RITUAL SOMBRIO
Depois de chegar parcialmente bêbado tudo que ele queria era tirar um cochilo antes que sua mulher viesse reclamar de alguma coisa. Ela estava na casa da prima e seu sossego não seria longo, melhor aproveitar. Estirado no sofá da sala ouviu entrecortado o pedido de seu filho para brincar com o filho do vizinho que morava logo ali. Em resposta ao pedido, balbuciou alguma coisa que o menino julgou atender a súplica.
Duas horas se passaram e ninguém tinha notícias do menino. Pobre garoto, onde estará? Já foram 24 horas e a polícia foi acionada. A mãe parece ter sido atropelada por um trem várias vezes, o desespero gritava de seu rosto pálido... O pequeno Eduardo de 8 anos realmente foi até a casa do amigo naquele dia, porém, antes de chegar avistou uma pipa que caía do céu como se ela própria quisesse ser dele.
Ele perseguiu o objeto e entreou num amplo terreno, uma casa velha de um senhor velho: sem filhos conhecidos, mulher ou empregados. Um homem solitário de 92 anos. De certa forma, um prodígio que conseguia viver sem a ajuda de ninguém a despeito da senilidade. Antes mesmo de alcançar o papagaio, veio uma chuva forte de verão. Dessas que arrebentam com tudo e parecem fazer o mundo desabar por cinco ou dez minutos.
Nesse instante, o velho da varanda o chamou com tamanha naturalidade que o menino fez correr em direção ao socorro. Já de toalha na mão, passou a secar os cabelos de Eduardo convidando-o para entrar. Que mal haveria? Esse homem, dizem por aí, já cometeu alguns crimes. Não sei se é verdade, mas se for verdade isso foi há muito tempo. Hoje precisa de uma bengala para atravessar a rua.
Eduardo fitou o desconhecido e parecia alguém pronto a ajudar. Não foi difícil ganhar a confiança do menino que se fartou em biscoito e chá. A chuva ameinou de súbito. Estavam na varanda, o senhor convidou o garoto para entrar, pois tinha que lhe mostrar algo interessantíssimo. Até esse ponto Eduardo imaginava estar apenas fugindo da chuva e comendo biscoitos, depois que a porta se fechou ele sentiu o terror atravessar seu corpo como antes nenhuma surra doméstica fizera. E, de alguma forma, ele sentiu que estava fora de seu alcançe romper com os acontecimentos que se seguiram.
A casa era grande, antiga e fria. A luz vacilante que emanava das lampadas cansadas pelo tempo tornaram mais sinistro o caminho até a sala oval, intercalando claridade e sombras no rosto daquele homem que parecia não ser o mesmo.
- Beba mais um pouco de chá, institiu o afintrião com expressão intimidadora. Sem saber como recusar, o menino consumiu novo gole.
- Onde fica o banheiro? Perguntou quase sem emitir som. Cogitou fugir.
- Apenas fique quieto e beba o maldito chá!!! Sentenciou o velho em tom ameaçador.
O garoto sentiu medo e inutilmente tentou correr, mas foi agarrado pelo braço com grande força. As mãos eram grandes com unhas enormes. Seu rosto havia mudado não apenas pela morte do personagem amistoso cuja representação havia se perdido, mas também pela mainfestação do mal que estava em seu interior.
Era um diabo que poderia fazer qualquer coisa de qualquer modo e tirar do ato mais sombrio uma enorme satisfação. Pobre garotinho! É o que acontece quando se cruza com o lobo vestido de ovelha. O pânico e a tentativa de fuga aceleraram o medicamento que estava na bebida, colocando em letargia a criança que ouviu prestes a cair em sono profundo: acho que você vai morrer jovem demais, garoto...
Apitos eram usados em busca do menino desaparecido. Eduardo se levantou com um ferimento em seu braço, estava atordoado e demorou encontrar a saída. Temia esbarrar no sequestrador, seguiu até porta e um grupo de quatro moradores que faziam buscas na região o receberam em felicitação incontida.
O ferimento em seu braço nunca mais deixou de existir, permanecendo uma cicatriz terrível na altura do ombro. O velho nunca foi encontrado, apesar de todo esforço policial. Souberam que já havia respondido pelo rapto de um adolescente quarenta e dois anos atrás. O exame de corpo de delito atestou que o menino não foi molestado durante as 48 horas em que ficou desacordado graças a um poderoso medicamento.
Eduardo não morreu, cresceu, estudou, cursou uma boa faculdade, teve namoradas, fez estágio até conseguir um emprego, pediu demissão e seguiu na empresa concorrente com maior sucesso. Porém, durante todo esse tempo ele sabia que algo havia acontecido nos dias do sequestro. Algo que exames médicos não poderiam atestar por melhores que fossem.
Embora fosse uma pessoa naturalmente disciplinada, ele viu seu envelhecimento acentuar-se de maneira bastante incomum. Praticava esportes, comia alimentos saudáveis, evitava bebidas e nunca tinha se drogado. Sim, era quase um atleta, só não seguiu carreira porque seu pulmão era fraco diante de atividas intensas.
As dores que chegam aos 40, nele, estavam lá aos 20. As primeiras linhas de expressão pareciam se multiplicar além do normal, os resfriados eram mais severos, a recuperação das doenças acontecia depois de longo combate. Por dentro e por fora sofria de uma velhice precoce que nem um laborátorio ou médico sabia explicar.
A despeiro de tudo isso, ele era um rapaz competente. Quando completou cinco anos de casado, decidiu fazer uma viagem comemorativa a Berlim. Enquanto sua esposa foleava um romance na biblioteca do East Side Mall, Eduardo tomava um café especial na loja que ficava ao lado. Como dizem, o mundo é pequeno, foi nesse mundinho que Roberto reconheceu seu conterrâneo.
Disse que conheceu o pai de Eduardo e inclusive estava nas buscas durante seu sumiço. Era um jovem senhor de quase 60 ano muito bem vestido. Pediu o número do quarto, afirmou que também tinha esposa e gostaria de uma conversa mais calma já que o tempo estava escasso aquele dia. Trocaram os números de telefone.
Enquanto tentava resistir ao sono, lendo mais um capítulo da monografia de um aluno, o celular toca de inopino.
- Não acredito que já tenha me esquecido! Uma falta de respeito, garoto.
- Quem é? Roberto?
- Roberto é só um nome. Alguém que criei para te ver de perto.
- O que você quer? Quem é você?
- Eu sou seu trauma, seu sequestrador, seu cicatriz.
- Mentira! Aquele homem tinha 92 anos há 25 anos. Já está morto.
- Acho que você vai morrer jovem demais, garoto. Lembra disso?
Não, Eduardo não lembrava, mas aquela voz fez com que tivesse outra vez oito anos e trouxesse do passado a previsão funesta. A ligação se encerrou e muito depois dela Eduardo não compreendia como era possível. O sequestrador estava enterrado pelo tempo, e ainda que não estivesse, jamais poderia contar com menos de 60 anos. Era fisicamente impossível e ponto. Seguiu tratando tudo como um trote bem armado.
15 anos depois seu corpo estava próximo do fim. Aos 48 anos eram tantas doenças que dificilmente passava um mês sem internação hospitalar. Muitos consideravam um milagre ele ainda estar vivo. Dessa vez as coisas pioraram, o cancer tinha se espalhado. Era só questão de tempo, a família já tinha se conformado.
Enquanto recobrava a consciência após medicação, um jovem médico entra no quarto.
- Olá, senhor Eduardo.
- Olá, Dr. Estou me sentindo um pouco melhor.
- Os exames melhoraram um pouco. Gostaria de estar mais otimistas, mas...
- Pode falar, eu confesso que já estou até conformado. Não há nada que se possa fazer.
- É como eu disse muito anos atrás: acho que você vai morrer jovem, garoto!
- O quê? Não entendi. O senhor disse...
- Isso mesmo, Eduardo. Eu estive contigo naquela casa quando você era um menino, depois naquele café em Berlim e agora estou aqui neste hospital. Você envelheceu e eu rejuvenesci.
- Que palhaçada é essa? Fique sabendo que isso não vai ficar impune!
- Acalme-se. Eu sou a única chance que você tem de sobreviver.