por hora, talvez alguma porção de alimentos para casa. Não é o ideal, mas é o necessário. Ele espirra um gel fedorento nas minhas mãos, um movimento automático, nem percebeu que eu não havia tirado as luvas, acho que nem eu percebi isso. Rodei por alguns corredores jogando no carrinho tudo o que eu precisava, de comida a produtos de limpeza. Quantidades limitadas por cliente, mas acho que tem muita gente que não compreende. No corredor da mercearia, dois homens brigando por um pacote de biscoito. Um funcionário tentou apartar, mas acabou levando um empurrão que o derrubou em um carrinho que estava largado no caminho. Cena deplorável. A briga só parou quando o som de um tiro ecoou. Foi do lado de fora, mas o suficiente para assustar a todos que ali estavam. O homem que parecia mais velho desistiu do biscoito e o largou, visivelmente irritado. Continuei minhas compras até enfim terminá-las. Não era muito, mas eu ainda precisava deixar dinheiro para os remédios. As filas eram bem pequenas, então logo fui atendido. Conforme as compras passaram eu já fui enfiando na minha mochila, pois nenhum mercado fornecia mais sacolas. Passei a pulseira na máquina e concluí o pagamento. Hora de procurar a farmácia.

Saí da loja arrumando a mochila nas costas. Olhei em volta para me lembrar de para qual lado era a farmácia. Para o leste, próxima a esquina das almas. Comecei minha caminhada, mas logo parei, pois ouvi algo que me chamou a atenção. A imagem de uma pessoa começou a crescer do final da rua, vindo na minha direção. Parecia uma mulher, correndo desengonçada, desesperada e, aparentemente, sem máscara. Atrás dela, ainda distante, uma caminhonete preta com algumas pessoas em pé sacudindo suas armas na parte de trás. Eram os purificadores, caçando mais uma pobre alma. Eu me virei, preparado para seguir meu caminho, pois não havia nada que eu pudesse fazer, mas paralisei ao ouvir a mulher me gritando:

_Ei. Me ajuda!

Não. Não posso.

_ Por favor. Eles estão atrás de mim!

Procura outra pessoa. Não posso ajudar. Por que saiu sem máscara?

Olhei de novo pra ela. Já estava bem perto. Tinha a pele toda cortada e manchada com as marcas da doença do rato. Seus lábios já estavam pálidos, seu cabelo era seco, quase desbotado e seus olhos pouco brilhavam, mas imploravam pela minha ajuda.

Eu poderia ajudar, mas tenho que levar essa comida para a minha família. Eu sou o único com força o suficiente para sair. Eu sou o pilar dessa casa. Não posso me arriscar, não a esse ponto. Não. Não tenho como ajudar.

Um dos purificadores disparou contra ela. Passou direto e explodiu um pedaço da parede do mercado ao meu lado. Ela continuou correndo na minha direção. Puxei minha faca e gritei pra ela se afastar, não quero me meter nisso, mas não pareceu fazer diferença. Finalmente me alcançou. Tentei dar uma estocada nela, mas consegui errar. Ela pulou em cima de mim, me tirando o equilíbrio e me fazendo cair no chão. Agarrou minha máscara e com um puxão a tirou de mim e rapidamente colocou em si mesma. Desesperado eu só pude cobrir meu nariz e boca com a manga da jaqueta, para me proteger do jeito que podia.

O carro dos purificadores parou a alguns metros da gente. Dois deles desceram da caçamba, um de cada lado, cada um com um fuzil em mãos. De lá mesmo continuaram encarando aquela mulher.

_ Você corre bem para uma impura. _ gritou um deles.

_ Já disse que eu estou bem. _ respondeu a mulher. _ Eu estou bem, estou respirando muito bem. Olha, eu estou até de máscara. _ falou apontando para o rosto.

Enquanto a cena desenrolava, eu fui me arrastando de volta até a porta do mercado, mas quando tentei abri-la, percebi que já estava trancada. Enxerguei através do vidro o rapaz que me atendeu no caixa e com os olhos implorei para que me deixasse entrar, sem sucesso. Ninguém queria correr riscos, nem com os homens armados e nem com um possível infectado, mesmo tendo me visto completamente saudável a pouco tempo. Tentei pensar em outra alternativa, quando me assustei com um barulho ensurdecedor e com algo molhado acertando meu rosto. Me virei a tempo de ver o corpo da mulher caindo mole com um buraco na cabeça e eu, completamente ensopado pelo seu sangue. Ela caiu de olhos abertos ainda me encarando.

O pânico fez meu corpo travar. Os homens riam do que tinham acabado de fazer enquanto faziam o sinal da cruz, simbolizando o ato de purificação. Eles já estavam voltando para a caçamba quando o motorista alertou quanto a minha presença. Olhando pra mim, só viram a imagem de um idiota assustado escondendo o nariz com o braço. Tiveram um tempo para conversar entre si, até que finalmente um deles apontou o fuzil para a minha direção. Seria uma execução rápida.

_ Eu o purifico em nome de Deus._ disse engatilhando a arma. Esse tempo foi o necessário para o meu corpo tomar o controle e começar a se mover sozinho. Em um movimento quase instantâneo eu consegui pegar minha faca e arremessar na direção do homem que me tinha em sua mira. A lâmina perfurou seu ombro o que o fez desviar a arma por um segundo, o suficiente para me levantar e correr a toda velocidade para as ruas mais estreitas, onde o carro não poderia passar. O cara que eu acertei apertou o gatilho, mas não conseguiu segurar o tranco da arma muito bem. A rajada passou por cima da minha cabeça, explodindo o vidro da porta do mercado. O que estava atrás dele ficou sem saber se atirava ou ajudava o companheiro, até receber a ordem de vir atrás de mim. Também arriscou o disparo. O zumbido dos projéteis passando por mim era assustador, mas não parei até conseguir virar na rua e sair de seu alcance. Continuei correndo até enxergar uma casa com janela baixa aberta, em um momento normal eu jamais faria isso, mas no desespero eu só consegui pular pra dentro, caindo todo torto do lado de dentro. Fiquei abaixado enquanto ouvia os gritos dos purificadores me procurando do lado de fora. Por enquanto eu estava a salvo.

Mesmo com toda essa adrenalina, eu não podia esquecer que ainda estava sem máscara, então tive que improvisar. Abri minha jaqueta e rasguei um pedaço da camisa que usava por baixo. Era o único tecido que ainda não havia tido contato com o exterior, então, na emergência, deveria servir. Com toda essa movimentação que eu estava fazendo, percebi uma dor aguda no meu braço esquerdo. Tinha um rasgo na manga e nela uma mancha de sangue pouco a pouco começava a aumentar. "Merda", praguejei. Parece que um deles conseguiu me acertar, mas parece que foi de raspão, dá pra sobreviver.

Agora um pouco mais calmo consegui olhar em volta desse lugar que acabei me abrigando. A tarde estava começando a cair, fazendo a luz do sol pouco a pouco deixar a casa e me largando no escuro. Vasculhei a mochila procurando minha lanterna e lá dentro tateei as compras que havia feito a pouco. Me subiu a preocupação de ainda não ter conseguido chegar na farmácia e não ter voltado pra casa. Eu queria sair agora e terminar a minha missão, mas aqueles homens ainda podem estar lá fora. Porra, maldito seja quem deu armas a cristãos.

Meus pensamentos foram interrompidos por um barulho vindo mais de dentro da casa. Recolhi minha mochila e a coloquei de volta nas costas. Agora eu estava perdido na escuridão. Me arrastei com cautela pelos corredores, atento para o caso de um dos purificadores ter entrado na casa.

Nada. Fui aonde parecia ser a sala e no outro quarto, mas aparentemente ninguém entrou na casa, então me senti mais tranquilo para acender a lanterna. Quando iluminei o cômodo, fui surpreendido com uma pesada mancha de sangue no chão. Era como se tivessem arrastado um corpo ferido por lá. A mancha passava por toda a sala e sumia para dentro da cozinha. Eu precisava de uma arma para me defender e lá era o lugar mais óbvio para eu conseguir uma faca ou algo do tipo, então lentamente me dirigi até lá.

Ouvi outro barulho, eram como passos, porém muito leves para ser de um invasor. Era o som de pequenas patas arranhando o chão enquanto zanzavam acelerados pela casa. Isso não era um bom sinal. Mesmo sem os purificadores, eu não estava seguro aqui, precisava ir embora logo.

Cheguei na cozinha e, ao levantar a lanterna, minhas suspeitas foram confirmadas. No chão tinha um corpo, provavelmente do dono da casa. O rastro de sangue era dele e sua posição mostrava que ele foi se arrastando até lá enquanto tentava fugir dos ratos negros que tentavam arrancar sua carne. Era difícil saber qual das doenças o matou, mas com certeza era um sinal de que essa casa estava completamente contaminada. Ainda tinham alguns dos malditos roedores por ali, arrancando pedaços da carne em decomposição do rapaz. Um deles, muito bem alimentado, o rasgou na altura da costela e saiu de dentro do seu corpo. Alguns que estavam na bancada, me olharam, como se estivessem analisando se eu já estava no ponto certo para que pudessem me pegar.

_ Ainda não, filho da puta. _ falei. Eu ainda tinha uma missão. Tinha que levar essa mochila pra casa. O único que podia.

Espantei os roedores e abri algumas gavetas e armários, procurando o que desse pra usar. Tirando algumas latas sujas de comida enlatada, não tinha muita coisa. Já devem ter passado por aqui antes, claro. Na gaveta, finalmente, talheres. Sorte a minha, deixaram algumas facas, de tamanho e usos diversos. Uma delas, uma bela faca de carne, grande e afiada o suficiente pra furar o coração de qualquer merda que viesse atrás de mim. As outras eram menores, mas eram pontudas. Dá pro gasto.

Enquanto eu ainda estava separando o que levaria comigo, percebi uma luz forte atravessando a janela e praticamente me cegando. Os ratos que estavam ali correram para se esconder, já pressentindo o perigo, coisa que eu levei alguns segundos pra fazer, pois tentava entender o que estava acontecendo.

_ Atirem! _ ouvi alguém gritando do lado de fora. Assim que ouvi eu dei um pulo pra trás da bancada e logo uma rajada de balas explodiu a janela e perfurando toda a parede. Eles me acharam. A cozinha estava sendo completamente destruída. Pedaços de reboco e madeira do armário caíam em cima de mim. Em pouco tempo meu pequeno abrigo também seria inutilizado, mas não conseguia ver brecha para fugir dali. Uma das balas atravessou toda a proteção e varou bem do lado do meu ouvido, passando com um zunido agudo. Tive que me deitar, seria o jeito mais seguro que eu poderia ficar até que eles precisassem recarregar.

A primeira onda parou permitindo que a luz do farol do carro entrasse na casa pelos buracos da parede, parecendo pequenas miras me procurando. Consegui ouvir a movimentação do lado de fora, mas não consegui entender o que diziam. Levantei devagar e, com sutileza, tateei a bancada, buscando as facas que havia deixado ali. Uma das pequenas já estava comigo, e eu poderia improvisar para arremessar em um deles, a segunda eu não encontrei, a terceira foi a que consegui pegar, essa eu usaria em combate direto. A segurei firme, como se minha vida dependesse disso, e dependia. Dei uma olhada rápida em volta para calcular as possibilidades, a opção seria correr para a sala sem que me vejam e de lá correr para a janela do quarto em que entrei. Olhei para o corpo do dono da casa, caído no chão e agora com alguns buracos de bala.

_ É amigo, vou ter que te deixar sozinho de novo. _ falei. Dei um pulo de onde eu estava e saí correndo em direção a porta, esse era o momento.

A escuridão poderia me trazer muitas vantagens em horas como essa, mas infelizmente me traria desvantagens também.

_ Puta que pariu! _ exclamei ao ver que não estava mais sozinho na casa. Por um instante eu gelei, o filho da puta entrou e eu nem percebi. Ele iria me pegar. Mas, espera. Ele não estava preparado para me encontrar desse jeito. Ele também foi pego no susto. O tempo desacelerou, o frio começou a ir embora e deu lugar ao calor causado pela adrenalina, não dava só pra fugir, eu teria que sobreviver. Por um segundo eu tive a sensação de conseguir enxergar tudo a minha volta, cada buraco de bala feito por pelos meus perseguidores, cada rato que se escondeu para não ser baleado, cada rato que foi estraçalhado, cada rachadura no chão imundo da casa, tudo. O purificador virou a arma em minha direção, desengonçado, e esse era o momento de revidar. Levantei uma de minhas mãos e consegui cortar seu movimento, empurrando a arma para cima, com a outra mão eu empunhei a faca e o estoquei entre as costelas com toda a minha força. Ele tentou disparar, mas usei toda a minha força para manter a arma apontada para o alto. Aproveitei meu momento de vantagem e o empurrei na direção da janela, ainda com a faca presa em seu corpo até sentir que havia perdido o equilíbrio. Tentei roubar a arma dele, mas o maldito estava de bandoleira, então desisti. No movimento de soltar a arma eu acabei esbarrando em seu rosto arrancando-lhe sua máscara, deixando visível uma cara de pânico e dor golfando sangue. Tirei a faca e terminei chutando o corpo fraco no peito o fazendo cair do lado de fora da casa. Não esperei o suficiente para me tornar um alvo fácil então logo corri de volta para o caminho que eu havia planejado.

_Me ajuda. _ ouvi o cara que eu havia acertado suplicar, mas logo sua voz foi cortada por um tiro. Tolerância zero para qualquer um que esteja sem máscara.

Consegui chegar no interior da casa. Lá o pouco de luz que tinha era o que vazava do farol que iluminava a cozinha. Pulei por cima de uma mesinha de centro e continuei correndo em direção ao quarto. Alguns homens que estavam do lado de fora já haviam entrado na casa, então eu não teria muito tempo.

_ Olha ele ali. _ gritou um deles apontando a lanterna acoplada a arma na minha direção. _ Vou pegar esse merda. _ disse disparando mais uma rajada em minha direção. Faltava pouco pra eu chegar no quarto. Me encolhi o máximo que pude para que as balas não me acertassem.

Passei pela porta. A fechei o mais rápido possível. Cruzei o quarto em direção a janela.

Dor.

Uma dor tão forte que me fez travar no meio do caminho e me fez cair de joelhos no chão. Levei a mão até o lado esquerdo da minha barriga e senti algo molhado. Sangue. Muito sangue. Me acertaram. Meu corpo queimava, minha visão começou a ficar borrada, minha respiração ficou pesada. Acho que não daria mais pra correr.

Fiquei parado naquele quarto escuro por um tempo, com a cabeça baixa, pernas trêmulas e com minha energia começando a me deixar, até lembrar no porquê de eu estar do lado de fora. Aqueles malditos conseguiram me acertar, mas ainda não vão me pegar, não podem. Eu ainda tenho que levar as coisas pra casa, eles dependem de mim. Meu pai, minha mãe, minha irmã. Não posso vou deixar eles na mão. Ainda preciso comprar os remédios. Tenho muito o que andar ainda. Preciso levantar e lutar para escapar dos purificadores, nem que tenha que matar cada um deles.

_ Ei, garoto. _ alguém falou do outro lado da porta _ Por que você não sai logo daí? Por que não se entrega logo?

_ Por que eu faria isso? _ falei com dificuldade.

_ Olha seu estado. Você sabe que não podemos deixar você ficar andando por aí. Você precisa ser purificado.

_ Quem são vocês pra decidir isso? Eu estou aqui fora numa causa tão nobre quanto a que vocês dizem estar e não são vocês que vão me atrapalhar. _ gritei tentando parecer corajoso.

_ Eu não sei qual é a sua causa, mas não vou me atrever a duvidar da nobreza dela. Nunca foi essa a questão e você sabe disso._ houve um momento de silêncio, o suficiente para ouvir os passos do outro lado. _ Você está certo. Nós não somos ninguém para decidir quem vive ou morre. Quem está fazendo isso é Deus. Ele escreve certo por linhas tortas, porém os caminhos são claros para os que querem ver. Ele permitiu que o ar ficasse podre e nos incumbiu de purificar as almas daqueles que não acreditam nisso. Você respirou desse ar e essa foi sua sentença. Claro que não temos certeza de que você está contaminado, mas você prefere arriscar voltar pra casa e acabar causando a morte de alguém? Aliás, você viu aquela mulher de mais cedo né? Você viu as manchas pretas na pele dela? Aquelas pústulas podres? Deve saber o que são não é?

Comecei a pensar naquelas palavras. O desgraçado tinha um pouco de razão. Voltar pra casa seria um risco. Eu não só me expus ao ar tóxico, mas também tive contato direto com uma pessoa que tinha contraído a doença do rato. No atual momento, nenhum dos meus familiares sobreviveriam se acabasse pegando uma desses males. Eles estão fracos, por isso precisam de bons alimentos e remédios. Eu ainda levaria, de um jeito ou de outro, mas não sei mais se posso entrar naquela casa.

_ Vocês falam que conseguem enxergar com clareza os caminhos tortos de Deus, _ tentei enrolar enquanto andava na direção da janela. A dor aumentava a cada respiração, mas a adrenalina não me permitia ficar parado. _ mas vocês só são um bando de idiotas pegando meia dúzia de palavras escritas em um livro e tirando delas só o que vocês querem. São um bando de filhos da puta que conseguiram umas armas e estão arrumando desculpas pra sair matando pessoas. O mundo já está uma merda né? Que diferença vai fazer? _ terminei de falar já atravessando a janela. Guardei a faca maior no bolso lateral da mochila e saquei a pequena.

_ Tá legal, eu tentei ser legal, mas pessoas sujas sempre serão sujas. _ vociferou o homem. _ Arromba essa porra!

De imediato a porta foi arrombada por um de seus capangas, mas dessa vez eu quem estava esperando. O lugar estava escuro, mas o homem que entrou primeiro era o mesmo que vi com a lanterna presa a arma, o que me deu um alvo perfeito. Em um movimento rápido, que eu treinava a exaustão em casa, arremessei a faca. Ela atravessou o quarto com o som frio do metal cortando o ar e perfurou o olho do maldito, sem que sequer tivesse tempo de perceber que eu já estava do lado de fora da casa. Ele caiu no chão completamente torto, já sem vida. Corri para a esquerda, pra fora do beco que me trouxe pra cá, em direção a rua. Olhei rápido para trás e consegui ver o último deles, talvez o homem que estava falando comigo, se esticando pela janela e tentando mirar, mas sem sucesso. Corri pelo lado oposto ao que sabia que teria um carro me esperando, mas depois de alguns metros percebi que, nas minhas condições, não iria conseguir ir muito longe, pelo menos não a pé. Olhei envolta buscando algum carro que parecesse ter sido abandonado a pouco tempo. Devido a falta de pessoas circulando, muitos veículos acabavam largados por aí, o que era bom, muitos carros para se roubar, mas também era ruim, pois muitos carros parados diminuiam espaço para passar, a não ser que você tivesse um grande o suficiente para empurrá-los, o que era o caso dos caras que estavam atrás de mim.

Fui até um carro branco que se encontrava logo atravessando a rua e quebrei seu vidro com o cotovelo. Abri a porta pelo lado de dentro e entrei no carro. Quando me curvei para sentar no banco senti uma pontada forte no abdômem. O ferimento piorou graças a toda essa correria. Não sei se aguentaria até em casa, mas eu tinha que tentar. O jipe não veio atrás de mim ainda, então aproveitei o momento de trégua para improvisar alguma coisa para me tratar. Na minha mochila eu tinha algumas gazes e esparadrapos, tenho certeza que não eram o suficiente mas, na emergência, serviriam. Minha roupa, minhas mãos, o interior do carro, tudo ficou coberto de sangue. Eu já não tinha mais tanta firmeza em meus movimentos, minha respiração ficou cada vez mais pesada, um sono repentino começava a me pegar.

Minha cabeça pendulou e acabei batendo de testa no volante, o que me obrigou a despertar. Precisava sair daqui. Usei a faca para ter acesso a alguns fios debaixo do painel do carro e consegui fazer uma ligação direta. Depois de algumas tentativas lutando contra o motor parado, finalmente ouvi um ronco contínuo dele. Ainda estava vivo. Não tinha muita gasolina, mas conseguiria me tirar dali. Manobrei o carro até a principal, desviei de alguns outros e acelerei em direção a farmácia, afinal, ainda tinha uma missão a ser cumprida. Essa estava sendo uma longa noite.

Devagar consegui seguir em frente. As luzes dos poucos postes e casas que insistiam em se manter acesas eram minhas companheiras, além de ser o jeito de eu saber que estava indo para o lado certo. Passei pelo mercado em que tudo isso começou. Eles já estavam começando a arrumar as coisas para fechar. O corpo da mulher continuava no mesmo lugar, acho que não valia muito a pena tentar tirar dali, seria trabalhoso, um risco desnecessário de se expor. Seria um bom alimento para os roedores durante a madrugada. Dependendo de sua fome, até amanhã ela já deva ter sido completamente consumida.

A partir do mercado, não demorei muito para chegar até a farmácia. Ela era como um pequeno oasis no meio de um deserto escuro e completamente abandonado, já que em seu quarteirão ela era a única fonte de luz. Sinceramente, não consigo entender como esse lugar consegue ficar de pé e livre de tudo o que as pessoas podem fazer. Todo esse tempo e nunca ouvi falar de nenhum saque por aqui, nem no mercado. Eles ainda conseguem fazer o dinheiro girar e ninguém faz nada porque lá no fundo, todos nós precisamos, são necessários. Tive que parar o carro um pouco antes, pois o caminho estava fechado de outros que foram abandonados. Para não correr o risco de ter que fazer outra ligação direta e falhar, preferi contar com a sorte, então o mantive ligado. Tentaria não demorar. Fui me arrastando até a porta e já saí entrando para buscar o que queria. Lá dentro, pouco antes de chegar na primeira prateleira, fui interrompido por um pigarro repreendedor do senhor de óculos que estava no balcão.

_ Boa noite. _ disse de maneira seca._ O senhor esqueceu. _ apontou para um tubo que liberava álcool gel por sensor de movimento. Álcool na mão? Sério? Será que ele está vendo meu estado? Preferi evitar confusão e voltei para limpar minhas mãos. O banho de gel fez pingar o sangue que estava preso entre meus dedos, manchando o chão branco do estabelecimento. Peguei uma cestinha e rodei pegando tudo o que precisava, além de um exame portátil para verificar eventuais contágios.

Não demorei muito para terminar minhas compras e voltei para o carro que, por um milagre, ainda estava lá. Taquei minha mochila no banco do carona e deitei minha cabeça no encosto, respirar fundo estava cada vez mais difícil. Peguei o exame, o tirei da caixa e enfiei uma pequena haste com algodão no nariz para coletar o muco que ele precisava. A sensação era muito incômoda, mas não tanto quanto a do buraco que tinha na minha barriga. Retirei e a fechei no estojinho que a acompanhava, ele iria analisar o material por um tempo e em breve daria o resultado, o coloquei no bolso do casado. Era hora de voltar para casa.

O caminho de volta foi quase tranquilo, se não fosse pelas vezes que meus olhos se fecharam e eu quase bati. Não estava tarde, mas o sono era muito. Perdi muito sangue, mas preferi vir logo e deixar minha mochila em casa do que ficar parado na farmácia esperando a boa vontade de me costurarem. A gasolina não durou todo o percurso, mas não seria jogo pegar outro carro, as ruas daqui não são fáceis de se dirigir. Andei o resto do caminho, faltava pouco para chegar.

O vento frio da então primeira noite de inverno chegou ao seu ápice, me deixando com as pontas dos dedos duras e batendo o queixo sem controle. A jaqueta do meu pai era uma boa proteção, mas nem ela conseguia conter. Uma fina névoa tomava a rua, trazendo consigo um ar soturno e fúnebre. O ar chega com muita dificuldade em meus pulmões, tento respirar fundo, mas isso me dói. Arranco trapo que usava como máscara do rosto para tentar facilitar, já me expus demais, não vai ser isso que fará diferença. Melhora, um pouco, mas não resolve. Sinto um cheiro podre a minha volta, é o cheiro familiar das pilhas de corpos abandonados, estou enfim em minha vizinhança.

Deixo pra trás um rastro de sangue, o que chama a atenção de pequenos companheiros indesejáveis de caminhada. Olho pra trás, está escuro, mas sei que estão lá, centenas de pequenos olhos vermelhos me observando de toda parte.

_Vocês de novo, porra?_ falei para os ratos que começaram a me seguir. Eles saíam das esquinas, das casas, dos buracos mais podres que aquele maldito bairro pode ter. O som grotesco que eles faziam entrava na minha cabeça como uma onda hipnótica cruel me dizendo que estão ansiosos para provar minha carne. Seria esse o som que as pessoas dizem ser o som dos demônios que vinham com eles. Acho que consigo ver um desses demônios. Ele tem olhos maiores, mas não vermelhos, eles eram amarelos, e ele roncava com um som alto e grave. Ele se aproximava rápido e fazia o chão tremer. Ouvi uma batida, ele era forte o suficiente para empurrar os carros que fechavam a rua. Estava vindo me buscar.

Finalmente cheguei. Meu portão de ferro estava trancado, não consegui encontrar a chave. Meu corpo pesava uma tonelada, meus olhos não aguentavam mais ficar abertos. Parei um segundo para pensar, depois disso tudo, acho que seria um risco muito grande entrar. Eu estava sujo. Eu estava “impuro”. Isso poderia matar meus familiares. Tirei a mochila das costas, segurei firme sua alça e a arremessei por cima do muro. O primeiro que acordasse e fosse para o lado de fora iria encontrar. Não era o jeito que eu queria, mas consegui entregar tudo.

Me escorei na parede e cedi até estar completamente sentado no chão. Os ratos ainda estavam aqui, não se aproximavam, era como se quisessem me ver morrendo lentamente, como se o sofrimento fizesse parte de seu alimento, de sua alegria. Abriram caminho para o demônio chegar. Ele parou bem na minha frente. A luz me cegava. Ouvi passos fortes e um som característico do engatilhar de um arma.

_ Ninguém foge da justiça de Deus. _ conheço essa voz. Engraçado o demônio falar sobre a justiça de Deus.

Enquanto ele preparava a arma, ouvi um apito vindo do meu casaco. Era o exame que eu havia feito. Tremulo, peguei o estojinho e li o que estava nele.

_ Puta que pariu! _ falei rindo. _ Deu negativo.

A última coisa que vi foi um dedo apertando o gatilho.

BS Oliveira
Enviado por BS Oliveira em 18/10/2023
Código do texto: T7911398
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