Terror Abaixo de Zero - reeditado
Ela queria sair da modesta casa onde morava, mas estava em dúvida. Só tinha certeza de uma coisa: estava muito frio. O frio mais intenso registrado nas últimas décadas naquela região da Sibéria tinha sido de vinte e três graus negativos e agora os termômetros estavam assinalando trinta e seis graus abaixo de zero. Era impossível sequer imaginar um frio assim para quem não está acostumado. E para aqueles que vivem em regiões onde a temperatura desce a muitos graus negativos essa é uma situação delicada, alarmante e, quando não, fatal para os não preparados.
Assim estava a situação para Cinirtes. Depois de enviuvar e casar o casal de filhos optou por ficar sozinha. Não queria ser um incômodo. Os filhos, contrariados, aceitaram e foram, cada um para um lado na imensa Rússia. Os últimos dias têm sido preocupantes. O fogão cozinha os últimos pedaços de carne de búfalo, a lareira queima e extermina as últimas pedras de carvão já transformadas em brasas. Custou a sair da cama naquela manhã. Ao colocar para fora da coberta o rosto, ainda quente da lã macia e protetora, assustou-se com a friagem que logo lhe envolveu as faces e os cabelos. Para não sufocar entreabrira a janela para fazer circular o ar durante a noite e apenas aquela brecha serviu para congelar o ambiente.
O banho foi rápido; deu-lhe coragem para enfrentar o dia que prometia ser muito difícil. Verificou novamente os tachos de comida. Se tivesse suprimento suficiente para alguns dias, isto talvez a tranquilizasse. Mas, Cinirtes não tinha escolha; teria que sair e enfrentar os quilômetros que a afastavam do mercado mais próximo. Teria que rachar a lenha para o fogão e para a lareira. Não foi falta de avisos; não faltaram conselhos dos filhos antes de se ausentarem. Se aceitasse ao menos o caseiro para auxiliá-la em momentos como esse...
A rajada de vento que sentiu ao abrir a porta novamente a assustou; a mão e a cara ficaram imediatamente congeladas. “Com a caminhada vou exercitar e aquecer o sangue” pensou. A paisagem era de um branco desolador. A neve cobria cada centímetro do terreno. A casa de Cinirtes era a única num raio de alguns quilômetros. Só mesmo o sangue russo para suportar uma vida assim solitária. Os degraus que levavam ao terreno estavam invisíveis e cobertos pela neve e ela precisou tatear para encontrá-los. Felizmente, as botas longas e quentes não deixaram que ela sentisse a neve.
Um laivo de dúvida pairou na mente de Cinirtes e ela chegou a fazer menção de retornar para dentro de casa e esquecer a loucura de ir tão longe neste frio impossível de ser enfrentado. Todos estavam em suas casas e ela podia fazer o mesmo e ficar protegida. Mas, o que comer no dia seguinte? E a lenha para se aquecer dentro de casa? O sangue russo e caucasiano falou mais alto e ela se pôs a caminho.
Ao iniciar a caminhada sentiu a dificuldade e o esforço redobrado para vencer a neve de dias acumulada no solo. Por sorte não havia vento, apenas o frio, muito frio, cortando-lhe a pele das mãos e congelando a face. Calçou imediatamente as luvas e olhou ao longe. A estradinha fazia curvas sinuosas; mas distinguir as curvas se tornou impossível dado o avanço da neve que fez igualar a geografia do solo. As árvores enfileiradas eram bonecos tomados de branco, guardiões do caminho. Em pouco mais de uma hora de caminhada Cinirtes não avançou muito mais do que dois quilômetros. O esforço para vencer a neve e o peso das botas que parecia ter triplicado faziam-na cansar-se além do normal; precisava a todo custo sentar para tomar fôlego.
Alcançou o tronco que viu logo à frente; chegando a ele, limpou a neve e sentou-se. Por instantes ficou pensativa. No fundo de sua mente apenas um pensamento era presente: estava frio, estava muito frio. Isto parecia paralisar uma parte da lucidez de Cinirtes e ela não conseguia raciocinar adequadamente. Tirou por um momento a luva de uma das mãos para alisar os cabelos e sentiu imediatamente congelar e paralisar os dedos, sensação que nunca havia experimentado antes. Por momentos lembrou-se do noticiário da noite anterior que pedia a todos que não deixassem por nada as suas casas porque a temperatura cairia ainda mais no dia seguinte. “Então é isso” pensou. “Não faz somente -35 graus. Será -40, será -45?” por instantes sentiu-se alarmada.
A apreensão de Cinirtes aumentou quando ela cuspiu e viu seu cuspe estalar no ar antes de chegar ao solo. Isto não era normal e ela cuspiu de novo. Novamente o cuspe estalou no ar o que a deixou ainda mais apavorada. Pensou em retornar dali, mas não pensou nisto com muito entusiasmo; queria mesmo cumprir aquilo para que tinha se programado. Para que andar dois quilômetros para trás se podia andar quatro para frente e voltar numa confortável carruagem, aquecida e com mantimentos para muitos dias? Esse pensamento animou-a e ela se pôs novamente a caminho.
Em meia hora de caminhada, mas sentindo-se anormalmente cansada, já conseguia avistar o rio; atravessando-o teria percorrido mais da metade de seu percurso. Beberia um pouco de sua água límpida e super gelada; economizaria assim a que trouxe em sua garrafa, pois ainda tinha um longo caminho a percorrer e a sede não tardaria a chegar novamente. Mas Cinirtes estranhou a quietude do rio ao aproximar-se um pouco mais e aquilo que ela imaginava havia ocorrido. O leito havia se congelado completamente; era agora uma camada deslizante e transparente de puro gelo.
Todos os acontecimentos até ali só vinham contribuindo para a inquietude e o desespero desta mulher corajosa. Sentiu, todavia, que tudo o que precisava fazer era não perder a calma e desviar os pensamentos para outras paisagens; precisava, a todo custo, esquecer o frio intenso que estava sentindo. Achou que comer seria um ótimo passatempo e que a ajudaria a esquecer do problema. Sem parar a caminhada descalçou a luva de uma das mãos. Imediatamente veio aquela terrível e paralisante sensação; ficou imediatamente adormecida e congelada. Meteu-a no bolso das calças e sentiu, por instantes, uma sensação de alívio que não durou muito tempo. Retirou do bolso a mão e fez um movimento frenético batendo com ela contra o corpo, na altura do quadril, para fazer voltar a circulação que havia sumido. Sentiu então uma sensação de alívio; guardou então a mão novamente dentro da luva.
Desse jeito tateou como pode o interior do bolso a procura do sanduiche. Trouxe-o para fora e passou a comê-lo, demorando na mastigação de cada pedaço, como a querer preservá-lo o máximo possível. Isto aqueceu-lhe um pouco, dando um pouco de ânimo. Seguia agora beirando a margem do rio congelado; era um longo e monótono trecho até alcançar a ponte de corda. Cinirtes caminhou, caminhou. Sabia ser este o pior trecho de todo o percurso. Abaixou a cabeça, enfiou ambas as mãos nos bolsos das calças e acelerou a marcha. Ela percebia que, vez por outra, as botas não afundavam na neve, o que seria o certo, mas, pelo contrário, algo resistente e escorregadio vinha de encontro a seus pés. Calculou acertadamente serem placas de gelo formadas sobre pequenas poças. Aquilo podia ser perigoso e ela logo procurava escapar, voltando agilmente para o caminho de neve.
A sorte porém, não estava a favor da mulher e ela acabou por pisar com vontade em uma dessas placas de gelo e, antes, que pudesse passar para o lado, o gelo cedeu e a mulher afundou uma perna, a direita, na água congelada. O susto foi enorme. A perna de Cinirtes ficou presa na massa consistente de gelo e, por mais que ela tentasse, não conseguia removê-la de lá.
O torpor e a dormência começaram imediatamente a tomar conta de todo o seu organismo. Já não sentia a perna; a mente escureceu por um instante e ela esteve a ponto de um desmaio. Era tudo que não poderia ocorrer. Seria o fim. Num ímpeto de coragem e, como única solução, Cinirtes, num solavanco, puxou a perna e esta veio, mas nua e avermelhada, sem a bota que afundou imediatamente. A dor veio, cruel e lancinante. A razão brotou-lhe mais uma vez à consciência, mas para lhe trazer a quase certeza da morte. Tinha que lutar para superar esse drama e não ter mais do que alguns dedos ou um pé amputados.
Cinirtes saiu do local em condições praticamente impossíveis de seguir para onde quer que fosse. Mas aí é que estava o problema maior; ela não tinha saída. Tinha que continuar. Para onde quer que fosse a situação seria a mesma. Estava no meio do caminho. O pior que poderia lhe acontecer seria encontrar fechado o mercadinho para onde se dirigia; então, nesse caso, poderia se considerar perdida. Isto porque precisava agora de ajuda mais do que nunca. Sentiu que a perna inchava do joelho para baixo. Amputar alguns dedos ou mesmo um pé ainda seria suportável, mas toda uma perna era algo cuja simples ideia a estava martirizando.
Mai uma vez precisava desviar o pensamento para outras imagens a fim de não sofrer antecipadamente. Mancava visivelmente. Ela não sentia mais a perna. Imaginou que o fato de agora submetê-la integralmente ao frio já a tivesse paralisado e que não havia ali mais nenhuma espécie de circulação sanguínea e, se aquele estado passasse para o resto do corpo, a morte seria inevitável. Pensou em algo que pudesse aliviar esse tormento. Instintivamente arregaçou para cima do joelho a perna da calça que, por ter se encharcado no acidente não lhe proporcionava nenhum calor. Tirou então a bota da outra perna. Com tremendo esforço conseguiu alargá-la um pouco a fim poder metê-la na perna doente. Conseguiu aquecê-la em parte; o que aumentou foi a dor em virtude do esforço feito e quando voltou a caminhar, agora de forma mais lenta e muito desajeitada.
Para piorar a situação teria agora que pegar um trecho em aclive, o que exigiria ainda maior esforço. O máximo que conseguiu não chegou a cem metros porque a dor se tornava agora insuportável. A bota, colocada forçadamente e numa perna doente, estava acabando com ela. Com a respiração ofegante, parou e arrancou-a, passando-a novamente para a perna a que pertencia. Arriou novamente a perna da calça molhada e, sob uma sensação terrível de tremor e mal estar, procurou seguir adiante. À medida que subia, via o rio ganhar distância e profundidade com seu leito totalmente intacto e congelado. Olhou lá embaixo. Nada se movia; apenas uma camada inerte de gelo formava o leito do rio.
De repente, a sua frente, surgiu a ponte de corda. Não havia outra maneira de atravessar para o outro lado. A visão da ponte dava arrepios. Eram troncos perfilados, atados uns aos outros com aparente maestria e segurança. Formavam assim um longo e simétrico corredor sustentado por cordas possantes presas à vegetação que ali era mais abundante. Cordas entrelaçadas a outro conjunto de troncos perfaziam as laterais. Fortemente colocadas e esticadas, constituíam uma proteção que, tirando as tempestades ou os ventos fortes, garantiam uma travessia segura.
Cinirtes descalçou as luvas e se preparou para a travessia. Veio novamente aquela sensação de dormência causada pela circulação interrompida. Assustou-se com esta reação tão instantânea. Freneticamente sacudiu no ar as mãos na busca de senti-las com vida. Ao mesmo tempo pensou na perna desprotegida. Ergueu-a no ar, pisou fortemente no solo; absolutamente nenhuma sensação, era como se não existisse. Fez esse movimento diversas vezes e precisava olhar para baixo para saber quando tinha a perna no alto e quando estava pisando.
Quanto às mãos, o alívio causado pelo movimento dos braços foi apenas passageiro e elas voltaram a ficar insensíveis e congeladas. Guardou-as nas luvas. Iniciou a travessia. Já com os dois pés sobre a ponte segurou com ambas as mãos, uma de cada lado, as cordas do corrimão. Precisava estar cem por cento concentrada. Este esforço desviou sua atenção da dor e do seu problema. Tinha que vigiar cada movimento de soltar e voltar a agarrar cada centímetro de corda, pois a sensibilidade era quase nula e as luvas não ofereciam firmeza, além de estarem escorregadias.
Já no meio da travessia, deixou que uma das mãos escorregasse e perdeu o equilíbrio, caindo sobre uma das pernas, torcendo terrivelmente o pé, que não era o insensível. Isto a fez soltar um grito lancinante de dor. Não podia, naquele momento, desviar os olhos da única mão que a mantinha presa à sustentação da ponte, se não quisesse despencar lá embaixo. O restante da travessia foi de puro martírio; uma dor indescritível em todos os ossos do corpo e especialmente no pé agora quebrado; só não lhe doía a perna que já não mais existia.
Conseguiu chegar ao fim da ponte engatinhando e parando para descansar, o que levou minutos que pareceram horas intermináveis. Ao encontrar a terra firme, ou melhor, o mundo sob a neve, ao tentar levantar-se, viu que não conseguia e ali mesmo perdeu os sentidos. Neste intervalo de sonolência e delírio pairaram em seu subconsciente imagens diversas. A igreja onde se casou. O vestido de noiva arrastando-se pelo salão enfeitado e lá no fundo, o noivo, mostrando, no sorriso de uma à outra orelha, a sua felicidade; o único homem de sua vida, a quem proporcionou o belo casal de filhos.
À visão do casamento juntaram-se outras. A do nascimento dos filhos, do batizado e também do casamento. Tudo ali, naquela mesma igreja do pequeno povoado onde nascera Cinirtes. Povoado que a viu crescer. E agora a acolhe em seus derradeiros momentos. A última visão é a do mesmo padre que, como missão, tem agora a de lhe perdoar todos os seus pecados e preparar sua entrada ao céu.