O CANGACEIRO
"Cangaceiro" é mais um pobre jovem que nasceu numa época em que seu povoado estava sob pressão dos britânicos. Criado por um velho agricultor que o ensinou muito cedo sobre a vida, na sua infância viu seu povo ser escravizado. Naquele povoamento, os britânicos aplicaram um regime militar para controlar os escravos, construíram uma cerca ao redor da aldeia, ninguém podia sair e muito menos entrar por livre e espontânea vontade. Os escravos eram obrigados a fazer trabalhos duros nos campos de plantações da cana-de-açúcar, chá, tabaco e arroz. O Cangaceiro cresceu naquele ambiente e respeitou todas as regras que os britânicos impunham.
Certo dia, os escravos faziam seus trabalhos no canavial. Um dos escravos estava exausto e caiu. Um soldado que os controlava ordenou que este levantasse, mas o homem não conseguia por falta de forças. O soldado começou açoitá-lo, vendo isso o Cangaceiro ficou indignado e levantou-se apontando o dedo ao soldado pedindo que este parasse de açoitar aquele homem. O soldado ficou muito enfurecido e ordenou que o Cangaceiro voltasse a transportar as canas-de-açúcar, mas este se recusou. Enquanto os outros negros cheios de medo voltaram às atividades imediatamente, o soldado levantou seu chicote e estalou na pele negra do Cangaceiro, que gritou de dor. Este grito chamou a atenção de toda a aldeia, os aldeões aproximaram-se para ver o que estava acontecendo. O soldado cheio de raiva pediu seus companheiros que o ajudassem, pegaram o Cangaceiro e o colocaram amarrado num mastro no centro da aldeia onde todos os aldeões pudessem vê-lo para que servisse de exemplo para que outros não pudessem se rebelar.
O avô do Cangaceiro, vendo esta situação, encheu-se de fúria e foi ter com o general. Sendo ele um agricultor muito respeitado e obediente, os britânicos o respeitavam. O velho pediu ao general que seu neto fosse solto, mas o general recusou-se dizendo que tudo aquilo era culpa do neto e que aquela história estava sendo repetida. Mais pelo respeito ao velho agricultor, o general ordenou que o Cangaceiro fosse tirado do mastro e levado às celas. Agradecido, o velho foi para casa e retornou no dia seguinte para visitar seu neto na prisão. Chegando lá, não conseguiu falar com seu neto porque este estava muito doente: as feridas profundas feitas pelos chicotes rançosos tinham infeccionado. O velho chorou e pediu que o deixassem cuidar do seu neto, mas os soldados não deixaram e mandaram que ele saísse do quartel.
Caminhando para casa muito preocupado, os aldeões o perguntavam o que estava acontecendo com seu neto. Este apenas se lamentava. Vendo os escravos preocupados com a tristeza do velho, o general temeu que os escravos se enchessem de coragem e se rebelassem, ordenou então que o Cangaceiro fosse levado para sua casa. Ao anoitecer, os soldados levaram o cangaceiro e o jogaram na porta da sua casa. Seu avô ouviu ruídos de carros chegando, saiu para ver o que estava acontecendo e encontrou seu neto cheio de machucados jogado no chão. Ele o levou para dentro e rapidamente tratou dos ferimentos. Depois de dois dias, o cangaceiro acordou com muitas dores nas costas e perguntou ao seu avô como ele tinha chegado em casa. Seu avô sentou-se ao seu lado e criticou-o por ter agido daquela forma com os soldados, sabendo que estes são arrogantes e se sentem donos de tudo. O cangaceiro, com muito rancor, disse ao seu avô que as coisas tinham que mudar, os estrangeiros tinham que ir embora, estavam se aproveitando deles mas mesmo assim os tratando de forma desumana. Seu avô, ouvindo isso, segurou-o no ombro e pediu-lhe que não fizesse nada a respeito, apenas continuasse com a sua vida de escravo e lembrou-lhe que seus pais foram mortos pelo general porque tinham se revoltado contra os britânicos. Enquanto eles conversavam, chegou um soldado e ordenou que fossem para as plantações de arroz. O velho ressentido explicou ao soldado que seu neto precisava de repouso. O soldado ignorou e disse que ele podia se recuperar enquanto trabalhava. O cangaceiro, sem escolhas, levantou-se olhando fixamente nos olhos do soldado. O soldado revidou o olhar e garantiu que mataria o cangaceiro se fizesse alguma bobagem nos próximos dias. Eles foram caminhando para o campo, os aldeões olhavam para o cangaceiro e ficavam com pena dele, sendo um órfão criado por um velho. Por que tinha que ser tão estúpido procurando encrenca com os brancos? Eles chegaram no campo e iniciaram as atividades. O cangaceiro segurava na sua mão um pequeno machado que usava nas escavações da terra. Quando os soldados estavam meio distantes, fingiu estar com dor e sentou-se. Seu avô suplicou que ele levantasse. O soldado que foi buscá-los mais cedo em sua casa percebeu que o cangaceiro tinha se sentado, pegou no seu chicote e foi correndo em direção a ele e disse ao seu avô para se afastar para que pudesse açoitar o cangaceiro. Alguns escravos vendo o que estava acontecendo correram e pegaram o velho, deixando o cangaceiro como alvo perfeito para o soldado. Quando este se aproximou, o cangaceiro pegou argila do chão e jogou com muita força na cara do soldado, que gritou de dor. Seus companheiros colocaram-se a correr para ajudá-lo. Enquanto isso, o cangaceiro levantou e golpeou com o machado na cabeça do soldado, que morreu superficialmente. Seus companheiros, vendo que seu parceiro tinha caído, se posicionaram apontando as armas para o cangaceiro. Os escravos encheram-se de coragem e foram para cima dos soldados. O alarme do quartel foi acionado no instante em que os escravos tinham se rebelado. O general, muito irritado, quis saber quem iniciou a desordem. Os soldados explicaram que o cangaceiro estava envolvido e provavelmente foi ele que iniciou a algazarra. O general ordenou que o cangaceiro fosse morto e todos aqueles que estavam envolvidos na confusão.
Os soldados voltaram ao campo, disparando contra os escravos. O Cangaceiro viu as pessoas ao seu redor sendo mortas e percebeu que seria o próximo. Ele correu em direção à cerca, e seu avô o ajudou a escapar, dizendo para ele seguir pela mata em direção ao norte, onde encontraria ajuda.
O Cangaceiro entrou na mata, correndo desesperadamente. Os soldados foram atrás dele, mas não conseguiram alcançá-lo. Ele correu até não aguentar mais, nas primeiras duas noites passou muitas dificuldades na mata devido ao esforço, seus ferimentos doíam muito, até que ele desmaiou, fervendo de febre.
Na terceira noite, enquanto ele morria aos poucos, um grupo de caçadores que passava pelo local viu vestígios de sangue e acreditou ser um animal ferido que tinha passado por ali. Vendo que o sangue ainda estava fresco, eles seguiram os rastros e se depararam com um homem caído no chão. Eles o socorreram.
Levado para uma aldeia no meio do nada, o Cangaceiro acordou na manhã seguinte sem saber o que tinha acontecido. Ele ficou surpreso ao ver que estava em um povoado muito agitado. Um homem passou e viu o Cangaceiro preocupado, perguntando se ele estava perdido. O Cangaceiro não soube explicar se estava perdido, apenas disse ao homem que estava com muita fome. O homem pediu para que ele o acompanhasse até sua casa, onde teria algo para comer.
Chegando à casa do homem, ele serviu um cozido de carneiro e quis saber por que o Cangaceiro estava com um olhar desesperado. O Cangaceiro explicou que era novo naquela aldeia, não sabia como chegou ali, apenas se lembrava de ter fugido de sua aldeia, onde os britânicos escravizavam os negros. Ao ouvir isso, o homem ficou admirado e disse que o Cangaceiro era um jovem de muita sorte por ter conseguido escapar dos britânicos com vida.
O Cangaceiro lacrimejando disse: - 'Meu avô nunca irá me perdoar por isso', o homem olhou para ele e disse: 'Eu cresci naquela jaula, meus pais morreram naquele inferno ardente. Quando eu tinha tua idade, vi meu pai morrer no chão feito um desasseado só porque tinha levado algumas cebolas do campo. Espancaram-no até a morte. Naquele dia, decidi fugir com a ajuda de um soldado inglês. Entrei debaixo de um caminhão que saía à meia-noite. Depois de sair daquele lugar sujo, corri o mais rápido que pude e acabei parando aqui. Devo minha vida àquele inglês.
- O que tens feito aqui? - perguntou o Cangaceiro.
- Aqui a gente faz o que der vontade. Os britânicos não chegam por aqui porque sempre nos defendemos lutando.
- E um João-ninguém como eu? O que farei? perguntou o Cangaceiro, sentindo pena de si mesmo.
- Tu podes ser meu ajudante. Posso ensinar-te magia e tornares-te um mágico assim poderás ganhar a vida.
- Mágico?, perguntou o Cangaceiro, indignado.
- Sim, seremos os mestres da ilusão. Aceite se tiveres interesse.
- Sim, aceito. Melhor do que cavar com as mãos na lama. E onde arranjas estes materiais para suas mágicas?
- O inglês que me ajudou a escapar tem contrabandeado e tem nos fornecido o que pedimos. Existe uma abertura na cerca ao redor das casas dos aldeões, mas ninguém mais sabe desse assunto. Essa informação é muito perigosa.
Nos dias seguintes, o mágico passou a ensinar ao Cangaceiro vários truques, todos baseados na ilusão, nada era real. Enquanto praticava na aldeia, o Cangaceiro percebeu que as pessoas são tolas por se maravilharem com coisas que não acontecem de verdade. Ele foi perguntar ao seu mestre por que a magia funciona.
- Funciona porque as pessoas veem aquilo que querem ver, não aquilo que devem ver.
- Será que nós podemos iludir os britânicos?
- O que estás pensando em fazer, rapaz? Os heróis morrem cedo. Os brancos agem como se fossem deuses.
- Mas não são deuses. São pessoas como nós. Aos olhos de Deus, nosso criador, todos somos iguais.
- Pense o que quiser, mas não conte comigo para essa loucura. Darei tudo o que precisares, mas não irei nessa aventura.
O Cangaceiro não julgou a atitude do seu mestre. Não implorou para que este o acompanhasse. Apenas pediu que ele falasse com o soldado inglês e comprasse óleo de baleia, chumbo e um arpão, e que tudo fosse guardado perto da abertura da cerca, ao lado das casas dos aldeões. No dia seguinte, o Cangaceiro retornou para sua aldeia depois de traçar um plano com o soldado inglês, que sentia pena dos escravos e queria fazer algo por eles.
Quando o Cangaceiro se aproximava do portão, viu soldados bem armados e temeu ser morto. Então, rasgou suas vestes, pintou-se de lama e começou a cantar feito um louco, indo em direção aos portões. Ao verem esse homem, os soldados pediram para que ele recuasse, mas o homem não recuava e continuava cantando. Eles deduziram que ele fosse um louco e o deixaram se aproximar. Um dos soldados percebeu que era o Cangaceiro e imediatamente o pegaram para apresentá-lo ao general. Com sede de vingança, o general pegou sua arma e mirou na cabeça do Cangaceiro, com a intenção de matá-lo, e disse:
- Caro rapaz, se eu disparar minha arma, tiro a sua vida e será um alívio para ti. Deste muito trabalho para meus soldados, perdi escravos e a produção reduziu. És um caipira muito persistente. Queres debochar de mim, voltando como se nada tivesse acontecido. Eu vou revirar tua pele escura e expô-la ao sol.
Este ordenou que o Cangaceiro fosse amarrado no mastro e obrigou que todos os escravos assistissem. Os soldados pegaram nos seus chicotes rançosos e começaram a massacrado. Por um momento, o Cangaceiro arrependeu-se de ter voltado e pensou que fosse morrer, mas a sede de vingança dava-lhe mais forças para aguentar aquelas dores.
Ao cair da noite, os soldados foram nos dormitórios e postos de trabalho e o inglês que ajudou o mestre do Cangaceiro a fugir da aldeia foi encontrar-se com o avô do Cangaceiro e o levou até onde ele estava amarrado.
- Mas por que essa teimosia? - Pergunta o avô.
- Tarde demais, vovô, hoje tudo vai mudar. - Disse o Cangaceiro com uma voz inapta.
- Como assim? Essa loucura vai te levar à morte, meu netinho.
- Vovô, me escuta com muita atenção. Este inglês vai ajudar o senhor. Peço que faça tudo o que ele disser para o senhor.
- O que vocês estão tramando? Não basta nos escravizar na produção, precisam bater e matar-nos? - perguntou o velho ao inglês.
- Olha, pai, eu estou aqui para ajudar. Vamos. - Disse o inglês.
Eles foram para as casas dos aldeões e juntaram os homens mais corajosos que queriam lutar. Alguns homens duvidavam que aquele plano fosse dar certo, com medo de que o inglês os traísse, mas muitos tiveram fé e foram atrás dos barris de óleo de baleia, chumbo e o arpão. Jogaram o óleo ao redor do armazém e do dormitório dos soldados. Por cima dos barris, eles colocaram os saquinhos cheios de chumbo. Sendo uma noite muito calma, existiam poucos guardas no quartel, e com a ajuda do soldado inglês, os escravos se armaram com as ferramentas de metal usadas nos campos. Movimentaram-se sem que nenhum guarda percebesse. Depois de terem armado tudo, colocaram-se em posição de atacar e botaram fogo nas armações. Em pouco tempo, tudo voava pelos ares, e o Cangaceiro sorria amarrado no mastro, esperando que os aldeões viessem soltá-lo. Ele ficou amarrado para que os britânicos não sentissem falta dele e colocassem todo mundo em alerta, e o plano desse errado. Quando os guardas viram que o dormitório estava pegando fogo, entraram em desespero e foram apagar o fogo. Os aldeões aproveitaram-se dessa distração e começaram a golpear os soldados. Os que estavam dentro do dormitório não tiveram nenhuma chance de sair vivos. Durante a confusão, o avô do Cangaceiro correu e o soltou, entregando-lhe o arpão. Este, cheio de ferimentos, caminhou lentamente para os aposentos do general, e minutos depois, saiu com as mãos cheias de sangue. Quando ele saiu dos aposentos do general, encontrou os aldeões indo atrás dele para ajudá-lo a confrontar o general, mas eles viram que o Cangaceiro já tinha finalizado o matando usando o arpão. O Cangaceiro atirou-se no chão e começou a sorrir, sem acreditar no que tinha acontecido.
Naquela noite, ninguém dormiu. Na manhã seguinte, todos se uniram para destruir a cerca. Todos começaram vidas novas, livres e independentes.