Holofernes

Fascinada pelas flores mortas que ali jaziam, sobre a mesa de centro da sala de estar, ela arranjava um vaso de tom marrom escuro. Retirava quaisquer sinais de vida das flores com bastante ímpeto e deixava com que a beleza murcha das criaturas divinas que outrora tiveram vida sobressaísse. Ela parecia muito feliz naquela tarde ociosa de um fim de semana qualquer. Acompanhada de um vinho seco e ao som do Réquiem de Mozart que tocava ao fundo, muito baixo, fazia com destreza a arrumação do vaso.

Não demorou muito para que a campainha soasse. Ofendida, levantou-se ela subitamente, a derrubar um pouco de vinho sobre sua camisa rosada. Sua casa era obscura: os poucos móveis daquele recinto eram recheados de pó e davam a impressão de estarem abandonados. Sobre eles também, além das camadas espessas de poeira, havia roupas que ela tecia quando as horas do dia lhe pareciam mais duradouras que o normal.

Dirigiu-se ao interfone e perguntou ao porteiro o que queria consigo.

- Sérgio está aqui.

Havia muito que Judite não se relacionava com ninguém. Depois que seu antigo marido fora decapitado por uma facção em circunstâncias não muito bem explicadas, a si lhe sobrou o ócio, a solidão e o ambiente lúgubre a enterrar seu espírito em um mar de incertezas sobre a vida. Ao ouvir aquela mensagem, algo sobressaltou-lhe no peito. Conhecera Sérgio em um sebo do bairro enquanto procurava alguns livros sobre ontologia. O homem, aparentemente encantado com seus cabelos brancos e desgrenhados, investiu em uma conversa que a Judite não fazia muito sentido sobre literatura francesa. Desconhecia ela Balzac, Dumas ou Zola. Aliás, nunca interessou-se por tais nomes, pois a literatura – pensava ela – era uma forma de escapar da cruel realidade vivida pelos humanos – da qual ela partilha tal sofrimento.

- Mande-o subir – exclamou ela ao porteiro.

Enquanto esperava por Sérgio, ela começou a ajeitar alguns objetos da casa. Ajeitou o relógio que estava torto sobre uma parede, posicionou o tapete de outra forma, centralizou sobre a mesa de centro o vaso com flores mortas que estava a arranjar, entre outras coisas. Atitudes que aos olhos do senso comum parecem inúteis, mas a si lhe traziam uma grande satisfação. Não demorou muito para que lhe batessem à porta. Era Sérgio.

Ela dirigiu-se ao espelho e arrumou os cabelos, ajeitou a camisa – a perceber a visível mancha de vinho sobre ela – e colocou os brincos nas orelhas. Caminhou até a porta, respirou fundo e abriu-a.

- Pensei que não me deixaria subir – comentou Sérgio, com um sorriso franco no rosto.

- Eu te estava esperando – mentiu ela, com naturalidade. – Vamos, entre!

Sérgio adentrou aquele lugar com passos decididos. Prostrou-se diante de uma réplica de um quadro de Vermeer. Arqueou os sobrolhos ao ver que as cortinas – de cores escarlate – estavam cerradas e que a luz solar pouco penetrava naquele recinto. Do bolso da blusa que vestia, o homem tirou um pacote e entregou-se-lha.

- Espero que goste – exclamou.

Judite aproximou-se dele após trancar a porta a chaves e colocá-la sobre um móvel. Tomou de suas mãos o pacote e hesitou em abri-lo. Fazia muito tempo que não ganhava um regalo fosse lá de quem fosse. Aliás, havia muito que não trocava um diálogo com alguém que não fosse o porteiro do prédio. Apesar de bastante idade que suas linhas faciais aparentavam revelar, toda a feminilidade daquela mulher parecia há muito ido embora. Ela era brusca, tinha um jeito seco, a parecer intangível.

Ela abriu o pacote e, de dentro, saiu um colar cujas pedras pareciam pérolas. Certamente aquilo era uma bijuteria barata – fato que fê-la sentir-se um pouco ofendida, porém não quis demonstrar. Agradeceu-lhe secamente e pediu-lhe para que se sentasse.

- Vinho? – inquiriu ela.

- Aceito – disse ele, a sentar-se e perceber o vaso com flores mortas sobre a mesa de centro.

Ela volveu com uma taça de vinho em mãos. O Réquiem de Mozart já havia cessado de tocar. Fazia um silêncio profundo naquele lugar. Eles entreolhavam-se com curiosidade – ele por querer descobrir a intimidade daquela mulher; ela ainda soava enigmática. Entregou-lhe a taça e os dois começaram a conversar.

- O que te atraiu em mim? – indagou ela, a puxar um cigarro e acendê-lo. Sérgio parecia surpreso com o fato de Judite fumar.

- Não sei... – replicou ele. – Teu jeito de andar, até mesmo de ler. Algo em você me chamou a atenção.

Ambos ficaram em silêncio. Sérgio bebericou seu vinho e a vislumbrava com um pouco de receio. Ao tentar inquiri-la mais uma vez, fora interrompido.

- Beba mais, Sérgio – exclamou ela. – Tua presença me agrada.

Ao ouvir aquelas palavras, Sérgio sentiu-se mais confortável. Bebia as taças como se elas fossem secar sozinhas. Com a embriaguez, sentia-se aconchegado a ponto de servir a si mesmo. Judite, entretanto, bebericava ainda sua primeira taça de vinho. Mareado, Sérgio começou a contar os pormenores de sua vida: era separado, traíra a primeira esposa com uma prima dessa, trabalhava por conta e seus filhos não ligavam muito para ele. Esboçou até um choro, de modo teatral. Nada daquilo parecia abalar Judite – que lhe encorajava a tomar mais vinho.

No afã de tentar levantar-se, a querer ir embora, Sérgio fora impedido por Judite.

- Está cedo – exclamou ela.

- Amanhã acordo cedo – redarguiu ele, a tecer tais palavras com certa lentidão.

- E se não houver amanhã? – perguntou Judite, um pouco misteriosa.

Sérgio começou a rir. Ria desmesuradamente. Arrancou um olhar penetrador de Judite ao gargalhar.

- Vai começar com filosofia a essas horas?

Judite levantou-se e retirou-se da sala, aparentemente afrontada com as palavras do outro. Por um momento, Sérgio pareceu voltar da embriaguez. Contudo, permitiu-se ficar sentado a esperá-la e a explanar-lhe que não queria aborrecê-la.

A luz no apartamento começava a cessar. O sol já havia ido embora e a escuridão ali dentro penetrou-se impetuosamente. Ele tentava olhar a hora por meio da lanterna de seu relógio. Contudo, a visão embaçada não lhe permitia ver.

Inesperadamente, Judite apareceu com uma panela na mão atrás de Sérgio. Desferiu-lha em sua cabeça com toda força que tinha nos braços. Colérica, a ver o homem agonizar com a pancada, puxou detrás de si uma faca e deu-lhe três golpes fatais no peito. Sérgio morreu na hora.

Não obstante, Judite tomou uma bandeja e colocou-a sob a cabeça de Sérgio. Com uma faca de carne, começou a serrar seu pescoço na altura da glote. O pomo de Adão do homem parecia sobressaliente. O sangue espirrava por todos os lados: sobre as flores mortas no vaso, sobre o rosto de Judite, em suas roupas e tudo o mais.

Apanhou a bandeja com a cabeça de Sérgio e colocou-a sobre o móvel onde repousavam suas chaves. Despiu o corpo de Sérgio e vestiu-o com um de seus fiares. Sentia-se como Ônfale. Súbito, arrastou o resto do cadáver até a varanda de seu apartamento e, com muito esforço, lançou-o lá de cima – um corpo como o de Ícaro sem alas.

Adentrou o apartamento, tomou a bandeja com a cabeça sobreposta e repousou-a ao lado de seu vaso de flores mortas. Tornou a ligar o aparelho e o Réquiem de Mozart passou a preencher aquele ambiente lúgubre e mortal.

Judite sentia-se satisfeita: bebericava o restante de seu vinho a vislumbrar o vaso de flores mortas e a cabeça de seu Holofernes.

Guilherme Zelig
Enviado por Guilherme Zelig em 08/09/2023
Código do texto: T7880885
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