Paz ou nada.

Era a quarta vez que Marco passava por aquela rua em menos de uma hora. Rodou o quarteirão, com sua moto, apenas para passar frente à casa, a qual, já há uns dias, tomara como alvo. Avistara uma senhorinha que, por rotina, ia às tardes para o jardim, na parte frontal, ler a bíblia, resolver revistas de palavras cruzadas e coisinhas mais que idosos fazem, inclusive dormir, à vista de todos. Quando a viu, andando devagarzinho — num dia até a flagrou usando uma bengala —, se levantando com certa dificuldade da cadeira, varrendo com uma mão no cabo, mas outra nas costas, pensou: será fácil. Tomou, desde o primeiro dia, observação. Dessa forma, ficava passando diversas vezes por lá, para espioná-la. Após alguns dias, chegou à conclusão de que ela vivia sozinha, apesar de, vez ou outra, um rapaz aparecer lá; seu neto, presumiu. Geralmente, vinha deixar algo numa sacola (e mesmo dinheiro já notara ser entregue). Marco era como um dos gatos da rua, que ficavam por aí, parados, olhando o tempo.

Ela, que tão concentrava ficava em suas leituras e demais coisas, se o viu uma vez, deu a mínima importância, e chegou, muito provavelmente, a ignorar a existência daquele homem, várias vezes, parado, do outro lado da rua, em frente da própria casa. E Marco percebeu que ele era um ser invisível. A ideia primária era: chegar lá na grade a chamando, tapeando, fazendo menção de entrar, por vistorias, ou qualquer outra desculpa. Seria muito fácil, mas, se não fosse, bastava escalar a própria grade e pular o muro, que tinha quase três metros.

Logo após o tal muro branco, havia um espaço aberto, semi-varanda, com muitos jarros de plantas, uns trinta, fora os que eram pendurados. A cadeira de balanço, na qual ela ficava às tardes, a mesinha branca, de bar mesmo, e, depois disso, outra grade e uma porta, dando acesso ao interior. Era lá que queria chegar. Se não conseguisse a partir da enganação, como dito, pularia o muro e arrumaria um jeito de se meter lá dentro, talvez mesmo à noite, madrugada. Porém, tinha a convicção de que não chegaria a tanto.

O dia seria aquele mesmo, decidira. Na moto, havia o tal baú, parou na casa de um dos parceiros, já a par que uma empreitada estava por vir, e lá dentro se trocou: pôs o uniforme de carteiro. Até bolsa tinha. Já na rua, se dirigiu, imediatamente, à casa, encontrando, lá, a senhora, como de costume, lendo. Marco, parado na grade, observava ela, que sequer tinha percebido sua chegada. Por alguma razão, decidiu não chamar atenção da mesma; sentiu, pelo contrário, uma quietude muito estranha enquanto olhava a mulher de grisalhos cabelos, com pernas e braços finos, e o vestido preto com flores miúdas e púrpuras, já desgastado. Ela lia em voz alta as passagens. E todo aquele conjunto parecia tê-lo congelado numa sensação de, não sabia discenir, paz ou nada.

Enquanto era ele quem tomava concentração, ela desvencilhou-se da leitura por um segundo e, subindo os olhos, percebeu o homem. Marco viu a reação dela: os olhos esbugalhados e a boca entreaberta; sim, um susto, bem leve. Susto esse que foi tomado por um sorriso e a fala da própria, denunciando o que tinha acabado de acontecer. Quando perguntado sobre o que queria, com ela já se dirigindo à grade, ele, ainda numa espécie de êxtase, se atrapalhou. Então, pôde, voltando a si, iniciar seu domínio. Na conversa, explicara ele, caprichosamente tendo trago uma caixa que não podia ser passada pela grade, que era melhor abri-la. Ela concordou. Enquanto retornava com a chave, vinha a senhora fazendo comentários sobre a vida. Imagine, exatamente o que um idoso mais sabe fazer: reclamar das dores. Mesmo cada passo dela sendo muito curto e demorando bastante para percorrer os quase quatro metros de distância entre a chave e a grade, Marco não sentia impaciência; mesmo quando ela errou cinco vezes ao passar a chave.

Quando, enfim, a grade se abriu, ele percebeu-se totalmente livre para entrar na residência. Realmente, tinha sido muito fácil. Portanto, era só entrar e fazer o que tinha de ser feito. Olhou pra ela novamente, com as mãos estendidas e sorrindo para ele. Na hora, viu que eram calejadas...

Rodrigo Hontojita
Enviado por Rodrigo Hontojita em 24/07/2023
Código do texto: T7845025
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