CONTO: Gafanhoto-soldado

Vi em algum lugar uma vez, não lembro onde, que há uma espécie de gafanhoto que pode sobreviver a desertos terríveis e, nos casos mais desesperadores, se alimentam dos próprios companheiros falecidos para sobreviver. Era um vídeo pouco informativo, possivelmente mentiroso, mas me deixou intrigado com o quão longe esses insetos podem chegar pela sobrevivência e quão cegos ficam em situações desesperadoras. O vídeo mostrava uma estrada que corta o deserto, seu asfalto pintado com as entranhas dessas pequenas criaturas que, a primeira leva delas, tentou cruzar a estrada para chegar na água do outro lado, mas foram atropelados em sua tentativa; as levas seguintes a essa foram atraídos pelos cadáveres de seus companheiros, a fim de adquirir os nutrientes necessários para sobreviver ao menos mais um pouco, mas acabavam sendo atropelados também. O ciclo permanece a ponto da estrada estar colorida com os gafanhotos.

Eu não sou o cara mais culto do mundo, mas às vezes eu gosto de fazer passeios culturais. Este museu estava fechado há um tempo e voltou a funcionar semana passada. Sinceramente, podiam ter segurado a re-inauguração mais um pouco. A curadoria está uma bagunça. Falando como um leigo e na humildade, o que passou pela cabeça deles?

Acabei de sair da sessão de arte barroca brasileira, estou na sessão de espécies em extinção olhando para um gafanhoto-soldado ressecado, à minha esquerda está a entrada para um memorial dos povos indígenas dizimados. Isso aqui não faz o menor sentido! Entro no memorial. Alguns nomes e estatuetas das figuras mais importantes estão em destaque, mas o que mais me chamou a atenção é a foto de um homem usando um terno. Ele carrega uma bíblia embaixo do braço e segura a cruz com uma firmeza ensaiada, como se não tivesse costume disso.

A biografia dele é triste, na minha opinião. Me faz criar tantas hipóteses de como deve ter sido realmente a vida desse homem. Abaixo de sua fotografia velha e sem cor, uma placa extravagante diz: “Iri dos Santos, cacique de povo sem registros. Residiu toda a vida no Rio de Janeiro. Fora um visionário, uniu-se à igreja católica com sua família, salvando-os das tragédias que levaram seu povo ao esquecimento. Alcançando altos cargos políticos, lutou em prol das nações indígenas, impedindo que centenas sofressem o mesmo que seu povo. Sepultado na Catedral XX, em São Paulo.”

Fico imaginando a real história por trás do olhar desolado desse homem na foto. É claro, é muito possível que tenha realmente se convertido, se tornado um cristão fervoroso e que tenha pregado aos seus conterrâneos por livre e espontânea vontade, não sei, mas não vejo nada que dê credibilidade a essa história. As coisas que ele fugiu, do que abriu mão em nome de uma persona que poupasse sua vida e de sua família. É claro, não sou alguém bem informado, faço julgamentos como um mero turista olhando uma foto velha, mas ainda assim, não consigo deixar de imaginar. Enterrado em terras que nunca pisou em vida após dedicar-se a um deus que não era dele. Sua alma poderia descansar com seu corpo no solo de um deus estrangeiro?

Fico imaginando, apenas imagino.

Não costumava se chamar Iri dos Santos, mas seu nome e de sua família deveriam ser novos como suas vidas para garantir mortes com descanso. Largaram suas divindades, não ousavam falar seus nomes novamente para evitar qualquer mácula que suas vozes covardes pudessem trazer à santidade de suas crenças, que se fora junto do último suspiro do povo que jurou proteger. O pacto com o seu diabo deu início no dia que beijou a cruz, mesmo dia em que seus filhos receberam nomes cristãos.

Iri era um homem modesto em vida, não desejava fortuna ou fama, mas os brancos viram nele uma oportunidade. Ter esse homem vinculado a igreja limparia o nome desse deus loiro crucificado, cujas vestes estavam banhadas com sangue de gente que lutou pela liberdade. Esse sangue precisava ser purificado com o sacrifício de um filho dessa gente, este daria sua vida para a igreja e ela seria vista como misericordiosa, pois salvou uma alma pagã. Qualquer tragédia sobre o povo desse homem seria justificável, afinal, Deus não protege pagãos.

Lhe deram o que foi preciso para que ele continuasse sob os holofotes, precisavam sempre de algo que lembrasse as pessoas o quão bom Deus foi com esse pecador. Iri representou o verdadeiro brasileiro na política, orientou outros a abandonarem seus costumes para a sobrevivência de suas famílias. Assistiu de camarote a morte de culturas, viu a antropofagia cristã em seu esplendor e o loiro crucificado engordando com os dízimos conseguidos em cima de seu novo nome.

Sua mulher morreu antes dele. O funeral fora com orações públicas de bispos importados, mas as orações internas de seus filhos foram aos deuses de sua terra. Quando chegou o tempo de Iri, ele pediu que não fosse feito uma estátua pública em sua homenagem, não suportaria a ideia de continuar sendo uma atração naquele circo. Contudo, infelizmente, seu pedido não foi aceito.

Iri não descansa em sua morte, seu choro distante e tímido pode ser ouvido na cripta sombria daquela Catedral paulistana. Casais apaixonados pagam uma fortuna para uma visita guiada completa ao local onde os restos mortais daquele indiozinho repousa com os bispos e sacerdotes, sendo ele o único sem efígie, mas com uma grande estátua de um índio com um colar de penas sobre a gaveta mortuária. Os atuais padres que cuidam desse aposento acreditam que o choro se trata de um sussurro do espírito santo abençoando seus trabalhos, só pensam isso por não verem o rosto do homem dentro da sepultura. Se o vissem, seria claro pela expressão de completo desespero naquele rosto enrugado que as lamentações são de um gafanhoto que acreditou que devorar o cadáver de seus iguais seria sua libertação, mas acabou por definir seu trágico fim. Esmagado em terras estranhas, sem o frescor da água que buscava ou os nutrientes que covardemente tentou alcançar.

É claro, só estou imaginando. Afinal, sou um leigo em um museu mal organizado.

Fico imaginando, apenas imagino.

Nate Wilter
Enviado por Nate Wilter em 30/09/2023
Reeditado em 05/07/2024
Código do texto: T7898191
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