CONTO: Rede Delusional

Sabe quando você está tão cansado que seu corpo não gira na cama quando dorme? Sim, aquelas noites em que você acorda com um lado do corpo dormente e precisa girar para o outro lado para voltar a dormir e acaba, secretamente, movendo os dedos da mão adormecida na esperança de o sangue voltar a circular como deveria. Enquanto esse braço volta a acordar, sua mente lentamente torna a dormir. 

Você se sente tão grato por ter voltado a dormir, mas não dá pra agradecer a ninguém, nem a si mesmo ou seu braço recém revivido que lhe tirou o sono por um breve momento da noite. Não, não dá pra agradecer, pois estamos ocupados demais voltando a dormir. Só isso importa agora, na verdade. Voltar a dormir. 

Será que consigo usar essa desventura como metáfora para alguma coisa? Não há muitas coisas que consiga fazer, não sou bom nem para amadurecer, mas isso não impediu o tempo de passar, não é? 

Soa tão triste, nem vou pensar mais nisso! Quero aproveitar o percurso do ônibus para sonhar com a noite maravilhosa que tive. A melhor noite da minha vida!

Essa semana começou como qualquer outra, eu acordei e já procurei o celular na mesinha de cabeceira. Meus olhos nem abriram ainda, mas minhas mãos anseiam em encontrar a dopamina que vai me deixar hipnotizado pelas próximas horas antes de sair da cama. Estou desempregado, faço um servicinho ou outro só para manter o teto sobre minha cabeça e pagar a internet do celular. Irônico esse entorpecente ser tão importante quanto um lugar para morar agora. Eu me tornei dependente das malditas redes sociais, coisa que nunca fui e nem ligava até um tempo atrás.

As redes sociais eram, basicamente, entretenimento para mim. Se eu enjoava de ver filmes ou ler, nada a fim de usar meus neurônios, eu ia pra essa terra de ninguém para saber como estavam meus velhos amigos. Isso me anima às vezes, sinto ainda fazer parte da vida deles mesmo que só uma curtida fútil nos una. Curtida sempre minha, vale lembrar, não é algo muito recíproco. Foi nessa palhaçada que descobri ter muito em comum com uma moça que trocamos arrobas despretensiosamente. Se trocamos meia dúzia de palavras pessoalmente foi muito, mas ainda assim, resolvemos nos seguir mutuamente. Ela não é das mais ativas, posta de vez em nunca. Comecei a achá-la legal, mesmo não conhecendo. Oh, Deus! Percebo só agora como soa bobo. Desde esse achado, passei a acessar a maldita rede social sempre que podia. Todas as manhãs, antes de sair da cama, enquanto tomava café e quando chegava da minha humilhante busca por emprego. Já não leio, não assisto e nem jogo mais nada. Os hobbies que me ajudavam a lidar com a minha vida reclusa se tornaram coisas que uso quando quero me distrair do meu próprio celular.

Não sou idiota! Já conversei com ela por esse meio, foram mais outras meia dúzia de palavras. Esperava um post engraçado dela para comentar e ver se dava para gerar uma conversa a partir daí. Amo reler nossas mensagens enquanto aguardo ela aparecer com uma postagem nova. Isso costuma levar semanas. Às vezes, eu postava alguma coisa só pra ver se chamava a atenção, ela é umas das raras almas que curte o que eu posto, por mais desinteressante que possa ser. Minha ilusão começou com isso, passei a acreditar que algo estava nascendo das sementes que joguei, talvez tenham sido migalhas ao invés de sementes. Sei lá, não sou bom com metáforas. Eu vasculhava vídeos e memes aleatórios procurando o nome dela dentre as curtidas e conhecer mais ela assim. Eu sei, é patético, mas era o que eu fazia o tempo todo em que estava com o celular na mão. Agir assim me aproximava dela, mas não a aproximava de mim. 

Ela ficou cada vez mais real. Acompanhando seus rastros eu conheci os gostos dela, senso de humor, espiritualidade, justiça; fui me afundando em informações que ela nunca me passou e “ah! Estou me apaixonando por ela!”. Era tarde. Eu conseguia imaginar ela na minha casa, cozinhando comigo, cantando e conversando. Como era real! Seu cheiro, sua pele e a voz.

Sim, bem real. Talvez até demais.

Já não sentia mais tanta necessidade de buscar por ela no celular, afinal, eu a tinha perto de mim sempre que queria. Recebi até os parabéns do sistema por diminuir o tempo de tela. Comecei a fazer coisas para impressioná-la. Digo, coisas reais! Tão reais quanto aquela ilusão era para mim! Exemplo: Eu andava na rua, via algo que gostava na vitrine e conseguia ouvir a voz dela sussurrando “você vai ficar adorável usando um desses, mas tem que ser preto, amor”. Eu entrava e comprava, ela sempre ia no provador comigo, aplaudindo minhas poses e mandando beijinhos no ar como minha fã número um; caminhando no parque, ela aproximava seus lábios com cheiro de framboesa no meu ouvido e dizia baixinho que “a casa ficaria muito mais alegre com aquelas flores”, então eu pegava um belo punhado e recebia um abraço em troca. 

Minha vida ficou feliz com ela, a mulher perfeita.

Ontem estávamos vendo Lalaland, o filme preferido dela. Enquanto minha amada estava deitada no meu ombro, cantarolando com o Ryan Gosling, uma notificação vibra meu celular.

Era uma mensagem dela! Digo, era mesmo ela!

— Quem é, amor?

— É você — gaguejei.

— Ah, que bom! Me responda, por favor!

Estranho, costuma ser ciumenta. Se eu falar com uma mulher por muito tempo, ela diz que vai simplesmente sumir da minha vida e me assusta com essa possibilidade. 

— Bom, é melhor eu ver o que ela quer.

“Adorei a foto! Não sabia que tinham acabado a reforma” — dizia sobre a foto no cinema que postei.

“Sim, re-inauguraram semana passada. Ficou ótimo! Você que curte cinema deveria ver.”— Deus! Por que eu disse isso? Ela nunca tinha dito que gosta de cinema, essa é só mais uma informação que sei de graça.

“Com certeza eu vou!”

— Me chama pra sair, amor! — sussurrou sensualmente no meu ouvido, sinto o suor descer pela minha testa — Estou praticamente implorando pra você!

“Eu estou livre, quer companhia pro filminho?” — digitei e enviei.

Largo o celular e levanto. Ando de um lado pro outro, perdido e arrependido de ter me posto tão vulnerável. É ela mesmo do outro lado! Se ela disser não? Se ela disser ECA?! Eu ainda disse “filminho”?! Qual é o meu problema?!

“Claro que quero! Que dia?”

Marcamos para hoje, nos encontramos depois do trabalho dela. Eu estava tão nervoso. Se ela, ou melhor, se a minha versão dela não estivesse do meu lado me dando forças, acho que eu desmaiaria. Quando a vi de pé me esperando na porta, distraída com os cartazes, meu coração veio pra boca. É tão deslumbrante, como eu não percebi isso naquela única vez que nos vimos pessoalmente? Como não notei que falava com o amor da minha vida? Ela não está de vestido, como eu sempre imagino, está usando calça jeans e uma camisa. Não ia conseguir ir até ela, estava muito ansioso, mas ela parou de ler o cartaz e olhou na minha direção, seu sorriso enfraqueceu minhas pernas. Sair correndo seria muito pior do que ir falar um “oi”.

Nos abraçamos, o cheiro do cabelo dela ainda acaricia minha imaginação, e entramos para ver o filme. Durante os trailers, ela sussurrou no meu ouvido uma curiosidade sobre um ator e, pasme, ela usa mesmo um hidratante de framboesa nos lábios, o que eu achei uma grande trapaça em termos de atratividade. Honestamente, não sei do que o filme falava. Eu só pensava que deveria acabar logo para poder, sabe, conversar com ela. Tentei fortemente não passar o tempo todo a encarando.

O fim do filme foi a melhor coisa nele. Saímos para lanchar e conversamos por horas, ela é tão incrível quanto a imaginária. Na verdade, a versão imaginária pareceu falsa nessa hora, como se nenhuma de nossas histórias tivessem acontecido. Foi libertador. Foi perfeito!

Infelizmente, a noite teve que terminar sem nada além de um filme e uma conversa. Ao que parece, ambos achamos que foi um date maravilhoso. Ficou meio combinado que deveríamos nos encontrar de novo, talvez para o próximo filme desse ator que lança dentro de alguns meses. Ela pega o metrô, e eu o ônibus.

Acabei de abrir meu portão. Chego em casa, sozinho. Tranco a porta e largo as chaves na vasilha de vidro que deixo na sapateira ao lado, aproveito e guardo meus sapatos. Meu Deus, eu só consigo pensar nela! Pego uma cerveja e me sento no sofá. A televisão não tem graça nenhuma. Passou algumas horas e ela ainda não mandou mensagem dizendo que chegou. Será que está bem? Tem algo errado? Vou dar uma espiada aqui no celular. Está offline.

O perfil dela é lindo. As fotos com os amigos, arrumada para a formatura do irmão, os vídeos das apresentações de artistas de rua que ela encontrou há alguns meses, minha publicação preferida é a que ela usa uma fantasia divertida no halloween; uma garota sem defeitos. O tempo voa quando encaro as fotos dela. Passaram algumas horas e…

Ela está online. 

Há quanto tempo? Será que vai me mandar uma mensagem que chegou bem? Daí, vamos poder conversar mais. Não vou puxar assunto, não quero parecer desesperado. Vou deixar o celular aqui, preciso dar um tempo para ela.

Andar pela casa. Beber mais cerveja. Jogar video-game. Nada me distrai! Pego o celular, ela ainda está online e não mandou nenhuma mensagem. Qual o problema dessa piranha? Largo o celular. Desligo o jogo. Pego um livro. Abandono o livro e torno a girar em círculos, passo minhas mãos no cabelo ferozmente, como se isso me ajudasse a expulsá-la da minha mente, mas ela continua aqui! Meu Deus, como o cabelo dela cheirava bem! Não paro de imaginar meu rosto se afundando naqueles cachos! Pego o celular de novo, mas nada! O que ela quer de mim? O que eu fiz de errado? Largo o celular. Tomo um banho. Ela ainda não sai da minha cabeça. Pego o celular de novo. Ela ficou offline. Sigo encarando a tela, sua foto de perfil, mas ela permanece offline pelas próximas horas. Sinto o toque nos meus ombros e os seios nas minhas costas.

— Rapaz, você não percebeu? Não é óbvio? Se nosso encontro não acabou comigo aqui, na sua casa, é porque você é uma piada.

— Não, você não acha isso. Você disse que eu sou engraçado.

Um sussurro sabor framboesa aquece minha orelha.

— Você é uma piada.

É isso, eu vivi um sonho. Foram tantos meses de ilusão, mas foi tão boa a sensação. Vou ter que voltar à realidade? Encarar minha patética vida amargurada? Não, eu me recuso a acordar, preciso voltar a dormir. Voltar para o sonho.

Requer esforço, mas eu consigo. Posso sentir minhas pernas adormecendo lentamente, os dedos das mãos também. Não posso acordá-los, quero dormir, quero-os dormentes. Meus olhos parecem mais quentes, talvez estejam inchando, mas tudo bem. Só preciso viver no meu sonho. Só isso importa agora, na verdade. Voltar a dormir. 

Nate Wilter
Enviado por Nate Wilter em 08/08/2023
Reeditado em 05/07/2024
Código do texto: T7856463
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