Feridas de Joana
Nunca a tinha visto, nem de sua existência suspeitava caso não fosse seu nome assinado nas primeiras páginas de um caderno. Estava em uma gaveta de mesa, em uma sala pequena de secretários do clube Juvenil da cidade, e foi ali a primeira vez que me encontrei com Joana. Encontrei suas feridas abertas, sangrando sobre a cama palavras que escondiam gemidos, suspiros, e muitas vezes gritos de desespero. Algumas passagens eram senão reclamações perturbadas sobre espíritos, que a assustavam dia a dia, prendendo suas emoções: algo aqui que tornou sua vida um preto e branco eterno. Custava lembrar-se das cores e da paz, tão distante Joana estava. Um diário profano à vida, sim, de magia negra, culto aos mortos, como você preferir. Mas se quiserem saber, era o que você chamaria de um diário de outra pessoa, também repleto de palavras sobre dias sem graça e recaídas que todos enfrentam. Muito frequente continha excertos de peso moral, em passagens cruéis e depressivas. Meus olhos pesavam, mas eu não chorava, já houvera tantas lágrimas derramadas naqueles escritos.
Claro que queria consolá-la, mas depois de ler alguns capítulos, sem nenhum título, conclui: não teria o que lhe falar. Ficaria em silêncio; de alguma forma, senti que deveria deixá-la, mesmo conhecendo o inferno que era sua vida. E como um espectador, li aquelas páginas por ter despertado em mim a noção da vida quando se torna insuportável. Me pergunto, será que nesse abismo deixaria ela se jogar? Claro que sim, não a conhecia, mas talvez injustamente compartilhara suas dores. Havia nomes e mais nomes, palavrões e nomes, nomes e queixas, e entre cada página os dias de angústia se repetiam melancolicamente.
Comecei a ir com mais frequência ao clube, e enquanto os meninos estavam na piscina, eu sumia sem explicar nada, e entrava naquela sala mortuária onde o caderno estava exposto no mesmo lugar. Comecei a ler cuidadosamente, relendo fragmentos dos dias anteriores. Era como se dissecasse seu cadáver, achando lesões em diferentes momentos do seu passado. Os relatos eram frios, desprovidos de poesia ou retórica. Apresentavam uma objetividade assustadora. Seus amores não eram correspondidos, seus amigos mais antigos a ignoravam e até mesmo debochavam de sua tristeza. Ela contava tudo ali; procurava um desconhecido para expor sua vida. De certo por desconfiar de toda a humanidade, já que não podia confiar em quem conhecia, já que os mais íntimos foram a razão de sua tristeza.
Não seria justo eu colocar excertos do diário por respeito a Joana, mas o que vale é contar o desfecho da minha relação com a secretária de um clube onde eu e muitos outros se divertiam. Isso é triste, doloroso, mas o tempo foi passando, e as feridas de Joana foram se tornando minhas também. Aprendi severamente que as dores de outro contagiam, e passei a ser um rapaz mais briguento e sem graça em casa, com os amigos que não entendiam minhas atitudes, eu com uma dificuldade chata de fazer novos amigos: Inconscientemente acreditava nela, perdia aos poucos a noção de ajuda mútua, de colaboração social e amor compartilhado. E foi justamente em um desses fins de semana de calor que a vi pela última vez, finalizando as últimas palavras do seu livro dos mortos. Eu sabia que algo terrível tinha acontecido, o resultado devastador da depressão profunda. Lá estava escrito o atual dia em números, e uma única frase:
Não aguento mais...
Bem assim, com reticências, como quem pensa: Estou segura do que vou fazer, é previsível e irreversível o que virá. Juro que chorei por ela, enquanto tentava imaginar o que se sucedia no clube. Seus chefes e amigos de trabalho se indagando: Por que a Jô não veio? — Será que aconteceu algo?
Nunca mais consegui voltar ao clube da cidade: Não queria me divertir naquele local, onde Joana tanto sofrera e onde eu era espectador de sua dor. O estranho é pensar que passamos todos os dias por pessoas e mal sabemos que há em cada uma delas um mundo todo cheio de cores e lembranças, de sol e tempestade...
Não sei se Joana de fato terminou com a sua vida para acabar com a sua angústia, ou se ela era de se queixar mesmo, olhando só o lado triste da vida. Quem sabe aquele diário era um modo de escape, de reclamações mesmo, e tocava sua vida normalmente? Mas toda essa história me deixou uma marca profunda na memória. Lendo suas palavras, eu muitas vezes relacionava-as com as cenas mais depressivas da minha própria vida, e mesmo que eu não a tenha conhecido, compartilhava de seus sentimentos que são nossos, humanos, parte de nossa condição frágil e desconsolada.